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Agricultura Periurbana: relação campo-cidade e rural/urbano

Foto 28 Exemplo de instalação de banheiro seco na residência de um dos moradores da

3. EMBASAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

3.3 Agricultura Periurbana: relação campo-cidade e rural/urbano

“todo sistema agrícola baseado na espoliação da terra conduz à pobreza” Albrecht Block, agriculturalista, citado em Letters to the Presidente, do economista político americano Henry Carey [1793-1879]

A discussão teórica da agricultura urbana e periurbana têm sido pautadas, sobretudo, em termos do rural e do urbano e sustentado, mormente, num discurso da extinção do campesinato enquanto classe social e até mesmo do próprio campo.

A plurifuncionalidade desses espaços, a partir da diversificação das atividades das famílias que residem no campo; o fato desses territórios se constituírem de maneira esparsa e entremeada à cidade, dificultando compor um imaginário cartesiano de espaços definidos entre campo e cidade; a substituição da figura do camponês pelo do agricultor familiar constituem a ideia central de um “novo rural”. A esse fenômeno estão atrelados diversos conceitos: rururbanização; periurbanização, etc.2

De acordo com Vale & Gerardi (2006), esta vertente das teorias da urbanização do campo e do continuum rural-urbano apontam para um processo de homogeneização espacial e social que se traduziria por uma crescente perda de nitidez das fronteiras entre os dois espaços sociais e, sobretudo, o fim da própria realidade rural, espacial e socialmente distinta da realidade urbana. Para as autoras parece haver um empenho em propagar a existência de um Brasil urbano com uma sociedade moderna e globalizada. Entretanto, elas ressaltam que ainda existem regiões no país que guardam características rurais e agrícolas e que permanecem distantes dessa “modernidade”, ou seja, existe vida não-urbana além do limite do perímetro urbano, inclusive nos espaços muito próximos a ela, como é o caso do periurbano. Ora, o próximo termo periurbano denuncia isso.

Bombardi et al (2009) atenta para o que traz esses novos conceitos:

Entre essas ideias tem tomado força a “de novo rural”, segundo a qual o campo brasileiro tem se tornado mais moderno e cada vez menos agrícola e mais “plural”. Os camponeses, nesta concepção, vão deixando de sê-lo para tornarem-se agricultores familiares (uma espécie de pequenos empresários do campo) ou simplesmente assalariados. (BOMBARDI et al, 2009)

A autora alerta e enumera alguns dos grandes perigos nesta concepção, a saber: (1) não considera a peculiaridade do campesinato enquanto classe social e, portanto, negligencia a especificidade de sua ação e trajetória; (2) não há possibilidade de compreender a ação dos movimentos sociais no campo que têm como bandeira a execução de uma reforma agrária ampla.; e (3) não se consegue abarcar a transformação do território em toda a sua contraditoriedade pelo modo de produção capitalista.

Há, talvez, um equívoco, por parte desses pesquisadores do “novo rural” em termos de conceituação ao que se refere o urbano e rural. Conforme aponta Belusso (2008), o urbano e o rural são conteúdos ou fenômenos que movimentam e ditam a lógica para a (re) produção das

2 Alguns dos autores que trabalham com os conceitos do “novo rural”: Ambromovay; José Graziano da Silva;

José Eli da Veiga; Marcelo Lopes de Souza. A respeito de tais conceitos ver também: VALE, A. R. Expansão urbana e plurifuncionalidade no espaço periurbano do município de Araraquara (SP). 2005. 214f. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2005.

cidades e dos campos. Portanto, embora o desenvolvimento do modo capitalista de produção tenha trazido consigo o desenvolvimento e expansão do urbano, tornando-se este a síntese contraditória entre a cidade e o campo, não é correto afirmar que o urbano tenha eliminado a cidade e/ou o campo, como explica Oliveira (2004).

Em termos de contextualização histórica a respeito do surgimento de tais conceitos, Ramos Filho (2005) explica que, no final da década de 1990, o governo Fernando Henrique Cardoso implantou uma política agrária denominada de Novo Mundo Rural, ajustada à lógica neoliberal do Banco Mundial, na concretização da internacionalização das políticas públicas para o campo. Dentre as medidas tomadas pelo governo brasileiro à época estão:

(...)a difusão da concepção de alívio da pobreza rural, da substituição da questão agrária pelas políticas de desenvolvimento rural, do fortalecimento do agricultor familiar e negação da existência do camponês, assim como a implementação da reforma agrária de mercado. (RAMOS FILHO, 2005, p.135)

O autor denuncia, ainda, o processo de tentativa de despolitização da luta camponesa e seus respectivos movimentos sociais, a partir de ações sistemáticas conduzidas em três dimensões distintas e interligadas: a legal, a político-científico-ideológica e a midiabilidade:

Na dimensão legal, buscou-se a desmobilização dos movimentos sociais mediante a promulgação de leis e medidas provisórias na maioria das vezes controversas, a exemplo da introdução da MP n° 2.109-49 de 23 de fevereiro de 2001, que instituiu a exclusão da reforma agrária dos trabalhadores que ocuparam terras ou dos assentados de reforma agrária que apoiaram tal ato de desobediência civil, e proibiu, por pelo menos dois anos, a realização de vistoria em propriedades rurais que sofreram processo de ocupação (...)

Na I dimensão político-científico-ideológica, dispôs de uma importante rede de cientistas que deu suporte teórico e ideológico a projetos concebidos para o

desenvolvimento no campo brasileiro. Este pensamento com forte influência da

concepção de desenvolvimento existente em instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, ao mesmo tempo em que se constituiu em paradigma na academia, transformou-se em políticas públicas. Neste sentido, foram extintas linhas de créditos voltadas para o pequeno produtor da reforma agrária, a exemplo do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA) e sua substituição por linhas de crédito mais seletivas a exemplo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Outra política que vale destacar, por evidenciar esta intencionalidade de controlar a mobilização popular por terras, foi a criação do engodo do Acesso Direto à Terra (a reforma agrária pelo correio). (...) Para dar sustentação a esta postura constrói-se, teoricamente, o discurso e a prática política governamental com a centralidade e o fortalecimento da agricultura familiar nas políticas implementadas nos programas de desenvolvimento do capitalismo na agricultura.

A terceira dimensão é a da midiabilidade, compreendida aqui como a capacidade de um determinado ator ou grupo de atores formar um campo social dominado pela mídia. Com uma massiva e dispendiosa campanha publicitária, o governo FHC buscou confundir a opinião pública, induzindo-a a condenação dos trabalhadores organizados nos movimentos sociais em confronto (com o Estado, latifundiários e judiciário), manipulou informações para se propagar a ideia de novo rural ideal. Para elevar o mérito do Novo Mundo Rural, o governo pagou campanha publicitária em horário nobre cujo slogan era: Pra quê pular a cerca se a porteira está aberta? (RAMOS FILHO, 2005, p. 136-137)

Ora, o capital tende a se expandir em todos os setores da produção, abarcando tanto o campo, quanto a cidade, a indústria e a agricultura. Assim, apesar da expansão do capitalismo no campo apresentar o movimento de expropriação do camponês, com vistas a sua proletarização, ela também propicia as condições para que o camponês siga seu trabalho familiar na terra. Em muitos casos, o que ocorre é a subordinação, não de seu trabalho diretamente, mas de sua produção. A sujeição ao capital, nesse caso, se dá pela sujeição da renda da terra, ao subordinar a produção camponesa, como atesta Oliveira (2007):

Na agricultura, esse processo de subordinação das relações não-capitalistas de produção se dá, sobretudo, pela sujeição da renda da terra ao capital. O capital redefiniu a renda da terra pré-capitalista existente na agricultura. Ele agora apropria- se dela, transformando-a em renda capitalizada da terra. É neste contexto que se deve entender a produção camponesa: a renda camponesa é apropriada pelo capital monopolista, convertendo-se em capital. (OLIVEIRA, 2007, p.40)

Segundo Bernini (2009), de fato, as relações camponesas de produção são recriadas pelo capitalismo como uma forma de permitir a produção do capital. Entretanto, essa recriação se dá de forma contraditória uma vez que o movimento do capitalismo ao mesmo tempo tem o sentido de reduzir as possibilidades de formas não-capitalistas de produção. Como explica Martins (1996):

A produção capitalista de relações não-capitalistas de produção expressa não apenas uma forma de reprodução ampliada do capital, mas também a reprodução ampliada das contradições do capitalismo ± o movimento contraditório não só de subordinação de relações pré- capitalistas, mas também de criação de relações antagônicas e subordinadas não-capitalistas. Nesse caso, o capitalismo cria a um só tempo as condições de sua expansão, pela incorporação de áreas e populações às relações comerciais, e os empecilhos à sua expansão, pela não mercantilização de todos os fatores envolvidos, ausente o trabalho caracteristicamente assalariado. (MARTINS, 1996, p.21)

Daí ser para a autora, um equívoco interpretá-los (o urbano e o rural) como setores ou zonas, embora tal leitura seja até firmado em lei, tal como a Lei do Perímetro Urbano para regular a arrecadação do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) que no campo equivale ao Imposto Territorial Rural (ITR).

Todavia, contraditoriamente, a consideração da complexidade de tal questão pelo poder público é destacada por Simone Miketen (2013) ao apresentar o decreto municipal de 51.801 de 2010, que regulamenta o Programa de Agricultura Urbana e Perirubana no Município de São Paulo e que reconhece a presença de agricultores no perímetro urbano. Miketen (2013) questiona o próprio conceito de agricultura periurbana que pode funcionar bem para cidades concêntricas como as europeias. Em São Paulo o crescimento é irregular e

nas franjas da cidade de forma que a agricultura ocorre entremeada aos remanescentes florestais e circunda áreas de urbanização precária, ocupando, portanto, espaços não específicos ou regulares, mas, sobretudo, periféricos.

Para Duvernoy (2002), as relações entre a extensão urbana e o espaço agrícola podem ser analisados como a difusão espacial de um front de urbanização em um espaço agrícola que mal resiste como o resultado de estratégias fundiárias dos grandes proprietários de terras, estratégias inscritas nas políticas de urbanização através de suas redes de poder. A expansão indevida do perímetro urbano sobre áreas em que predomina produção agrícola pode desestabilizar a atividade produtiva. A tendência de as propriedades serem fragmentadas, o surgimento de loteamentos e a elevação do preço de mercado das terras são fatores que influenciam nessa direção.

Mendoza (1987), apresenta a possibilidade de discussão do espaço periurbano em termos de espaços periféricos, em função de processos sociais e não de tipos de espaços (rural e urbano). Segundo a autora, os pesquisadores que trabalham nessa linha de pesquisa, como Dematteis (1982), entendem que o crescimento periférico dos espaços urbanos não pode ser interpretado como um fenômeno especifico nem estudado por si mesmo posto que constituiria uma das formas e um dos momentos da lógica da urbanização capitalista para melhor valorização possível do território.

Mendoza (1987) explica que a circulação do capital conduziria a um movimento de valorização diferencial – com caráter recorrente e provisório - de frações determinadas do território. Assim, seriam definidas espaços supervalorizados e espaços periféricos que desempenhariam um papel de reserva de valor dentro do território.

Dessa forma, se parte de uma análise do espaço social, a partir dos mecanismos sociais em curso (o estágio do modo de produção e suas novas formas de reprodução da força de trabalho) para chegar às formas de organização do espaço provisoriamente resultantes. Segundo Dematteis (1982, p.140) “(...) esta hipótese dá lugar a fortes descontinuidades

regionais do fenômeno posto que as associa à preexistência de estruturas territoriais historicamente diferenciadas”.

Nesse sentido, a abordagem territorial parece ser um caminho para se compreender as relações e complementaridades que acontecem entre os espaços urbano e rural, seus conflitos, as redes, as relações de poder, as formas de ligação campo-cidade.