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Além disso, os governos reconhecerão o direito desses povos de criar suas próprias instituições e

242 ANTUNES, Eva Entrev Cit.

CAPÍTULO 3: AS RELAÇÕES SOCIAIS ESTABELECIDAS A PARTIR DO PAPEL DAS MULHERES

3. Além disso, os governos reconhecerão o direito desses povos de criar suas próprias instituições e

sistemas de educação, desde que satisfaçam normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em regime de consulta com esses povos. Recursos adequados deverão ser disponibilizados para esse fim.276

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDBEN, nº 9394/1996 também prevê a garantia dos processos próprios de aprendizagem: Artigo 32, § 3º: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”277.

A legislação dá suporte ao direito que as crianças indígenas têm de em suas aldeias receberem uma forma de ensino e aprendizagem que seja possível aplicá-la em suas vidas, valorizando suas culturas. Garante também aos povos indígenas manterem vivas as suas formas próprias de educar.

Adir Casaro Nascimento et all consideram que estudos sobre os processos próprios de aprendizagem da população indígena brasileira, no contexto de suas particularidades, têm sido escassos, considerando os aspectos específicos destes processos enquanto métodos/formas de ensinar e aprender, transferidos para as obrigações e responsabilidades da escola indígena diferenciada e específica, em uma perspectiva

276 Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente

à ação da OIT / Organização Internacional do Trabalho. Brasilia: OIT, 2011. pp 35-36. Disponível em

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf. Acesso em 16/05/2016.

277 BRASIL: Presidência da República/ Casa Civil/ Subchefia para assuntos

jurídicos. Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em 16.05.2016.

intercultural, em que a dinâmica se dá a partir dos movimentos cognitivos e subjetivos de percepção e compreensão do mundo e de si mesmos.278

Para Antonella Tassinari e Clarice Cohn, os processos próprios de ensino e aprendizagem têm se revelado os mais difíceis de incorporar às experiências escolares. Há pouco material e pouca ideia do que sejam esses processos próprios de aprendizagem que ressaltam a importância da produção dos corpos (dietas alimentares, reclusões, técnicas corporais).279

José Paulo Gutierrez e Antonio Hilário Aguilera Urquiza, ao pesquisarem a respeito dos processos próprios de aprendizagem das crianças Guarani e Kaiowa na aldeia Laranjeira Ñanderu, Rio Brilhante, MS, verificaram que:

O processo de aprendizagem inicia-se desde que a criança tem uma identidade (o que geralmente ocorre a partir do ritual de nominação/batismo) na aldeia e cada família, iniciando pelas mulheres (avó, mãe, noras) supervisiona as tarefas desenvolvidas por elas. Após, acompanhando o ciclo de crescimento a criança recebe a educação dada pelos homens. Somente após esse processo de aprendizagem é que os alunos indígenas ficam aptos a buscar a escolarização nas escolas públicas.280

Na dissertação de mestrado intitulada: “Educação escolar indígena e os processos próprios de aprendizagens: espaços de inter-relação de

278 NASCIMENTO, Adir Casaro, (et all). A etnografia das representações

infantis Guarani e Kaiowá sobre certos conceitos tradicionais. In: Revista

Tellus, ano 9, n. 17, p. 187-205, jul./dez. 2009. Campo Grande – MS. p. 189.

279 TASSINARI, Antonella e COHN, Clarice. Educação indígena entre os

Karipuna e Mebengokré-XikrIn: uma abertura para o outro. In: TASSINARI,

Antonella Maria Imperatriz; GRANDO, Belini Salete; ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos (Orgs). Educação Indígena: reflexões sobre noções nativas de infância, aprendizagem e escolarização. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012. p. 254.

280 GUTIERREZ, José Paulo e URQUIZA, Antonio Hilário. Processos próprios

de aprendizagem de crianças indígenas Guarani e Kaiowá na aldeia Laranjeira Ñanderu, Rio Brilhante, MS: perspectivas e desafios. In: Anais do 6º SBECE e

3º SIECE: Educação transgressão e narcisismo. 01 a 03 de junho de 2015, ULBRA/CANOAS/RS. Disponível em:

http://www.sbece.com.br/resources/anais.pdf. Acesso em 16 de maio de 2016. p. 07.

conhecimentos na infância Guarani/Kaiowá, antes da escola, na Comunidade Indígena de Amambai, Amambai – MS”, Elza Vasques Aquino pode constatar que as crianças Guarani-Kaiowá desfrutam de todos os momentos da vida social para encarar a vida; aprendem e desenvolvem significados que dão sentido à vivência do ser humano. Adquirem no dia a dia as atribuições de um ser ativo com a complexidade que só constroem participando e imitando os afazeres que lhes são atribuídos. São esses conhecimentos que dão direção e rumo à caminhada no caminho tortuoso neste mundo moderno.281

Elza observou que o aprendizado das crianças acontece por meio de brincadeiras, imitação, observação e de diversas maneiras, em uma escola informal sem regras. Elas vão aprendendo e se complementando para sanar suas necessidades. Assim, vão assimilando os jeitos reais de cada fase e cumprindo os rituais de passagem que cada povo tem.282

Ainda, para Adir,

Os processos próprios de aprendizagem, ou seja, o ato de ensinar e de aprender, se dão pela curiosidade (para aprender é preciso perguntar), pela observação da natureza e das outras pessoas, pela imitação (inspiração naquilo que a rodeia), pela autonomia, oralidade e escuta respeitosa da palavra, pelo diálogo e silêncio e pela repetição (para aprender é preciso fazer muitas vezes).283

O entendimento dos processos próprios de aprendizagem diz respeito ao que nasce e se desenvolve dentro da comunidade. É um ato contínuo. Porém, o que pode ultrapassar a convivência nas famílias? O que se pode levar para a escola? Como se coadunam os objetivos da escola

281 AQUINO, Elza Vasques. Educação escolar indígena e os processos

próprios de aprendizagens: espaços de inter-relação de conhecimentos na infância Guarani/Kaiowá, antes da escola, na Comunidade Indígena de Amambai, Amambai – MS. Mato Grosso do Sul: Universidade Católica Dom Bosco/UCDB – Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado – Diversidade Cultural e Educação Indígena. Dissertação de Mestrado, 2012. p. 93

282 Idem, p. 93

283 NASCIMENTO, Adir Casaro. Os processos próprios de aprendizagem e a

formação dos professores indígenas. In: Revista Práxis Educativa.

Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Educação. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2006-2012, v. 7. Número Especial. Semestral.

com aquilo que preconiza a legislação e os interesses dos indígenas a respeito do ensino e da aprendizagem? Algumas respostas são possíveis a partir daquilo que se presencia na formação dos professores indígenas e o que cada comunidade tem como expectativa para com seus filhos e filhas.

Na Aldeia de Linha Limeira, os processos próprios de aprendizagem estão relacionados às expectativas das famílias e à diversidade que envolve as questões Inter étnicas, territoriais e com a perspectiva de trabalho e condições melhores de vida no futuro. Considera-se ainda as diferenças internas, a multiplicidade de relações envolvidas no contexto da comunidade, além das mudanças com a perspectiva de auto sustentabilidade preconizada no projeto da ONG Outro Olhar.

Para o sr. Júlio a escola é positiva, “é bom os filhos irem pra escola”. Acrescenta que hoje, o “estudo vale mais que o caminhar”, antes os Guarani preferiam caminhar e hoje fica difícil caminhar. Conta que seu pai não tinha estudo, mas o conselho que ele dava aos filhos era para ficar no lugar, o que significava plantar e esperar para colher, “plantar a fruteira e esperar ela dá o fruto”. Isso leva um tempo longo, um período de crescimento de uma pessoa até a vida adulta. Assim, é importante que os filhos estudem, aprendam.284

A constatação do sr. Julio é um importante elemento de ressignificação, inclusive de mão dupla. Ir a escola, ou estudar significa uma nova perspectiva para o caminhar. Na escola se faz uma caminhada diferente, com outro significado. Ao mesmo tempo em que frequenta a escola espera a árvore plantada dar frutos, que também ressignifica as relações com a natureza, com a agricultura e com os parentes. A escola também ganha um novo sentido à medida que incorpora, principalmente em seu currículo, conhecimentos e valores da vida Guarani.

Nesse sentido, considerar os processos próprios de aprendizagem significa respeitar o conhecimento tradicional Guarani passado de geração a geração através da oralidade. Através da palavra na Opy, do modo de ser específico do Guarani, e ainda percebendo que as comunidades e aldeias estão em contato permanente com a sociedade envolvente e com elementos que interferem direta ou indiretamente na cultura do grupo.

284 BENITE, Júlio. Depoimento. [19 jan. 2016]. Caderno de Campo Helena

Tassinari considera que há dificuldade das instituições que trabalham com as populações indígenas, especialmente o Estado, por meio das escolas, de respeitar os processos próprios de aprendizagem, pondera que isto está relacionado à maneira etnocêntrica de conceber a escola, os livros didáticos e outros mecanismos que envolvem a escola.

Há, no entanto, uma grande dificuldade de elaborar políticas públicas que respeitem “os processos próprios de aprendizagem”, conforme previsto na legislação. Acredito que a grande dificuldade em respeitar “os processos indígenas de aprendizagem” decorre da mesma dificuldade etnocêntrica de que sofrem os livros didáticos: a recusa em reconhecer a legitimidade de conhecimentos que não são transmitidos pela linguagem oral e, principalmente, por intermédio da escrita.285

Para respeitar e considerar os processos próprios de aprendizagem, Tassinari sugere que há de se levar em conta uma série de elementos que são fundamentais para que a escola indígena seja diferenciada, além daqueles já apontados pelos próprios Guarani e pelas pessoas que estão em contato com a escola indígena. Entre estes elementos destaca-se: 1) aprendizagem por meio dos sonhos - o sonho é uma fonte legítima e importante de saber; 2) aprendizagem “incorporada” – especialmente nos ritos de iniciação que incluem reclusão – reconhecimento de que certos saberes só são adquiridos em condições corporais específicas; 3) saberes que não são transmitidos oralmente, mas que se apoiam em gestos e imagens – o silêncio também é fonte de conhecimento; 4) saberes que não são transmitidos dos adultos às crianças, mas das crianças mais velhas às mais novas. A escola deveria reconhecer e respeitar esses diversos processos de transmissão de conhecimentos, evitando que as rotinas escolares venham a prejudicar a sua realização. 286

Nesse sentido, percebe-se que para os indígenas, a educação é um processo global. A cultura é ensinada e aprendida em termos de socialização integrante. A educação é o processo pelo qual a cultura atua sobre os membros da sociedade para criar indivíduos ou pessoas que

285 TASSINARI, Antonella. Antropologia, educação e diversidade.

Diálogos transversais. Florianópolis: UFSC/NEPI, 2007. p. 6.