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séculos XVI-XVII. In: CUNHA, Manuela Carneiro da História dos Índios no

1.3. Os Guarani dessa história – os “livros vivos”

Ao realizar a pesquisa a partir da História Oral, as pessoas entrevistadas são a base para os documentos que o historiador cria e utiliza. Nesse sentido, essas pessoas entrevistadas podem ser chamadas de “livros vivos”162. As pessoas mais velhas são as autoridades da oralidade, componente por excelência da História Oral. Não é a oralidade somente que se verbaliza pela fala, mas no entendimento que Cléria B. da Costa,

A oralidade não compreende apenas os sentidos da verbalização, da fala e do narrador. É também uma produção do corpo (gestos, olhares) e da voz (múltiplas tonalidades), ou seja, da performance que amplia os sentidos da fala verbalizada e assegura a manifestação do sensível às narrativas orais. Em outros termos, o argumento se sustenta na compreensão de que embora o corpo não fale, ele se exprime, ele confere visibilidade às

162 “Livros vivos” foi uma expressão muito usual no decorrer do Curso de

Magistério Guarani Kuaa Mbo’e (2003-2010), pois os alunos do curso recorriam aos mais velhos de suas aldeias para realizarem suas pesquisas e entenderem a história e a cultura dos antepassados. Significa dizer que as pessoas mais idosas Guarani são detentoras de conhecimento e sabedoria a respeito dos assuntos relacionados ao modo de vida, aos costumes, à língua, à educação. São eles que mantém viva a cultura e a tradição e repassam aos mais jovens através da oralidade na casa de reza, nas rodas de chimarrão ou de petynguá ao redor da fogueira.

intenções, às atitudes, aos gestos, às emoções do narrador.163

Neste sentido, considera-se fundamental relacionar um pouco da biografia de cada uma dessas pessoas, com o intuito de visibilizar as testemunhas da história explicitada aqui. Através delas pode-se perceber as relações de parentesco, os papéis sociais desempenhados na comunidade, as formas de liderança e as relações sociais, políticas e religiosas presentes no cotidiano das pessoas, além de aspectos pessoais e costumes que nutrem e praticam no seu dia-a-dia.

A formação e escolha das pessoas entrevistadas partiu do princípio da História Oral explicitado por Meihy e deu-se a partir da dinâmica dos próprios Guarani, na composição das famílias extensas e suas redes de parentesco, suas relações e as contribuições para montar a história da comunidade e o texto aqui apresentado.

O pesquisador, o historiador transforma as narrativas em documento escrito, considerando os depoimentos orais, os relatos, as entrevistas fontes de pesquisa, porém os narradores são mais do que fontes, são coadjuvantes e apresentam narrativas vivenciadas pela experiência, pelo conhecimento e pela sabedoria. São os guardiões da memória e não apenas suas memórias pessoais, mas memórias coletivas, considerando o povo, a formação cultural e aquilo que pode ser contato e ser dito.

O Guarani não revela e confia facilmente suas memórias. Há de se estabelecer confiança, respeito e empatia para que ele possa expressar os fatos, as crenças, o modo de vida.

Os guarani não são uma simples justaposição de sincronias distribuídas por diversos espaços geográficos, com denominações e modos de ser dialetalmente diferenciados. A etnia se articula também em torno de tradições e memórias que lhe dão profundidade e sentido histórico. Reencontrar a memória autêntica desses povos, mesmo através

163 COSTA, Cléria Botelho da. Corpo e voz: a magia das narrativas orais. In:

as histórias dos outros, é objeto formal da Etnohistória.164

A Aldeia de Linha Limeira é considerada pelos Guarani, o berço de famílias. Em aldeias do Litoral Catarinense e de comunidades de São Paulo e Rio de Janeiro há pessoas que nasceram, viveram e passaram pela Aldeia de Linha Limeira em algum momento da vida. As famílias Antunes e Martins têm na comunidade a referência de origem e raiz de suas famílias, bem como as famílias Benite e Mariano.

A configuração e a disposição das famílias na comunidade estão representadas na etnocartografia feita pelo Professor Ari Mariano. O professor Ari conhece bem a comunidade, nela nasceu e vive até hoje com a família. Conhece todas as famílias que moram no local, assim como a história e outras questões relacionadas à comunidade. Por diversas vezes foi cacique e professor da escola. Cursou o Magistério Guarani Kuaa Mboé e se mostra sensível a tudo que se passa na comunidade, exercendo sempre alguma forma de liderança. Atualmente é professor da EIEF Mbya Limeira, confecciona artesanato em madeira e é colaborador da ONG “Outro Olhar”.

Em uma roda de conversa nas atividades do OBEDUC165, em junho de 2015, a respeito da distribuição espacial das famílias na comunidade, prontificou-se a desenhar o mapa com a localização das moradias, construções, nascentes, rios da comunidade. Este mapa foi cedido pelo professor Ari e por meio dele se tem a localização das famílias, escola, posto de saúde, igrejas, hidrografia, estradas e limites. Na parte superior do mapa localiza-se a mata e o relevo é elevado, com morros, na parte inferior do mapa fica a parte baixa da comunidade,

164 MELIÀ, Bartomeu: SAUL, Marcos Vinicius de Almeida; MURARO, Valmir

Francisco. O Guarani, uma bibliografia etnológica. Santo Angelo/RS: FUNDAMES e Centro de Cultura Missioneira. 1987, p. 55.

165 As atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto OBEDUC compreendem

pesquisa, extensão, formação de professores, elaboração de material didático específico e diferenciado, de acordo com as demandas apresentadas pelos professores e lideranças da TI Xapecó. Estas atividades ocorrem de forma itinerante entre as escolas da TI Xapecó e LABHIN/UFSC e envolvem os bolsistas acadêmicos de Iniciação Científica LABHIN/HST/UFSC, professores bolsistas Kaingang e Guarani, bolsitas de Pós-Graduação LABHIN/PPGH/UFSC e a coordenação. Nesta ocasião a equipe realizava a elaboração de material didático específico que resultou no livro: NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe, ROSA, Helena Alpini (Orgs). Kanhgág ag vĩ fã – O modo de falar a língua Kaingang na Terra Indígena Xapecó, SC. Jaraguá do Sul, SC: Impressul Editora, 2016.

formando um pequeno vale, onde também se encontra o Rio Limeira que desemboca no Rio Chapecó, próximo dali.

Figura 24 – Desenho do Mapa da Aldeia de Linha Limeira – Etnocartografia

Fonte: Ari Mariano, desenho realizado na EIEF Mbya Limeira em 17 de junho de 2015.

A formação e moradia das famílias possibilita perceber a dinâmica da família extensa166 e que mantém as relações parentais em uma comunidade específica, mas que se ramifica para outras comunidades que

166 A família extensa é uma característica social e de parentesco do povo Guarani.

As comunidades são formadas pelas relações de parentesco existentes entre as famílias. Há uma família que agrega as demais geralmente é com um Xeramoĩ e uma Xejariy (avô e avó respectivamente), com os filhos e filhas que se casam e se estabelecem no entorno. Muitas vezes os sobrinhos e netos também se estabelecem na mesma comunidade.

tem alguma relação com os antepassados. Nas famílias extensas há sempre uma pessoa agregadora, que geralmente é o Xeramoĩ (avô) ou o Karaí. Às vezes também é a Xejariy (avó), ou mãe, depende das circunstâncias e situações relacionadas e explicitadas anteriormente.

A organização social das famílias Guarani é marcada por linhagens ou parcialidades. Formam famílias nucleares que ocupam espaços determinados nas comunidades. As famílias extensas configuravam a estrutura social e econômica de produção e consumo e geralmente era composta pelo casal, as filhas casadas, os genros e a geração seguinte. Com os sucessivos contatos ocorridos historicamente, presencia-se a fragmentação familiar, no entanto há o esforço dos mais velhos em agregar a família o máximo possível.167

1.3.1. A dinâmica narrativa e a formação da “rede”

Após o tempo de convivência com os Guarani, se percebe que estudar qualquer temática que os envolva significa estudar organização social familiar. Nesta perspectiva a rede formada para a narrativa aqui constituída parte da experiência das pessoas e aquilo que elas guardam na memória, constituindo inclusive seu cotidiano. Para Walter Benjamin168 o narrador “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes”. A experiência é a fonte passada de pessoa para pessoa. A narrativa realizada nas entrevistas não deixa de ser também fruto da dinâmica vivenciada pela pessoa que narra, pois, o Guarani conserva suas tradições e cultura devido ao recurso da narrativa, especialmente dos mitos, das crenças e costumes. Benjamin utiliza a alegoria do tecer, porque para ele a pessoa que ouve deve se esquecer de si mesma e quanto mais tece, mais grava aquilo que está sendo dito. O que é muito próprio para os Guarani, pois conservam o tecer na confecção de artesanato, especialmente trançando e formando cestarias.

No contexto da comunidade da Aldeia de Linha Limeira é possível afirmar que trabalhar com as memórias e com o cotidiano significa tecer com as pessoas as representações daquele lugar. Suas narrativas são fruto daquilo que faz sentido para o grupo tanto no