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As memórias reverberam, talvez o que mais profundamente ficou esteja no esquecimento, são coisas ainda a serem elaboradas no tempo, trago o que é possível rememorar nesse agora, diante dessa caminhada, para sentir e pensar a educação, compartilho algumas imagens que carrego em mim.

O diálogo entre os arquivos da pesquisa revela pequenos cristais que percebo da experiência, trago uma sequência de imagens monadológicas que me colocam a pensar sobre sua inconclusão.

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A imagem de meu traço a lápis no papel, esboço inicial do pensamento sobre a pesquisa, e a escrita da pesquisa

o grafismo, escrita indígena que ainda estamos aprendendo na aproximação através do diálogo intercultural

A relação entre a mão, o olho e a alma em diálogo com as culturas indígenas a mão penetrada pelo jenipapo, os olhos atentos de Nikita e o fogo ancestral. O conhecimento é construído a partir da racionalidade estética, razão e sensibilidade, juntas e em diálogo com outras formas de saberes.

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Nikita carrega consigo a memória de seu povo, de sua cultura, e compartilha conosco suas narrativas em gestos, objetos, fotografias, pintura corporal, canto e dança, esses encontros ocorrem em um tempo fragmentado, o da memória. Os espaços se entrecruzam, Nikita narra para nós o cotidiano escolar indígena, as crianças indígenas estão uniformizadas de chinelos, o grafismo pintado na parede da escola indígena carrega a escrita do povo Guarani, os armários da nossa escola carregam os livros, e os sujeitos da experiência carregam suas sementes, suas memórias.

Os estudantes começam a perceber a escola indígena, por meio de questionamentos, observando os detalhes, comparando, vão compreendendo as dissonâncias entre a nossa escola e a escola indígena, percebem que há outras maneiras possíveis de estar no espaço escolar, de aprender e produzir conhecimento. Através da presença de Nikita na escola, o encontro intercultural proporciona o entrecruzamento de espaços e tempos, deslocando e ampliando nossas percepções sobre as escolas e sobre nós mesmos.

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Quando olho para a fotografia com os sujeitos da experiência, todos reunidos, e coloco ao lado a pintura da dança do povo tapuia, percebo um entrecruzamento no tempo histórico. Cada corpo carrega consigo marcas culturais, nos gestos, nos sorrisos, nos olhos, na pele, no corpo que celebra, na alma, na memória. Estes sujeitos históricos, no espaço escolar, de forma alguma se colocam apartados de seus corpos, na sala de aula eles dançam como os tapuias, celebram a vida, ousam “ficar descalços”

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Por alguns instantes os pés estão no alto e a cabeça no chão, o corpo é o todo, nem parte, nem apartado, nem hierarquizado, o corpo presente na experiência. O chão não é sujeira, é o abraço do ancestral que impulsiona a redenção.

O arco do guerreiro tensiona a flecha mirando para o alto, quantos pequenos guerreiros temos na escola? Cauã joga seu corpo sobre a esteira de taboa, o salto do tigre pode ocorrer a qualquer momento, no lugar mais inusitado, como num lampejo, passado e presente se apresentam no mesmo instante. O corpo carrega nos detalhes a herança cultural, quanto conseguimos perceber dessas pequenas marcas que perpassam velozes no cotidiano escolar?

Descolonizar-se começando pelos pés.

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As crianças puderam entrar em contato com o barro e nele deixar a marca cultural com que Nikita nos presenteou, o grafismo da resistência, a memória do povo Guarani, amassar o barro e dialogar com suas rachaduras, corpo a corpo, o corpo na arte, a pintura corporal. As memórias emergem e surgem na superfície da pele? Ou o jenipapo toca a pele e aprofunda-se na memória? Os sujeitos do conhecimento mergulharam na interculturalidade através da materialidade da pintura corporal, da modelagem, e essas marcas culturais agora têm o corpo como morada, a memória dos sujeitos históricos, como sementes.

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A Nikita se multiplicou, agora são as Nikitas, pelo olhar singular dos estudantes, e eles continuam me perguntando:

-Professora, e a Nikita?

Nikita foi nosso olho d'água, que molhou as sementes, suas águas resistiram na cidade subterrânea, resistiram aos esqueletos da modernidade.

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As crianças acolhem a Nikita em seus desenhos, elas apresentam a Nikita através de um olhar singular, construído culturalmente, Nikita não é só uma, é uma pluralidade de significações e sentidos a partir da experiência dos encontros interculturais. Empatia e estranhamento ao mesmo tempo, a imagem indígena é uma verdade que se dissipa, não é conclusiva, é uma leitura do sujeito que se atualiza em seu momento histórico.

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Moema, pintura romântica e violenta subjaz na cidade subterrânea moderna, as elegantes passagens parecem nos confortar com um futuro promissor, visão positivista da história. As passagens em um tom sombrio revelam a história da barbárie indissociável do progresso. O trauma necessita ser suspenso, Nikita, ignorando o esqueleto moderno arquitetônico se nutre da água que verte do olho d'água.

Mergulho na imagem enigmática do encontro entre o Anjo da história e os sujeitos da experiência, vejo dissonâncias, detalhes, a esteira de taboa descansa debaixo de gaiolas que aprisionam equipamentos inutilizados, uma criança se esconde embaixo da mesa, uma tragédia parece estar sendo anunciada. Outra criança encontra esconderijo em Nikita, e busca resistir à tempestade que a impele ao progresso. Alguns, de costas, olham em direção à porta, outros no chão despem-se de seus calçados. Enquanto esses anjos estão sendo impelidos para o futuro, seus olhos fixam-se nas ruínas em seu entorno, na esperança de outros futuros possíveis, as fantasmagorias-alegorias, plenas de dialética em paralisia, nos atravessam em imagens que nos habitam.