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Ensino de artes e suas potencialidades para abordagens das relações étnico-raciais na escola : as culturas indígenas e seus contextos urbanos

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Academic year: 2021

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

MARIANA SOARES LEME

ENSINO DE ARTES E SUAS POTENCIALIDADES PARA ABORDAGENS

DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA: AS CULTURAS

INDÍGENAS E SEUS CONTEXTOS URBANOS.

CAMPINAS 2020

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ENSINO DE ARTES E SUAS POTENCIALIDADES PARA ABORDAGENS DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA: AS CULTURAS INDÍGENAS E SEUS

CONTEXTOS URBANOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Educação Escolar, na área de concentração Educação Escolar.

Orientadora: Profa Dra. Adriana Carvalho Koyama

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DE DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA MARIANA SOARES LEME E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ADRIANA CARVALHO KOYAMA

CAMPINAS

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Biblioteca da Faculdade de Educação Rosemary Passos - CRB 8/5751

Leme, Mariana Soares,

L542e LemEnsino de artes e suas potencialidades para abordagens étnico-raciais na escola : as culturas indígenas e seus contextos urbanos / Mariana Soares Leme. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

LemOrientador: Adriana Carvalho Koyama.

LemDissertação (mestrado profissional) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

Lem1. Arte - Ensino. 2. Relações étnicas. 3. Relações raciais. 4. Narrativas. 5. Memória. 6. Educação das sensibilidades. I. Koyama, Adriana Carvalho, 1962-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Arts education and its potentialities for approching ethnical and racial relations in school : indigenous cultures and theirs urban contexts

Palavras-chave em inglês: Art education Ethnic-racial relations Narratives Memory Education of sensibilities

Área de concentração: Educação Escolar Titulação: Mestra em Educação Escolar Banca examinadora:

Adriana Carvalho Koyama [Orientador] Guilherme do Val Toledo Prado

Nara Rúbia de Carvalho Cunha Sumaya Mattar

Data de defesa: 27-02-2020

Programa de Pós-Graduação: Educação Escolar Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9007-8087 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/3198925686547791

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ENSINO DE ARTES E SUAS POTENCIALIDADES PARA ABORDAGENS

DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA: AS CULTURAS

INDÍGENAS E SEUS CONTEXTOS URBANOS.

Autora: Mariana Soares Leme

COMISSÃO JULGADORA:

Adriana Carvalho Koyama

Guilherme do Val Toledo Prado

Nara Rúbia de Carvalho Cunha

Sumaya Mattar

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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A cada passo da caminhada ficava mais claro que eu não estava só, que realmente nunca estive. Foram tantas pessoas que me ajudaram a caminhar nesta escolha, construir esta pesquisa, então a elas dedico meus agradecimentos:

À toda Emef Anália Ferraz da Costa Couto, agradeço aos estudantes, aos docentes, equipe gestora, funcionários e familiares, pessoas com as quais compartilho os desafios diários da educação.

À querida amiga Nikita Guarani Nhandeva por tão generosamente ser colaboradora nessa pesquisa.

Aos membros da banca de qualificação e defesa Guilherme do Val Toledo Prado, Sumaya Mattar, Nara Rúbia de Carvalho Cunha, Ana Maria de Campos, Claudia Amoroso Bortolato e Alessandro Oliveira, pela leitura comprometida e importantes contribuições para a escrita.

À minha orientadora Adriana Koyama pela sensibilidade e generosidade ao longo de todo processo, sou grata por todos os nossos encontros que ampliaram tanto meu olhar. Estamos juntas!

Aos professores do Mestrado Profissional em Educação Escolar da Faculdade de Educação Unicamp pelo respeito e comprometimento com os quais acolheram a primeira turma do MP. Aos funcionários da Unicamp, principalmente da Faculdade de Educação, que são sempre muito solícitos e cuidadosos conosco.

Aos amigos que já moravam em mim e àqueles com que fui presenteada nesta caminhada, cada um à sua maneira, me deram o apoio necessário para que eu não desistisse, pessoas que nos momentos de cansaço me traziam conforto e alegria, para que eu pudesse continuar e concluir cada passo dessa caminhada: Karla Beck, Simone Silva, Rafael Cardoso, Marcia Bichara, Renata Frauendorf, Thais Cipolini, Anápuaka Tupinambá, Marcos Aguiar, Tamikuã Faustino, Alexandra Krenak, Aline Nunes, Pedro Solero, Natália Brescancini, Marina Mayumi, Rodrigo Batista, Raquel Hipolito, Gisele Pinto, Sandra Rossi, Zilda Farias e Robson B. Sampaio.

Aos amigos de caminhada do Curso de Extensão Histórias e Culturas Indígenas do CIMI/UNILA, esse encontrou me conectou com as realidades do Brasil e aqueceu meu coração. A todos os colegas do Mestrado Profissional em Educação Escolar da Unicamp, foi um encontro muito potente, eu me vejo em vocês.

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Agradeço a Walter Benjamin pela dedicação em construir um conhecimento tão profundo, algumas de suas angústias se encontraram com as minhas, espero poder trazer um pouco de esperança desses encontros telepáticos, sou grata também à Maria Carolina Bovério Galzerani, que nos trouxe as reflexões benjaminianas para o campo da educação.

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Convidamos estudantes de Ensino Fundamental de uma escola pública municipal de Campinas a participarem de uma experiência de aproximação das culturas indígenas em contexto urbano, visando ampliar seu reconhecimento; apresentar epistemologias e saberes indígenas dentro das práticas de ensino de artes; aprofundar a compreensão do conceito de interculturalidade e do reconhecimento étnico na educação. Sobre tais experiências em sala de aula, a professora-pesquisadora reflete em uma pesquisa narrativa, com a construção de memórias de experiência, em diálogo com as contribuições de Walter Benjamin relativas aos entrelaçamentos entre estética, memória e cultura.

Palavras-chave: ensino de arte; relações étnico-raciais; narrativa; práticas de memória; educação das sensibilidades

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We invited elementary school students from a municipal public school in Campinas to an experience of approximation of indigenous cultures in urban context, aiming to increase their recognition; present indigenous epistemologies and knowledge within the art education practices; deepen understanding of the concept of interculturality and ethnic recognition in education. About these experiences in the classroom, the teacher-researcher reflects in a narrative research, with the construction of memories of experience, in dialogue with the contributions of Walter Benjamin concerning the intertwining between aesthetics, memory and culture.

Keyword: art education, ethnic-racial relations, narrative, memory practices, education of sensibilities

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CECI – Centro de Educação e Cultura Indígena

CEFORTEPE – Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional “Prof. Milton de Almeida Santos”

EMEF – Escola Municipal de Educação Fundamental FUNAI - Fundação Nacional do Índio

GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada ISA – Instituto Socioambiental

MIPID – Memória e Identidade Promoção da Igualdade na Diversidade RANI – Registro Administrativo de Nascimento Indígena

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Figura 1 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 2 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 3 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 4 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 5- memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 6 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 7 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 8 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 9 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 10 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 11 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 12 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 13 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 14 - memorial, 2018, Mariana S. Leme Figura 15 - memorial, 2018, Mariana S. Leme

Figura 16 - estudante modelando argila, 2018, Mariana S. Leme Figura 17- rachaduras na argila, 2018, Mariana S. Leme

Figura 18 - liderança apresentando calendário indígena, 2018, Mariana S. Leme Figura 19 - Denilson Baniwa, Giocona Kunhã, arte gráfica

Figura 20 - Denilson Baniwa, 2017, acrílica s/tela Figura 21 - Victor Meirelles, Moema, 1866, óleo s/tela

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Figura 24 - encontro com Nikita na sala de informática, 2018, Karla L. Beck Figura 25 - estudante experimentando esteira de taboa, 2018, estudante Pietro Figura 26 - estudantes fazendo pintura corporal, 2018, Mariana S. Leme Figura 27 - estudante ralando jenipapo, 2018, Mariana S. Leme

Figura 28 - estudantes fazendo grafismos com a tinta de jenipapo, 2019, Adriana Koyama Figura 29 - estudante pintando o braço da colega, 2019, Adriana Koyama

Figura 30 - estudante observando a pintura no braço, 2019, Adriana Koyama Figura 31 - pintura sobre placa de argila

Figura 32 – grafismo Guarani

Figura 33 - registro sobre a experiência, estudantes 5ºano (1) Figura 34 - registro sobre a experiência, estudantes 5ºano (2) Figura 35 - registro da experiência, estudantes do 5ºano (3) Figura 36 - mão pintada com jenipapo, 2018, Mariana S. Leme

Figura 37 - estudante com grafismo Guarani na mão, 2018, Mariana S. Leme Figura 38 - estudantes 4ºano pintando tecido com grafismo, 2018, Mariana S. Leme

Figura 39 - mural com pinturas finalizadas dos estudantes do 4ºano, 2018, Mariana S. Leme Figura 40 - estudante do 4ºano fazendo máscara indígena, 2018, Mariana S. Leme

Figura 41 - estudo de márcara kayapó, 2018, Mariana S. Leme

Figura 42 - mural com máscaras produzidas pelos estudantes 4ºano, 2018, Mariana S. Leme Figura 43 - estudante 6ºano escrevendo palavra Guarani, 2019, Mariana S. Leme

Figura 44 - cumprimento Grarani, "Como você está?", 2019, Mariana S. Leme

Figura 45 - escola indígena Guarani, Aldeia Porto Lindo, 2018 Nikita Guarani Nhandeva Figura 46 – Nikita ao lado da fogueira na Aldeia Porto Lindo, 2018 Nikita Guarani Nhandeva

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Figura 48 - Nikita e Cauã conversando enquanto ela prepara a tinta, 2019, Mariana S. Leme Figura 49 - estudantes do 5ºano produzindo uma maquete da aldeia, 2019, Mariana S. Leme Figura 50 - Nikita, Cauã e Júlio conversando no dia da despedida, 2019, Mariana S. Leme Figura 51- poema feito para Nikita pela estudante do 5ºano, 2019, Mariana S. Leme Figura 52 - alegoria 1, 2019, Mariana S. Leme

Figura 53 - alegoria 2, 2019, Mariana S. Leme Figura 54 - alegoria 3, 2019, Mariana S. Leme Figura 55 - alegoria 4, 2019, Mariana S. Leme Figura 56 - alegoria 5, 2019, Mariana S. Leme Figura 57 – alegoria 6, 2019, Mariana S. Leme Figura 58 – alegoria 7, 2019, Mariana S. Leme Figura 59 - alegoria 8, 2019, Mariana S. Leme Figura 60 - alegoria 9, 2019, Mariana S. Leme Figura 61 - alegoria 10, 2019, Mariana S. Leme Figura 62 - alegoria 11, 2019, Mariana S. Leme Figura 63 - alegoria 12, 2019, Mariana S. Leme

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APRESENTAÇÃO...16

I – MEMORIAL DE FORMAÇÃO...20

Memoria(r)... 21

Objetos que me fazem lembrar...39

As escolhas que me tocam...42

O enraizamento do silêncio...44

Lugares de memórias sensíveis...44

II – ESCOLHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS...47

O olhar alegórico na narrativa...49

Alegoria e construção do conhecimento...50

Pesquisa (e) narrativa...52

O que é importante é o que realmente importa?...55

O barro – experiência e memória...57

Sementes armazenadas no pote de barro...62

A racionalidade e a sensibilidade na pesquisa...63

Alegoria e modernidade...66

O encontro entre os sujeitos da experiência...68

III – EXPERIÊNCIA NA CAMINHADA: A BORDA DA MATA OU LABIRINTO ...72

Que espaço temos para educação étnico-racial?...72

Escola indígena... 73

Estabelecer contato...79

Racismo... 83

Tempos cruzados... 85

IV – PRESENÇA INDÍGENA NO ESPAÇO ESCOLAR...89

Experiência, narrativa e memória: relações étnicas nos encontros com as artes...90

Eu e ela na escola...92

O eu e o 'outro'...96

Círculo dentro do quadrado...97

O corpo na experiência, tempo e espaço...101

Descolonizar os pés...103

Jenipapo na escola...109

O mapa... 109

Busca pelo jenipapo... 110

O pátio, a tinta e o desejo...110

Pintura corporal...112

Grafismo Guarani...117

Alegoria do jenipapo...121

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Jubartes... 126

Agora, sim!... 128

A interculturalidade na experiência docente...132

(Des)Encontros...132

Dupla docência... 133

Produzimos máscaras...136

Língua guarani... 139

Indígena em contexto urbano...143

Fomos aldeados?... 146

Cauã... 150

V- PARA NÃO CONCLUIR...158

Alegorias em mim...159

Reverberações da caminhada...179

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APRESENTAÇÃO

Educação é o território onde surge a pesquisa, a partir de meu envolvimento, enquanto professora de arte, com as questões étnico-raciais, em diálogo com a lei 11.645/08 que dispõe sobre a importância e obrigatoriedade, na educação, da presença de discussões que partem de duas importantes matrizes culturais que compõem a identidade brasileira, a cultura afro-brasileira e as culturas indígenas. Desde 2011 inicio uma abertura para que estas temáticas apareçam em meu plano de ensino em artes, começo uma caminhada que me fez chegar até aqui. A presente pesquisa possui o intuito de construir o reconhecimento das culturas indígenas no espaço escolar, bem como ampliar a visibilidade do tema, encontrar interlocutores e ressignificar minhas escolhas enquanto professora de arte.

Trabalhar com as culturas indígenas no ensino de Arte apresenta-se para mim como um grande desafio, uma vez que em minha formação de base não tive acesso ao tema, inclusive durante a graduação em Artes Plásticas. Dentro do espaço escolar, como professora, tive dificuldade em encontrar interlocuções sobre a temática indígena.

Experimentei momentos significativos junto aos indígenas de diversas etnias ao longo desses anos, nos quais pude compreender que para construir um trabalho coerente e responsável era necessário que eu começasse a compreender o território onde estou, relacionando-me com os indígenas no espaço urbano, e que, a partir das relações construídas com estes indígenas, conseguiríamos lançar flechas no horizonte e criar, com esses gestos, pontes para o diálogo intercultural.

É nessa trajetória que surge a pesquisa, da minha intencionalidade, como professora de arte, de construir um trabalho educacional cujo horizonte é o reconhecimento étnico-racial dos povos originários do Brasil. Para essa caminhada foram estabelecidos diálogos entre alguns sujeitos: primeiramente, entre eu e os estudantes da EMEF Anália Ferraz da Costa Couto, situada na cidade de Campinas-SP, em encontros semanais nas aulas de arte, com a especial participação, em três desses encontros, de Nikita Guarani Nhandeva, que mora em Valinhos-SP, cidade vizinha, há mais de trinta anos. Embora eu trabalhe com a temática indígena em todos os anos do ensino fundamental, elegi para a pesquisa um recorte com as turmas de 4º e 5º anos de 2018, e, dando continuidade ao trabalho em 2019, com os mesmos estudantes nas turmas de 5º e 6º anos, ou seja, em um percurso construído ao longo de um ano e meio. Essa parceria com Nikita, já construída desde 2015, se intensificou ao longo

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da pesquisa, sendo que a primeira visita ocorreu no primeiro semestre de 2018, a segunda visita, no segundo semestre do mesmo ano e a terceira e última visita, no primeiro semestre de 2019.

Durante essas visitas, foram realizados registros audiovisuais e fotográficos para que eu pudesse olhar para a experiência de dois lugares diferentes: o de professora mergulhada na experiência e o de pesquisadora, observando aspectos impossíveis de alcançar enquanto estava na aula como professora, de modo que pude observar os arquivos rememorando as experiências que vivi junto aos sujeitos da pesquisa. Nesse movimento de contemplação e rememoração, fui produzindo fragmentos narrativos, mônadas que compõem os capítulos da pesquisa. Com meu olhar singular, e, ao mesmo tempo, em diálogo com os autores referenciados nessa pesquisa, busquei trazer aquilo que considerei mais significativo das relações que as crianças estabeleciam a partir da presença da Nikita, suas narrativas e memórias. Nessa escrita, os nomes delas foram trocados para preservar suas identidades.1

No primeiro encontro, Nikita apresentou-nos um pouco de sua história de vida, utilizando objetos, contou-nos sobre sua infância e juventude, a saída da aldeia para a cidade, a relação com sua família e como é ser indígena vivendo na cidade. Após o primeiro contato, eu e Nikita pensamos juntas numa atividade para nosso segundo encontro com as crianças. E por fim, no terceiro encontro, que foi planejado em roda de conversa com as crianças, buscamos uma forma de receber a Nikita e retribuir o conhecimento que ela havia compartilhado conosco.

Para acolher as experiências foram construídos cinco capítulos que compõem a pesquisa, descritos resumidamente a seguir.

Inicio com o “Memorial de Formação”, espaço de rememoração de minhas escolhas pessoais e profissionais, no qual as ressignifico e apresento ao leitor experiências fundamentais que construíram minha sensibilidade e maneira de olhar o mundo. Trago para essa elaboração documentos de meu arquivo pessoal, com os quais realizo experimentações com recorte, colagem, desenho e pintura, para trazê-los junto às minhas memórias e construir uma narrativa visual. Em seguida, apresento fragmentos de texto de memórias de infância, juventude e vida adulta, momentos que me marcaram enquanto constituição de sujeito, e finalmente trago diálogos com autores que me conduziram para a elaboração do “Memoria(r)”.

No capítulo dois, “Escolhas Teórico Metodológicas”, apresento minha relação com os autores de referência e os conceitos utilizados e como encontrei sentido nesses diálogos, que me 1 Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (CAAE:

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fortalecem a compreensão da importância da construção de um conhecimento sensível, através de uma racionalidade estética (MATOS, 1990; GALZERANI, 2013) por meio de narrativas e memórias sensíveis na educação e como pretendo trazer tais abordagens para a pesquisa.

No terceiro capítulo, “Experiência na caminhada: a borda da mata ou labirinto” apresento algumas experiências em que flagro como as questões étnico-raciais já se apresentavam em minha caminhada docente, pois significam a pesquisa enquanto processo não linear, mas sim ligado às experiências de vida e de docência: são experiências que me cercam o tempo todo em minhas práticas educativas. Trago ao leitor algumas delas, com intuito de situá-lo diante do cotidiano escolar e do meu lugar como professora de arte.

No capítulo quatro, “Presença indígena no espaço escolar”, apresento a experiência da pesquisa, focalizando as relações estabelecidas entre os seus sujeitos, isto é, as relações estabelecidas entre as crianças e Nikita nas aulas de arte. Busco flagrar alguns dos sentidos e significados que se apresentam nas falas e produções dos estudantes, sujeitos do conhecimento, ao longo desse processo, por meio de narrativas construídas por mim e em diálogo com os autores referenciados. Tais experiências me possibilitam uma busca mais aprofundada acerca das questões interculturais e do reconhecimento das relações étnico-raciais no espaço escolar.

No capítulo cinco, “Para não concluir”, construo uma reflexão a partir dos arquivos da pesquisa, escolhendo imagens que me atravessam e fazem pensar sobre a minha caminhada nessa experiência de pesquisa e sobre a construção de conhecimento em educação. Finalizo o capítulo refletindo sobre a formação e a escrita docente.

A pesquisa foi construída a partir dos diálogos com autores que consideram não somente a racionalidade técnica, mas também as sensibilidades como possibilidade de produção de conhecimentos, portanto, não estamos trazendo imagens de sujeitos partidos, que ignoram sentimentos e emoções, mas sim de sujeitos constituídos de história e memória, a partir de suas experiências singulares entretecidas na coletividade isto é, conhecimentos pautados na racionalidade estética, em diálogo com autores como Walter Benjamin, Maria Carolina Bovério Galzerani, Olgária Matos, Adriana Carvalho Koyama, Nara Rubia de Carvalho Cunha, Guilherme do Val Toledo Prado, Jorge Bondía Larrosa, Ailton Krenak, Jan Masschelein.

Também são trazidos para essa pesquisa autores que abordam as questões culturais, interculturais, étnico-raciais e decoloniais, tais como Nilma Lino Gomes, Alfredo Veiga-Neto, Vera Maria Candau, Gersem José dos Santos Luciano (Baniwa), Aníbal Quijano, Maria Paula Meneses e

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Boaventura Sousa Santos, entre outros, tecendo suas reflexões em diálogo direto com as experiências vividas na escola.

Articuladas a essas reflexões, na significação de minha própria formação em andamento, como professora e pesquisadora, a pesquisa traz o diálogo com Antônio Nóvoa, Maria Carolina Bovério Galzerani, Corinta Maria Grisolia Geraldi, Guilherme do Val Toledo Prado e Sumaya Mattar, autores que abordam a relevância da percepção do professor enquanto sujeito produtor de conhecimentos, que fundamenta suas reflexões a partir de suas próprias práticas educativas.

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Memoria(r)

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Acordei e percebi que meu irmão não estava em casa e disse pra minha mãe: - Não sei onde ele está. (eu)

- Ele foi pra escola. (minha mãe)

Ia buscá-lo com minha mãe, eram muitas crianças e muito barulho, eu não entendia o que ele ia fazer lá e o porquê eu não podia estar com ele.

Experimentei o uniforme na loja e encapamos todos os cadernos com um plástico fedorento, o durex e a borracha também tinham um cheiro estranho.

- Tá vendo aquela moça, ela é sua professora, você tem que obedecer ela. (minha mãe) ...

Estávamos na fila que era ao lado do balcão onde serviam a merenda, passávamos ao lado do berçário, subíamos uma escada e estávamos na nossa sala de aula, mesas redondas e quadradas que cabiam de 4 a 6 crianças. Eles conversavam como se já conhecessem e eu não sabia ao certo o que estava fazendo ali.

...

Diziam que eu estudava numa escola forte, então eu acreditava que era uma coisa boa, eu achava estranho a minha mãe me deixar ali e tinha medo que ela me esquecesse. Minha professora disse para minha mãe que eu estava com dificuldade, mas que poderia ser apenas uma fase. Gostávamos do parque, da caixa de areia e do pé de amora, era um lugar imenso.

...

Minha professora de geografia perguntou se eu era irmã do João, eu disse que sim. - Ele me disse que você estuda muito. (professora de geografia)

Eu disse sim e ela retornou:

- Você será uma profissional competente, só não seja professora. (professora de geografia)

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Vou para ensino médio, voltarei a estudar na mesma escola que meu irmão. Ele me disse que eu tinha que fazer teatro, que havia curso de teatro na escola, eu disse que não, que não tinha nada a ver comigo.

Descalça e com uma vassoura na mão, limpando o chão do anfiteatro na sexta a tarde, colocava a “rouba de bater” fazíamos a roda no chão pra conversar e passávamos algumas horas fazendo exercícios teatrais, experimentando uma certa liberdade, que não havia existido até então.

Sentávamos e deitávamos no chão e isso não era um problema, gritávamos e isso não era um problema, no final todos estavam suados, sujos, esbaforidos e isso não era um problema. Na minha vida passou a existir a sexta à tarde e o resto dos dias.

Eu me perguntava o porquê esses momentos eram tão importantes.

Queria que o sinal da escola fosse tão bom quanto o do teatro.

Após finalizar curso técnico acreditava que em breve estaria trabalhando e ganhando meu dinheiro.

Um primo mais velho perguntou se eu estava estudando para o vestibular, rapidamente respondi que não, ele estranhou, e questionou o motivo, eu disse que não era pra mim, era algo muito difícil.

Então Gustavo fez a pergunta fundamental: - Você gosta de estudar?

Acordava cedo e caminhava por uma hora aproximadamente até o local de onde saía o fretado Jundiaí-Unicamp, queria muito continuar no curso de teatro, precisava economizar.

Era uma emoção todos os dias ver o amanhecer, o fretado entrava pela parte mais alta da Unicamp, eu via todo o campus de uma única vez, aquela paisagem me pertencia, e eu a ela.…

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Achava que me tornaria uma artista cheia de habilidades técnicas. Passei a fazer meus próprios caderninhos de desenho que usava nas aulas de desenho, em casa e pelos lugares. Para mim a arte é um outro espaço, um lugar onde não explicamos.

Habituada com o silêncio da madrugada, desenhava, me olhava no espelho, o autorretrato. Percebi os pelos do braço da professora arrepiados ao ver o desenho da noite anterior, ela abriu o estojo e me deu seu lápis 9H, o mais duro da escala. Fui para casa pensando sobre o poder da arte tocar as pessoas. Será que eu conseguiria manter esse tipo de relação com a arte? Com o mundo? Fiquei meses sem desenhar.

Aquilo que me interessa na arte: sensibilidade, experiência, criação, nem dom, nem habilidade, relações a serem vividas, talvez percepções sobre si mesmo.

...

Assim que eu entrei na sala de aula, um estudante se levantou e começou a cochichar no ouvido de dois colegas. Um deles chutou a barriga de uma colega que havia acabado de fazer uma cirurgia, ela levantou uma cadeira e jogou na direção dele, eles tinham 8 anos.

No samba de bumbo, Mestre Alceu carrega o legado da zabumba, na doçura e na dança da Sinhá, na mandinga do Crispim Menino Levado, no chamado da capoeira, as culturas populares apontavam outros caminhos a serem conhecidos e refletidos, estar perto deles era me sentir amparada na sala de aula.

Pela primeira vez estava frente a frente com um indígena. Disse que era professora de arte e trabalhava a temática indígena na escola, ele me respondeu dizendo que não concordava com o trabalho que é realizado nas escolas, ou pelo menos, na maioria das escolas.

- Não queremos mais os não-indígenas falando por nós, precisamos ocupar os espaços na sociedade.

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Quando deixaremos de ver o indígena como “o outro”?

Objetos que me fazem lembrar

A partir do convite para rememorar suas experiências formativas, o professor vasculha sua intimidade e encontra imagens soterradas na memória, ao mesmo tempo em que intensifica o pensamento crítico para a vida vivida no presente e deflagra outras possibilidades para a sua existência (MATTAR, 2018, p. 267).

Rememorar lembranças que me constituem, entrar em contato com o que achava que já tinha sido, mas na verdade ainda está sendo em mim, escolhas, caminhos, lutas e conflitos, (re)encontros que ecoam ao tocar fotografias, documentos, objetos ou anotações. Algumas memórias quero agarrar como algo que me alimenta, já outras queria que se desmanchassem para não mais existirem. Elas vão se apresentando a partir da minha relação íntima com os objetos, os documentos e, a partir disso, invento “outras possibilidades para a sua existência” (MATTAR, 2018, p. 267).

Apresento, na construção acima, fragmentos narrativos rememorados por imagens e palavras. Encontrar cada um desses objetos ou lembrança é (re)viver as experiências, mas a você, leitor, seria uma maneira de mostrá-las enquanto indícios das experiências que vivi, como algo retirado de meu corpo e transformado em Memorial, para apresentar-me como um sujeito singular desta pesquisa, que sou formada pelas minhas histórias, minhas narrativas, minhas memórias, eu não sou abstrata, não sou neutra, me apresento enquanto uma vida em processo e em movimentos de transformação.

Apesar da singularidade das minhas experiências trazidas aqui em forma de fragmentos, em cada palavra ou imagem que trago há uma relação indissociável com muitos outros e com os projetos de sociedade com que pretendo contribuir. Meus ancestrais, os que ainda estão por vir, pessoas do meu convívio que formaram e formam meus gestos, pensamentos e sentimentos perante o mundo e estão comigo nesse agora2, no momento desta escrita. como, “... imagens que lampejam, que dançam, e que nos convidam a produzir rupturas e interrupções” (GALZERANI, 2013, p. 57). Busco na construção deste Memorial, em cada documento escolhido, cada recorte realizado, nesses momentos e espaços de interrupções e rupturas, produzir outras formas de conhecimento, a partir das memórias e mais 2Benjamim elabora a noção de tempo, concebendo o passado como algo que está no presente, nos muitos agoras. Jetztzeit traduzido como agorabilidade.

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próximas da racionalidade estética, de um conhecimento que não está pautado apenas no racional, ou em um tempo linear, através dos documentos trago ao memorial possibilidades de leituras que abram os significados, em que passado e futuro possam ser articulados ao assumir o próprio presente (Idem, Ibidem).

Escolher ir ao encontro de meus arquivos pessoais, enquanto experiência para construção de fragmentos narrativos para o Memorial, colocou-me em um espaço criativo a partir da minha sensibilidade com os objetos, os documentos, aquilo que deles fazia surgir em mim e que eu tomava como significativo, transformando-os em colagens e palavras, em companhias para o diálogo

[...] uma formação aberta à experiência e à descoberta deve ser uma formação criativa, mobilizadora da capacidade autopoiética dos humanos […] uma dupla entre pesquisa e formação para produzir saberes no vivo, saberes que sejam constitutivos e ou aprofundados no curso da rota [...] (JOSSO, 1994, p. 72).

Ao mesmo tempo em que me percebo (re)significando minhas escolhas pessoais e profissionais, como artista, professora e almejando a pesquisadora, acolho momentos que pensei estarem no passado, em um lugar distante, porém nesse (re)encontro, me parecem muito vivos em mim, as escolhas que me constituem se aprofundam neste movimento, percebo-me em formação, buscando o lugar da pesquisadora e aprofundando minhas relações com a docência.

[...] o memorial de formação é uma forma de registro de vivências, experiências, memórias e reflexões que vem se mostrando imprescindível, não só para tornar público o que pensam e sentem os profissionais e futuros profissionais [docentes], mas também para difundir o conhecimento produzido em seu cotidiano (PRADO; SOLIGO, 2005, p. 61).

Então registro uma narrativa da Mariana de “agora” e faço deste percurso algo público, para que, principalmente diante de meus pares, estabeleça-se o almejado diálogo.

Deparei-me, nesse percurso, com questionamentos do professor Nóvoa (1992), que me mobilizaram a refletir sobre meu papel social enquanto professora: Como é que cada um se tornou o professor que é hoje? E por quê? De que forma a ação pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor?

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Poderia trazer respostas e/ou justificativas, buscar o “porque” para a pergunta de Nóvoa, mas meu interesse está mais na mobilização que a pergunta gera, nos movimentos internos que fazem com que me perceba sendo professora, me desenvolvendo enquanto uma pessoa no mundo e exercendo as escolhas que faço, aprendendo a ser pesquisadora. Afinal, mais do que uma resposta definitiva, esses porquês terão diferentes respostas se eu buscar o passado, o presente ou o futuro.

Nesse Memorial apresento o que me pertence, a partir de minhas experiências coloco-me à disposição dos acasos e desvios próprios do colocar-se na pesquisa, no movimento de trazer à superfície um pouco do meu ateliê, meu corpo, meu olhar, minha maneira de estar no mundo, minhas imagens e palavras.

As palavras e imagens escolhidas não possuem intenção de serem fronteiras, de se colocarem como verdades, todas as produções textuais e imagéticas têm como característica a incompletude no sentido de estarem abertas ao diálogo, são como limiares porosos permitindo fluir diferentes percepções do leitor, idas e voltas serão acolhidas, os fragmentos entretecidos, ora como um bordado bem acabado em seu avesso, ora com fios soltos ainda a serem alinhavados. Buscam desviar-se de alguns dos riscos centrais dos memoriais, como da pesquisa acadêmica:

[…] as hierarquizações dos saberes, o distanciamento da subjetividade do pesquisador, ou, em outro extremo, a sua subjetividade radical – dentre outras tendências (GALZERANI, 2013, p. 54).

O Memorial é apresentado a partir de fragmentos de experiências, escolares ou não-escolares, experiências acadêmicas ou não, com saberes não hierarquizados, no mesmo lugar de importância, compreendendo que o atravessamento dessas experiências de vida em mim compõe minha subjetividade. A subjetividade apresentada no Memorial é construída como abertura ao atravessamento do coletivo, das culturas e práticas sociais que nos constituem enquanto sujeitos, e, portanto, longe de uma subjetividade radical que caracteriza o sujeito egóico.

Como tecer diálogos com essas imagens e entre seus sujeitos, enraizados em diferentes tempos, espaços e relações sociais? A partir de uma perspectiva racional e sensível, nessa experiência são postas em movimento, no encontro entre presente e passado, memórias e histórias singulares. A verdade, sempre provisória, que emerge desses encontros é a expressão de minhas questões e experiências, tensionadas pela

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materialidade do que me é exterior: os documentos e os sujeitos que povoam esses registros (KOYAMA, 2018, p. 22).

Os documentos aqui apresentados são registros de momentos que me constituem enquanto sujeito no mundo, muitos deles relacionados aos meus processos de escolarização e formação profissional, além de experiências de vida. Nesses documentos oficiais, trouxe meu olhar través do recorte, desenho e colagem, realizando marcas nos documentos. Esses fragmentos são momentos vividos e vivos, povoados por muitas pessoas que fizeram e fazem parte da minha vida, que construíram e constroem minha visão de mundo e me guiam nas escolhas, nos diversos sentidos e significados que construo de desconstruo ao longo da vida.

Proponho um modo singular de me colocar no Memorial, afirmando que “[...] a pesquisa de documentos arquivísticos é uma experiência sensível” (KOYAMA, 2017, p. 185). Partindo de meus arquivos pessoais e documentos escolares, certificados e anotações pessoais, apresento uma breve narrativa de mim mesma para iniciar este diálogo, buscando uma forma de comunicação que coloque o leitor frente a frente com minhas memórias, sem os contornos elaborados como explicações. Segundo Benjamin (1994, p. 203), metade da arte narrativa está em evitar explicações. Então me coloco neste exercício de aprender a mergulhar na experiência e retirar delas as narrativas, na relação com os documentos, até emergirem as memórias, trazidas em forma de colagens e palavras, em narrativas que se abrem para significados plurais a partir de seus diálogos com os leitores.

As escolhas que me tocam

O movimento de retornar ao espaço acadêmico significa construir novas memórias, encontrar lembranças que marcaram o caminho para chegar até aqui, sentimentos, pensamentos, sentidos e significados queficaram guardados em alguma parte de mim.

Percebi que tenho coisas guardadas: papéis, objetos, fotografias, documentos e que posso nomeá-las sob a palavra arquivo pessoal, do pouco que guardo, muito joguei fora, desapeguei por diferentes motivos, alguns me faziam lembrar de coisas negativas. A partir desse movimento de Memoria(r) percebo que lembranças importantes estão em mim, algumas dormentes, outras que preferi esquecer, mas, que ao mesmo tempo, são essas lembranças recalcadas que me fazem querer construir outras memórias, novas memórias, talvez de uma Mariana melhor ou diferente, ou de uma Mariana

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criança que se escondeu debaixo de um sofá e que espero reencontrar. Talvez, nesta caminhada, recupere importâncias deixadas para trás, que estão agora latentes, colocando em xeque minhas escolhas, coisas que as pessoas (sociedade) diziam não servirem para sobreviver neste mundo em que estamos hoje. Tenho lembranças sobre endurecer para sobreviver, que foram entretecidas ao assumir a docência, era como se eu precisasse abandonar o sonhar, o sentir, a intuição, até mesmo sorrir - uma de minhas colegas de trabalho, logo quando iniciei, sugeriu-me não sorrir para as crianças, pois essa atitude poderia me trazer dificuldades, ou seja, ela estava sugerindo uma forma de construir uma relação de autoridade. Então a imagem sobre ser professora foi se constituindo também na minha relação com os colegas de trabalho.

Demorei para me enxergar professora, parecia um abismo, o que eu gostaria de ser e a realidade em que me encontrava, trabalhar com educação é, para mim, uma oportunidade de compartilhar experiências e construir conhecimentos no coletivo, mas diante de momentos históricos e políticos educacionais, bem como da maneira como vem sendo construída a visão sobre o ensino de arte na escola ainda, o espaço da educação é um lugar em constante disputa. Tenho a imagem de um mundo bélico onde aprendemos a viver nas brechas, me oprime, parece que não há espaço para vivermos com dignidade. Acredito que há muito a ser construído, viver nas brechas e aproveitá-las parece ser o que nos consola, há um bom tempo escuto falarem dessas tais brechas, há o mercado de arte ditando regras aos artistas, mas ainda é possível sobreviver nas brechas, para trabalhar com educação é necessário perceber as brechas e também construí-las, então talvez seja isso que vim fazer aqui, alargar essa brecha com toda força que for possível e coletivamente. Será possível explodir essa brecha que tanto nos comprime? Ao mesmo tempo, esse pequeno espaço, a brecha, só nos deixa a alternativa de focar naquilo que há de mais importante, só me resta escolher o que é mais importante.

No caminhar dessa pesquisa, encontro-me com Walter Benjamim citando Paul Valéry (1994 p. 220-221) que me fez lembrar de meu professor de pintura, Tuneu, ele falava da importância de Valéry, que afirma a relação entre a alma, a mão e o olhar nos processos artesanais de construção de conhecimento. Na época da minha graduação em artes plásticas, minha construção poética se dava pelo autorretrato, pois através do desenho eu havia encontrado acolhimento para algumas questões. Desde a finalização da graduação até a docência, me questiono se sou capaz de trazer esse modo de produzir

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conhecimento para as aulas de arte. Será que eu conseguiria construir uma experiência tão significativa na educação, como foi a das artes?

Partindo dessa tríade tão interessante, na qual é difícil dizer quem está conduzindo, se a mão, o olhar ou a alma, percebo o conhecimento que se está construindo com essas relações, então tento experimentar o retorno desta Mariana que se permitiu “ser artista”, crio a expectativa que a minha sensibilidade artística também possa estar presente na pesquisa. O espaço acadêmico talvez me permita mostrar meu traço solto, um lugar onde o conhecimento é construído na relação entre os sujeitos da experiência, nos desvios, nas errâncias, na angústia, no inacabado. E em que eu, professora tornando-me pesquisadora, busque compreender minhas relações singulares tecidas entre arte, educação e pesquisa, e vá ao encontro das relações étnico-raciais e das culturas indígenas.

O enraizamento do silêncio

Ser professora é como um enraizamento, que se aprofunda e silencia. Às vezes, aprendemos o silêncio à força, em muitas culturas o silêncio é a forma máxima de sabedoria, ali na entranha os fiozinhos vão descendo e depois engrossando, tornando-se fortes.

A cada sorriso de “bom dia” dos colegas, sabemos que existe um pensamento “não vai ser fácil”, aprendemos a ler muitos gestos, para compreender o que está acontecendo sem o uso das palavras. A sala dos professores, ou muro das lamentações, é um lugar também difícil de enfrentar, porque sabemos que podemos ser surpreendidos com uma entrada abrupta de um colega, se lamentando de algo terrível recém-acontecido em sala de aula ou quando narramos as dificuldades ocorridas, como num desespero, esperando a aprovação do outro, com intuito de conseguir um acolhimento mínimo, da compreensão da complexidade de estar naquele espaço, no espaço escolar.

Quanto mais grossas e profundas são essas raízes silenciosas, maior pode ser o farfalhar das folhas ao vento.

Lugares de memórias sensíveis

Considerando minhas experiências de vida e os processos artísticos que me formaram, me elaboro enquanto professora, na escola tenho a oportunidade de contribuir, por meio das experiências artísticas, com a formação dos sujeitos para os quais leciono. Na universidade aprendi a construir

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relações em que posso me colocar como artista, compreender o lugar da criação, percepção e sensibilidade, essa experiência transformou as relações que estabeleço comigo mesma, com as questões sociais, deu-me a possibilidade de produzir arte e de refletir em processos criativos, e ao mesmo tempo, penso que a universidade é um lugar tão pouco acessível a tantas pessoas, que a arte também é pouco acessível, é um privilégio, então me comprometo a compartilhar minhas experiências, o conhecimento que construí neste percurso, construir novos percursos e conhecimentos com outros sujeitos, com as crianças, com os estudantes na escola.

Ao iniciar minha carreira docente na escola pública, eu tinha muita dificuldade em frequentar aulas da pós-graduação em artes na Unicamp, era um choque de realidades que me angustiava, ambos espaços, escola e universidade, são lugares do pensamento, da expressão e construção do conhecimento, mas o reconhecimento sobre a arte e o ensino de arte que são construídos nesses espaços me parecia muito distintos.

A partir da sala de aula, como professora, a minha percepção sobre as questões eurocêntricas ficavam cada vez mais claras, havia um abismo entre a Mariana que estudava artes na universidade, e o que este espaço me oferecia como experiência artística, e a Mariana que acabava de entrar na rede pública para ser professora e o que este espaço me oferecia como experiência educacional. Na escola sabemos que os estudantes precisam conhecer as vanguardas artísticas europeias, de acordo com os documentos oficiais. Mas e se nesse fim de semana a polícia atirou no vizinho, na frente de um desses estudantes? Eu não sabia o que fazer para uma criança entender que o cabelo dela era lindo e não precisava ficar preso, eu não sabia construir um encontro no qual eles pudessem compreender que aquela maneira violenta que eles se tratavam não era necessária. Como é possível construirmos sentidos outros, individuais e coletivos, neste espaço cheio de tensões, na escola, nas aulas de arte?

É nesse espaço de abismo entre minha formação acadêmica e a prática docente que as questões étnico-raciais se apresentaram a mim, uma vez que não era possível fazer uma tradução dos referenciais artísticos que recebi na universidade, eu precisava de muitas outras referências e experiências, para poder ofertar às crianças percursos artísticos que as fortalecessem enquanto sujeitos históricos, que houvesse reconhecimento e identificação, que fosse algo significativo, que elas sentissem que na arte elas poderiam criar sentidos para elas mesmas. Eu estou na escola, sendo professora, porque acredito que o acesso à arte é um direito das pessoas e eu preciso fazer escolhas ao

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ocupar o espaço público escolar, práticas escolares que compreendam a diversidade enquanto elemento fundamental.

Foi na escola que percebi a relevância de trazer para o trabalho docente as questões relacionadas às temáticas étnicas e raciais, compreender as contribuições históricas das populações negras e indígenas, dar visibilidade não somente para a dor e sofrimento causado pelo processo de colonização, mas, diante desse trauma, a resistência, resiliência, memórias e narrativas que brotam ainda hoje. Eu estou na escola, como professora de arte, e acredito na importância de refletirmos sobre as escolhas teórico metodológicas de ensino de artes: proponho que no espaço público escolar os sujeitos possam entrar em contato com produções artísticas relevantes e que esses conteúdos possam fazer sentido em suas histórias, construindo assim seus próprios sentidos de acordo com suas narrativas e memórias. Que os conteúdos e referenciais artísticos os coloquem numa reflexão a partir da observação e produção artística, e que, antes de qualquer coisa, essa produção de conhecimento faça sentido para suas vidas, afirmando o ensino de arte enquanto espaço de diálogo, acolhendo as diferenças e construindo conhecimento a partir das diversidades culturais.

Diante desses desafios busquei, por meio do Mestrado Profissional em Educação Escolar na Faculdade de Educação da Unicamp, interlocutores que pudessem adensar minhas práticas e reflexões educativas, esse acolhimento deu-se no Grupo de Ensino e Pesquisa em Educação Continuada (GEPEC), que lança um olhar sobre as potencialidades das formações continuadas com professores, assim me percebo, em formação contínua e, através das minhas próprias práticas, elaborando essa caminhada em diversos círculos de diálogos, que fortalecem minhas hipóteses que surgem da própria experiência e reflexões, que se adensam ao longo da pesquisa nos diálogos presenciais e telepáticos (como escreve Walter Benjamin sobre a leitura), com os autores apresentados, e com os sujeitos da pesquisa.

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II – ESCOLHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Uma parceria entre uma “camponesa sedentária”, Mariana professora de arte, e uma “marinheira viajante”, Nikita Guarani Nhandeva (BENJAMIN, 1994, p. 199), é a tentativa de abrir espaço para pensar e sentir possibilidades de construir conhecimento a partir de uma outra perspectiva, a de uma relação intercultural, uma proposta de reconhecimento de outros saberes do território brasileiro, outros modos de construção de conhecimento. Segundo Lopes “[...] a narrativa é particularmente importante em culturas acústicas, porque pode abrigar uma grande parte do saber” (2004, p. 176). Coloco-me no lugar da camponesa sedentária enquanto professora que ocupa um cargo efetivo na rede pública, como alguém que está cotidianamente imersa nas narrativas próprias das práticas educativas e Nikita é a marinheira viajante enquanto a pessoa que vem nos visitar e trazer outros saberes que fazem parte de outros contextos de outros territórios mentais, emocionais, ancestrais. Nikita faz sua viagem para chegar até a escola e destes encontros vamos tecendo novas narrativas e memórias através das dobras do tempo.

Se conceber a memória como meio, como palco das práticas relativas à temporalidade, ela deverá envolver todos os sujeitos que participam, direta e indiretamente, neste caso, da comunidade escolar. Portanto, pressupõe uma amálgama de diferentes saberes, de diferentes dimensões, situados em diferentes vivências ou experiências vividas. Pressupõe, ao mesmo tempo interações entre diferentes temporalidades, diferentes espaços, diferentes sujeitos (GALZERANI, 2008, p. 233)

Proponho, então, que esses muitos encontros, entre diversos sujeitos, sejam apresentados como na experiência, repletos de desvios, errâncias, improvisos, acasos, e que o mergulho nessa experiência me atravesse para trazer aqui os fragmentos narrativos e sua compreensão, na forma de reflexão que contempla, inquire, dialoga, mas não se fecha em um sentido único. Estarei em movimentos constantes buscando capturar detalhes e singularidades das experiências em um texto construído de fragmentos na percepção de um tempo não linear.

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A pesquisa narrativa da experiência e não sobre a experiência se funda na ética da responsabilidade, bem como em uma pretensão metodológica de aproximação entre o mundo vivido e o mundo da teoria. Aponta para uma epistemologia da prática e considera que as ciências humanas são ciências do singular. (apud LIMA, GERALDI e GERALDI, 2015, p. 38)

Encarando este lugar, o da pesquisa, coloco-me à disposição deste caminhar, meu tempo, dúvidas, razão e sensibilidades, buscarei trazer um pouco da experiência de estar na escola, no “labirinto” ou “floresta” (MATOS, 1990). Estarei me deslocando e procurando pelas dobras do tempo, situações do passado no presente e que de modo algum serão conclusões: fiel às escolhas metodológicas expostas, as experiências da pesquisa serão apresentadas como mônadas, como fragmentos narrativos que, como cristais, são atravessadas por forças sociais e culturais mais amplas, pautadas na experiência coletiva, com suas ambiguidades, tensões, contradições, e construídas entre o

olhar, a mão e a alma, formando memórias sensíveis (BENJAMIN, 1994).

Coloco-me enquanto pesquisadora, professora e artista, deixando-me ser guiada pelas experiências dos encontros entre os sujeitos do conhecimento, eu, estudantes e Nikita, que apresento em forma de mônadas entretecidas na experiência e em suas memórias sensíveis.

O espaço escolar proporciona o encontro entre os diversos narradores, toda a comunidade escolar: estudantes, professores, gestores, funcionários, famílias, bem como todas as memórias que estes carregam e que adentram o espaço escolar. A partir desse ponto de vista, a escola não tem muros nem grandes, é puro limiar. Se o povo Krenak vê o humor da montanha, qual seria o humor da escola? Ali no cotidiano, tudo é intenso, trocas, conflitos, sentimentos, produção de conhecimento, nós produzimos culturas a partir do diálogo entre as culturas.

A interculturalidade é então concebida como uma estratégia ética, política e epistêmica. Nesta perspectiva, os processos educativos são fundamentais. Por meio deles questiona-se a colonialidade presente na sociedade e na educação, desvela-se o racismo e a racialidade das relações, promove-se o reconhecimento de diversos saberes e o diálogo entre diferentes conhecimentos [...] (CANDAU, 2010, p. 166).

Trazer para este diálogo conhecimentos e saberes das culturas indígenas significa encontrar possibilidades práticas de convívio e troca de experiências no espaço escolar, questionar a colonialidade através da relação entre os sujeitos da pesquisa, perceber sentidos e significados “outros” tão potentes para humanização e empoderamento de grupos excluídos (CANDAU, 2010, p. 166), bem

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como buscar superar a ausência de uma memória que não nos foi contada. Quais serão as memórias produzidas a partir do encontro desses sujeitos? As relações entre Nikita e os estudantes serão trazidas através do meu olhar, o meu mergulhar nessa experiência.

O olhar alegórico na narrativa

O pensamento moderno constrói conhecimentos baseados em informação e não mais em experiências (BENJAMIN, 1994). Neste sentido, narrar me parece ser como remar contra a correnteza, divergir no modo predominante de se comunicar, de perceber o mundo ao redor e de construir conhecimento. Estou na canoa remando e a paisagem parece ser a mesma, passam as estações do ano, a força das águas segue seu curso bem debaixo da canoa, eu não posso parar a correnteza, eu pertenço à paisagem e, por isso, sigo remando.

A escola é a minha paisagem: as turmas que chegam e se vão, o diário de classe, o plano de ensino, as resoluções da secretaria da educação, os documentos norteadores... existem muitas contradições, tensões e ambiguidades em jogo, o mergulho nessa experiência para extrair narrativas neste contexto requer atenção, atenção no presente. Sigo tentando me esquivar de forças que operam, que oprimem, mas estas mesmas forças, apesar de constantes, e que nos adoecem às vezes, criam novas possibilidades que podem fazer dali surgir algo ainda mais forte.

Em diálogo com Olgária Matos acerca da obra de Walter Benjamin busco relações com a imagem do poeta-alegorista para construir o meu olhar:

O poeta-alegorista contempla essa paisagem e estabelece pactos secretos com a “cidade subterrânea”, a que prolifera nos detalhes, dissonâncias, nos elementos heterogêneos, inassimiláveis, inacabados, qualitativos. Na alegoria não existe a utopia da significação imediata e da evidência como símbolo. (MATOS, 1990, p. 293)

Encontro-me com a narrativa, uma escrita que parte da experiência de estar na escola, na cumplicidade com a “cidade subterrânea”, essa ideia que me faz pensar: o que há de subterrâneo para ser visto na escola e em minhas práticas de ensino de arte? Proponho trazer detalhes e dissonâncias das relações que percebo entre os sujeitos da pesquisa, os sujeitos do conhecimento, neste caso, os estudantes, Nikita e eu, fragmentos narrativos trazidos da experiência coletiva e que possam ser como

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imagens ou alegorias, como cristais nos quais podemos perceber diversas forças atravessadas, tensionadas: não haverá uma única leitura possível sobre aquilo que se apresenta como significativo na contemplação da paisagem. Seus elementos inesperados são heterogêneos, inassimiláveis, inacabados,

qualitativos. Narrar a experiência será uma tentativa de capturar fragmentos significativos, a partir das

minhas práticas educativas em artes, daquilo que possa potencializar as reflexões sobre e para o reconhecimento das culturas indígenas no espaço escolar, em especial no que se refere às questões relacionadas aos indígenas em contexto urbano. Na abordagem de ensino de arte escolho construir um diálogo entre as formas de produzir conhecimento indígenas e não-indígenas, percebendo esse encontro como possibilidade de releitura das formas de produção de conhecimento nas práticas artísticas na escola. Desse modo, volto o olhar para as questões indígenas, seu acolhimento e construção desse diálogo na produção de conhecimentos nas práticas artísticas na escola.

Alegoria e construção do conhecimento

Algumas flores nascem da lama, desta lama que a princípio parece desagradável ao olhar, que talvez possua um cheiro incômodo, e que talvez não nos encante com sua textura, mas é a fonte nutritiva para nascer a flor. É nessa lama e nessas flores que pretendo colocar minha atenção, faço parte desta paisagem.

É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”, segundo determinados pontos de vista: de modo a ter, de um lado a parte “fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado (BENJAMIN, 2009, p. 501)

Essa abordagem tomada como inspiração me faz pensar nos aspectos dicotômicos da relação entre a escola e o ensino de arte, na maneira como a arte vem, ao longo do tempo, encontrando seu espaço na escola, e o como a escola demanda à arte. No passado, a arte adentrava no espaço escolar enquanto atividade complementar, hoje ela é considerada uma disciplina, assim como as demais, porém

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com uma carga horária menor e menos tempo pedagógico para discussões sobre práticas artísticas na escola. Existem aspectos auspiciosos e vivos nessa relação e, ao mesmo tempo, compreensões equivocadas acerca do que a arte se propõe na escola.

Professores de arte ainda podem ser vistos como quem oferta aulas prazerosas, o momento do tempo livre, o espaço para fazer coisas belas. Dependendo do ângulo de visão, não de critérios, essas coisas podem ser positivas ou negativas. Então, na prática de ensino de arte, a lama e flor estão em tensa dialética, a escola e a arte estão em tensa relação, produzindo aspectos negativos e positivos sobre elas mesmas: se vemos a escola como lama, ela possui densidade e nutrientes para fazer surgir a flor-arte; se vemos a arte como lama, nutrindo a escola, podemos ver surgir uma escola-flor. As características positivas e negativas dos dois elementos alimentam a relação entre escola e arte, e a relação entre a escola e o ensino de arte.

Percebo essas relações intrínsecas e dialéticas no cotidiano, é desse lugar de percepção que proponho um entre-lugar de reflexão, um espaço de transformação e ressignificação das minhas práticas docentes, de um olhar estético que não seja o da “forma”, mas o da estética enquanto “experiência”; que a aula de arte seja um espaço de encontro entre os sujeitos e não apenas a produção de belos objetos.

Cientes da responsabilidade de pesquisar a própria prática, os sujeitos reconhecem que a constituição em torno da investigação narrativa do vivido é dolorosa, porque a palavra é arena de luta, lugar de embate de múltiplas percepções sobre o trabalho, sobre a natureza, sobre o modo de viver, de dizer o mundo e de se dizer nele. Trata-se de um eu aberto e inconcluso, susceptível aos discursos compartilhados. (LIMA, GERALDI e GERALDI, 2015, p. 31)

Ao ocupar um espaço onde minha responsabilidade, enquanto professora de arte, é não somente “transmitir um conteúdo” referente ao mundo das artes, mas provocar os sujeitos para que exista um diálogo efetivo na construção de um conhecimento racional e sensível, um relacionar-se, um envolver-se, faz-se necessária uma abertura intensa e nem sempre fácil, e neste percurso haverá embate. Ao olhar para a escola e para minha própria prática de forma investigativa, pedras surgirão no caminho e não serão escondidas, questões inconclusas serão apresentadas, não haverá uma verdade absoluta, e sim um diálogo estabelecido: coloco-me como um eu aberto, suscetível aos discursos compartilhados.

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Pesquisa (e) narrativa

Ela [narrativa] não está interessada, portanto, em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Assim, a experiência narrada não é coincidente com o acontecimento que lhe deu origem (LIMA, GERALDI e GERALDI, 2015, p. 29).

Os estudantes trazem uma quantidade enorme de narrativas, geradas a partir de suas sensibilidades, daquilo que importa ou está importante naquele momento: são singularidades emergindo e construindo a qualidade das relações na diversidade do espaço escolar. Sinto-me em um ir e vir constante de aprendizados, aberturas e fechamentos, decisões, escolhas ora frutíferas, ora cansativas, tudo ao mesmo tempo, me formando professora, me formando pessoa. Tropeço em minhas contradições, será que é o momento de ouvi-los e mudar a rota do que foi planejado? Toco o barco? A necessidade de concluir os objetivos e os conteúdos é real, há uma cobrança presente, herança de uma educação conteudista. Sístole, diástole, abertura, fechamento, pulsação.

A partir dessa percepção caótica, e ao mesmo tempo potente, que tenho sobre a minha presença no espaço escolar e a imagem que tenho da escola, busco uma forma narrativa. Solicito a mim mesma uma atenção constante ao presente, com intuito de não trazer simplesmente informações ou relatórios sobre o ocorrido na experiência, compreender que “a experiência narrada não é coincidente

com o acontecimento que lhe deu origem”, mas aquilo que surge das relações entre os sujeitos do

conhecimento na experiência e que me atravessam. A pessoa institucionalizada, a professora, precisa cumprir as demandas, objetivos, diretrizes, manter a ordem na sala, realizar a chamada, controlar a presença. O quanto serei capaz de ampliar minha percepção e atenção aos estudantes? Compreender o potencial dos detalhes e das dissonâncias, e trazê-las para esta pesquisa? Como narrar a imensidão múltipla de uma sala de aula, dos indivíduos “aldeados” ...

- Professora, você sabia que...

Temos dificuldade em intercambiar experiências. Temos dificuldade em nos comunicar. Temos excessivos obstáculos entre nós, da ordem da linguagem, da ordem da cultura, da ordem das classes das quais nós provimos, da ordem das nossas complicações (GALZERANI, 2005, p. 50).

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O intercambio de experiência, ao qual Galzerani se refere, não é o de manter os estudantes informados sobre conteúdos de arte, mas sim em que medida, na relação com esses conteúdos, podemos construir experiências racionais e sensíveis, das quais possam emergir memórias significativas, e que, para que isso ocorra, é importante compreendermos os obstáculos, da ordem da

linguagem, da cultura, das classes das quais provimos. Nas diversas turmas para as quais eu leciono,

sempre tem uma criança que me procura para contar sobre o que aconteceu no final de semana, compartilhar alguma dor ou alegria. Naturalmente os estudantes demonstram anseios de narrar suas experiências, busco uma maneira de estabelecer encontros. Mais do que aulas, aos poucos vou buscando formas de construir esse contato, confiando que a relação se dá no tempo e que minha comunicação com eles vai além do que eu possa perceber ou “controlar”. Acredito que há uma troca intensa de experiências entre eles, inclusive para muito além das propostas dos encontros nas aulas de arte.

Há em mim uma contradição de imagens sobre a escola, pois aos poucos vai ficando mais claro o seu potencial como lugar da experiência, mas ao mesmo tempo a escola não é algo leve para mim, há uma tensão em “executar” o que está sendo ofertado pelo Estado, há um discurso sobre a exigência de qualidade, competência, organização, desenvolvimento de habilidades, um lugar onde me sinto como se não houvesse “tempo a perder”, tenho cinquenta minutos de aula, cronos parece estar no comando.

Estar atenta significa que a vontade de se submeter a um regime de verdade é neutralizada, e a energia com a qual o sujeito (do conhecimento) se projeta nos objetos se exaure. Esse tipo particular de atenção implica e permite um estar-presente que coloca o sujeito em jogo e que abdica da expectativa de um benefício e, nesse sentido, ela é generosa. (MASSCHELEIN, 2008, p. 42)

Imagens ambíguas de escola e de práticas educacionais estão presentes na minha percepção. A partir disso me proponho ao diálogo com os autores e, na relação com os sujeitos da pesquisa, a me abrir para outras maneiras de estar no espaço escolar, de um modo mais generoso, percebendo as relações estabelecidas entre os sujeitos de forma mais atenta, mais presente na experiência, buscando neutralizar o regime de verdade, resistindo à trama da compreensão cartesiana da vida:

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O dualismo corpo e alma – o primado concedido à consciência no processo do conhecimento – legitima a neutralização do real. Objetivação, abstração, categorização constituem a trama jogada sobre o múltiplo para capturá-lo. (MATOS, 1990, p. 288)

Nessa paisagem, nessa tentativa de perceber a “cidade subterrânea”, as narrativas vão sendo tecidas a partir da diversidade dos sujeitos, que trazem suas individualidades e singularidades em composição na coletividade. Estamos falando de um coro de vozes, ora uníssono, ora dissonante. Tentarei ao máximo não ser um sujeito partido (MATOS, 1990) ou colocar os sujeitos desta pesquisa nesta mesma condição: nem só o corpo, nem só a alma, a razão e a sensibilidade estarão juntas.

...

- Professora, você sabia que... ...

Benjamin articula o conceito de memória ao de narrativa. A narrativa - experiência que, segundo o autor, tende a desaparecer com a modernidade – é por ele concebida como a transmissão de saberes entre as gerações, fundada na circulação coletiva de tradições, de sensibilidades, na acepção plural de verdade, na relação do narrado com o vivido, na dimensão mais ampla de ser pessoa (portadora de consciência e inconsciência), e, sobretudo, na recuperação da temporalidade. Neste sentido, para Benjamin a narrativa não existe sem a memória, não existe sem sua vinculação com as dobras do tempo. Por sua vez, a recuperação da memória benjaminiana pressupõe a narrativa das experiências vividas entre diferentes gerações (GALZERANI, 2008, p. 230).

Para trazer os fragmentos de narrativas, acolho o conceito de memória trazida por Benjamin, no qual a concepção de tempo não é linear, as memórias se fazem como dobras no tempo, quando menos se espera algo do passado encosta no presente e assim alteramos nossa percepção sobre o que possa estar perdido, ou invisibilizado: algo entendido como preso ao passado, de repente vem à tona como saltos do tigre (BENJAMIN, 1994, p. 230). Esses saltos estão acontecendo, em consequência lanço mão de trechos de escrita, narrativas, fragmentos em que tento capturar um núcleo, uma questão a ser pensada, busco o que de incômodo há nas memórias que surgem, a tensão que percebo estar presente nas experiências. No desdobramento dessas percepções, busco criar mônadas, inspiradas em Walter Benjamin e na leitura que dele faz Galzerani (2013).

Referências

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