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Alguns elementos das culturas indígenas chamaram muita atenção dos estudantes do 5ºano, um desses elementos foi a pintura corporal. No início eles acharam que era uma tatuagem no braço de Nikita, ela explicou se tratar de uma tinta natural feita a partir de uma fruta, o jenipapo. Uma tinta que oxida em contato com o ar e fica escura, na pele chega a durar quinze dias e depois desaparece totalmente.

Envolvidos com a ideia de experimentar o jenipapo começamos a estudar alguns grafismos das etnias guarani e pataxó. Primeiro treinamos os desenhos no caderno e depois nos braços com tinta guache e, depois de duas semanas, finalmente conseguimos a tinta de jenipapo. Quais memórias seriam possíveis construir a partir dessa experiência?

O mapa

O mapa guarani pintado em seu braço marcava sua visibilidade cultural. O estranhamento construía a pergunta:

– É uma tatuagem? (Lucas)

A tatuagem marca a derme em pontos fixos, imprimindo seu significado.

– Não, isso aqui é pintura corporal, a cada acontecimento na aldeia, no meu povo, usamos uma pintura diferente, cada povo tem seu desenho, seu grafismo, com cores diferentes. (Nikita)

A pintura corporal é fluída, trazendo os deslocamentos possíveis do território corporal, nada é fixo, o grafismo se presentifica na pele e depois desmancha, seu significado continua existindo em um território mental, marcado pela experiência.

Segundo a cultura guarani mbya, alguns indígenas são pintados com grafismos que são considerados mapas. Esses mesmos grafismos em forma de pintura corporal são pintados pela mata, espalhados para serem encontrados como pistas para indicar o caminho correto, quem os encontra consegue se deslocar na mata, aquele mapa grafismo pintado no corpo só faz sentido a partir daquele ponto. Essa é uma das brincadeiras que os guaranis fazem em determinados períodos no Pico do Jaraguá.

Busca pelo jenipapo

Nikita veio nos visitar, mas a professora do 5º ano havia faltado, então os estudantes haviam sido dispensados. Em sua segunda visita à escola preparamos uma atividade de pintura corporal com jenipapo. Apenas o 5°ano não pode participar dessa atividade, pois ainda precisávamos fazer a primeira aproximação com Nikita, com uma roda de conversa, e não caberiam em cinquenta minutos ambas atividades.

A ausência da atividade com pintura corporal gerou um ruído nessa turma, um interesse em conhecer essa característica cultural, um desejo de aproximação. As semanas seguiam com cobranças, perguntas sobre quando poderíamos realizar essa experimentação.

O jenipapo não é uma fruta tão simples de encontrar. Perguntei aos parceiros indígenas e militantes da cultura indígena onde poderia encontrá-la, procurei a fruta em vários locais da cidade, descobri que o CEASA a fornece por quarenta reais o quilo. Por fim, felizmente encontramos um pé carregado em um pesqueiro da cidade.

O pátio, a tinta e o desejo.

– Pessoal, vocês se lembram do que fizemos na aula passada? (eu-professora) – Tinta, pintamos os braços com guache, aqueles desenhos indígenas. (Raquel)

Eu quero que vocês escrevam, nesse pequeno pedaço de papel, sentimentos, pensamentos e lembranças daquele dia, tudo bem? Alguma dúvida? (eu-professora)

Na aula anterior havíamos realizado uma experiência com tinta guache, pintamos grafismos nos braços e pernas. Eu ainda não estava com o jenipapo em mãos, então estávamos experimentando, uma espécie de ensaio.

Figura 26- estudantes fazendo pintura corporal

“Bem loco, gostei de tudo.”

“Outro dia fomos lá fora no pátio fazer treino de pintura (braço, perna) com tinta guache. Expressão: gostei muito da atividade.”

“Eu gostei da aula de pintura, porque aprendi os significados das pinturas...”

“Eu gostei da atividade, foi muito divertido, os desenhos são diferentes, foi muito doloroso, mas eu gostei.”

“Eu gostei, não pensei em nada, gostei de ver pinturas que tinha no papel e fazer na minha pele.”

professora passar esse desenho, achei legal.”

“Meu sentimento foi de raiva, porque dava errado, achei engraçado.”

“Foi legal, porque a gente está fazendo algo dos indígenas. E gostei da pintura que eu fiz!” “Legal.”

“Achei muito divertido, porque é diferente e a pintura corporal tem história pelos índios.” “Eu me senti um índio se pintando, professora.”

“Eu lembro que eu fiz o grafismo indígena.”

“Eu gostei muito, que é tipo uma tatuagem, mas que não fica para sempre, e pensar que pintar o corpo é uma tradição indígena.”

“Eu fiz uma pintura.”

“Eu gostei muito, mesmo que eu não tenha feito, eu senti prazer e felicidade por todos terem gostado de fazer a pintura corporal.”

Pintura corporal

Na sala de aula ralamos o jenipapo e os estudantes puderam entrar em contato com a tinta: sua suposta invisibilidade parece não oferecer riscos, mas seus vestígios aparecem fortemente após algumas horas de manuseio, oxida em contato com o ar deixando uma marca forte e azulada. Havia o desejo dos estudantes de marcar a pele, uma euforia e medo ao mesmo tempo, em saber que a marca não sairia tão facilmente, era como uma tatuagem temporária.

Figura 27- estudante ralando jenipapo

Eles estavam sentados em grupos conforme a relação de amizade entre eles, em algumas mesas tinha tinta de jenipapo e palitos, em outras duas mesas era tinta guache, pois os estudantes, por algum motivo, não haviam trazido a autorização do responsável para que pudessem participar da atividade com jenipapo, que prevê uma pintura que dura aproximadamente 10 dias na pele.

Grafismos indígenas se misturavam com símbolos “illuminati”, o nome da mãe, corações, alguns criaram braceletes ou pulseiras com a tinta e outros se mostraram resistentes em participar da

proposta. Havia uma vontade de grafar no corpo os desenhos, formas e palavras, a pintura corporal trazia uma tônica prazerosa àquele encontro.

Figura 28- estudantes fazendo grafismos e desenhos com a tinta de jenipapo

Pintar o próprio corpo, sabendo que o desenho ficaria alguns dias, trouxe a eles uma responsabilidade consigo sobre aquilo que carregariam em sua pele. Um dos estudantes parecia querer homenagear a mãe, pois escreveu Rose em seu braço, outros faziam pequenos desenhos imitando tatuagens, pintavam corações… A maioria seguiu o roteiro do nosso estudo sobre o grafismo guarani, que em traços parecidos com flechas marcavam o símbolo da resistência, ou traços da cultura pataxó que demarcavam os gêneros feminino e masculino.

Alguns pediram pincel, mas a proposta era criar a partir dos elementos da cultura indígena, então o palito de madeira foi utilizado para a pintura naquele momento.

Havia desenhos bem delicados próximos ao pulso das meninas, outros mais extravagantes que cobriam quase todo o braço. Preocuparam-se em pintar o braço que não utilizariam ao longo das outras aulas para não borrar, e outros ainda foram para a perna criar o seu grafismo.

No início a tinta é bem clara, como uma aquarela, e com o passar das horas e dias ela vai ficando mais escura. Eu não pude acompanhar os dias seguintes, pois nos encontramos apenas uma vez na semana.

Figura 29- estudante pintando o braço da colega

Em determinado momento, uma das meninas pediu para a outra fazer o grafismo em seu braço, demonstrando confiança nesta troca. Nas culturas indígenas podemos observar que a pintura corporal, na maioria das vezes, é feita por outra pessoa, como uma demonstração de afeto, cuidado e dedicação ao ornamentar o corpo do outro com os símbolos e significados daquele momento.

Colocá-los a experimentar seu próprio corpo trouxe àquele encontro uma delicadeza e introspecção, experimentaram um encanto consigo mesmos, ao perceberem aquelas marcas surgindo na pele. Alguns estavam chateados por terem esquecido de trazer o termo de autorização, porém ao final da atividade burlaram o combinado e fizeram rapidamente alguns inscritos no braço, acreditando que não seriam vistos.

Júlio havia pintado seu braço esquerdo com tinta guache, normalmente ele resiste a participar das atividades, mas dessa vez queria também pintar seu braço direito e pediu minha ajuda, fiz o grafismo guarani para completar o que Júlio precisava, ter os dois braços pintados.

Figura 30- estudante observando a pintura no braço

Enquanto eu solicitava ajuda para aqueles que já tinham terminado a pintura corporal para organizarmos a sala, pois estava finalizando o tempo da aula, outros ainda continuavam compenetrados na atividade, tentando fazer mais detalhes ou reforçar a pintura com mais uma camada.

Grafismo Guarani

Figura 32- grafismo Guarani

Após a experiência com o jenipapo, retomamos a experiência com argila, e dessa vez os estudantes já sabiam os procedimentos de organização do espaço, os cuidados a serem tomados no manuseio do material. Perguntei a eles qual era o grafismo guarani que eles tinham aprendido, um deles respondeu que era o símbolo da resistência. Eu fiz o desenho na lousa, em seguida alguns quiseram ir até a lousa para desenhar o grafismo, pedi que eles fizessem o símbolo da resistência na placa de argila e disse que depois pintaríamos com as cores que o povo guarani utiliza, preto e vermelho.

Havíamos utilizado esse mesmo grafismo na aula em que fizemos pintura corporal com tinta guache, como um treino para quando estivéssemos com a tinta de jenipapo. Depois dessas atividades alguns estudantes desenharam o grafismo com caneta esferográfica na mão e no braço, e certa vez me deparei com esse mesmo grafismo desenhado na carteira com lápis grafite. Então, percebi que os estudantes, em seus gestos corriqueiros de fazer rabiscos nas superfícies, escolheram um elemento novo, o grafismo guarani.

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num

lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética – Não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta (BENJAMIN, 2009, p. 504)

Então, o grafismo da resistência guarani surge para nós, a presença da Nikita no espaço escolar faz com que os sujeitos, nas aulas de arte, busquem se relacionar com os elementos da cultura guarani. Esse grafismo não está no passado, ele está no agora, trazendo possibilidades de construção de novos conhecimentos pela linguagem: como num lampejo, o grafismo salta em nossa direção.

Na semana seguinte, após a prática com a tinta de jenipapo, solicitei aos estudantes que trouxessem através da escrita e/ou desenhos suas memórias sobre as experiências. Os estudantes relataram a reação das famílias ao chegarem em casa, alguns reagiram com espanto, pois não lembraram do bilhete que a escola havia encaminhado, outros acharam interessante a pintura. As crianças demonstraram satisfação por terem conhecido o jenipapo e o grafismo, outras ficaram chateadas, pois faltaram no dia da atividade, lembraram da presença da Nikita e do dia em que ralamos o jenipapo na sala de aula.

Figura 34- registro sobre a experiência, estudantes 5ºano (2)

Alegoria do jenipapo

O jenipapo está na natureza, seu sumo de fruta verde, que alimenta a cultura, é invisível. O fino palito desliza sobre a pele construindo tramas geométricas, o diálogo do jenipapo com o ar fica cada vez mais intenso na relação com o tempo. A suposta invisibilidade desse sumo se desvela e uma cor carregada de força vem à tona, o grafismo sobre a pele mostra a sua existência, sua elaboração que atravessa o tempo, constituído em uma cultura milenar. Não existe substância que tire essa marca, ela é dona de si própria e em diálogo com o tempo, assim definiram.

Ela sabe também a hora de se retirar. Após alguns dias, delicadamente vai se despedindo, abre mão da sua intensidade, e sua potencialidade coloca-se à disposição da transparência no tempo, lentamente vai transformando-se em algo fantasmagórico, uma sombra, um borrão, uma matéria que vai se diluindo e uma lembrança que vai se intensificando, uma experiência na cultura de potência ambivalente: a matéria na superfície da pele e a lembrança na profundidade da memória.

Na memória, lugar onde as histórias encontram acolhimento, os fragmentos das culturas indígenas, aos quais tivemos acesso nesses meses de aulas intermitentes, têm-se feito presentes: “me disseram que tenho um bisavô indígena”, “minha tataravó foi pega a laço”, “vi no noticiário que invadiram as terras indígenas”, “eu tenho um pote de barro em casa, a gente põe água”, “eu quero mexer com argila”.

De alguma maneira, esses fragmentos de memórias, que estão sempre em nós, mesmo que invisíveis, por alguma ocasião vêm à tona, seja como uma rajada de vento ou brisa, às vezes intensos como o jenipapo no auge de sua oxidação, às vezes em transparência ainda anunciando o que virá, ou então se despedindo sutilmente, quando quase já não o vemos mais.

A fruta, uma pequena circunferência que, quando colhida verde de sua árvore, é detentora de um possível encantamento. Aquilo que há milênios os povos originários acolheram em sua cultura continua a produzir sentidos e significados.

As matas foram derrubadas e aos poucos, cidades foram sendo construídas, os indígenas continuaram a desenvolver sua arte de tornarem-se invisíveis. Ao mesmo tempo em que o índio se

tornou invisibilizado pela sociedade, ele soube fazer dessa invisibilidade sua forma de proteção e diálogo, passar-se desapercebido, espreitar e sobreviver à cidade.

Figura 36- mão pintada com jenipapo

A curiosidade dos estudantes em experimentar o jenipapo na pele me instigou a buscar em todos os cantos da cidade aquela pequena fruta. O jenipapo também está invisibilizado na cidade. Seu sumo transparente, no início, incita a descrença em seu poder de encantar e assustar, alguns duvidam que ele é realmente forte.

Ralar o jenipapo verde pode ser uma das maneiras de extrair sua tinta, apertar com um pano a fruta ralada pode te ofertar um sumo puro. Quem realiza este procedimento terá suas mãos inevitavelmente absorvidas pela experiência. Em algumas horas a pele começa a ficar levemente azulada, esfregar com água corrente já não é uma solução possível, pois o sumo penetra na pele. Em questão de horas você muda de cor, um preto azulado intenso, o processo ocorre lentamente à luz dos

olhos, se intensifica em contato com o ar e, com o passar do tempo, fixa uma estabilidade de cinco dias. Após sete dias, inicia-se o processo de despedida, e vai lentamente clareando.

Neste processo há um movimento de pulso lento, a coloração do jenipapo chega lentamente, quase invisível, vai se intensificando com força e depois parte, deixando apenas a lembrança da experiência.

História ou Memória

Uma das riquezas de se trabalhar na escola pública é a diversidade das pessoas que transitam e pertencem àquele espaço, gerando encontros e desencontros. A tensão provocada pelas circunstâncias gera uma complexidade que rompe qualquer padrão que se queira instituir ou normatizar, garantir uma nação homogênea, identidade “bem definida” e fixa. Na prática, a educação se constrói a partir de diferentes olhares, posturas, pensamentos, nós nos desviamos a todo instante dessa suposta homogeneidade, muitas vezes mesmo sem perceber.

A história daria conta de nos deixar um legado transmissível? Existe história no singular? A escola me apresentou a história dos “vencedores”, mas as percepções do tempo e do espaço se movimentam, então revisitar e ressignificar a história é ter permissão de construir novas possibilidades, novo sujeitos produzindo e participando destas histórias.

Se rompermos com a noção de história do historicismo, podemos perceber em suas dinâmicas múltiplos entrelaçamentos com a memória, enquanto aquilo que construímos a partir das lembranças. A memória se desloca nos tempos e espaços. diferentemente do historicismo que está preso em uma estrutura lógica linear, na memória percebemos o passado no presente, no agora. Um dos autores que me desloca nessas reflexões é Ailton Krenak:

Existem milhões de toneladas de livros, arquivos, acervos, museus guardando uma chamada memória da humanidade. E que humanidade é essa que precisa depositar suas memórias nos museus, nos caixotes? Ela não sabe sonhar mais. Então ela precisa guardar depressa as anotações dessa memória. Como estas duas memórias se juntam, ou não se juntam? (KRENAK, , p. 204)

Ailton Krenak, a partir das epistemologias do povo Krenak, coloca em questão os termos história e memória, bem como a importância do sonho. A história como um tempo linear é construída a partir de alguns fatos selecionados em sintonia com uma ótica do conhecimento ocidentalizado, a memória é tratada como algo a ser guardado em museus e livros. Já para o povo Krenak não existe história, mas sim uma memória que o indivíduo carrega, porém sempre elaborada no coletivo, algo que é carregado desde a origem do mundo, uma memória que é elaborada nos territórios e em relação a todos os parentes da terra, a montanha, o ar, o fogo, as plantas, os animais, a águas, todos contam a memória.

O autor coloca ainda a importância do sonho enquanto casa da sabedoria, indica que ali encontram-se respostas. De acordo com ele, ao questionar se o mundo criado pelos homens, este mundo cada vez mais tecnológico e moderno, com suas potentes máquinas, um dia haveria de destruir todo conhecimento ancestral de seu povo, e seu sonho lhe respondeu: “Não existiu uma criação do mundo e acabou! Todo instante, todo momento, o tempo todo é a criação do mundo.” (KRENAK, 1992, p. 203)

Então retornamos à sala de aula, e todos os dias recriamos o mundo, na maioria das vezes sem perceber, novas possibilidades e saberes a partir dos indivíduos e coletivos. Os sujeitos que fazem a escola existir estão carregados de memórias, histórias, culturas.

“Nos lugares onde cada povo tinha sua marca cultural, seus domínios, nesses lugares, na tradição da maioria das nossas tribos, de cada um de nossos povos é que está fundado um registro, uma memória da criação do mundo” (KRENAK, 1992, p. 201). Ailton Krenak nos coloca que já havia marcas culturais nos locais que esses povos habitavam, porém, para que o progresso e o futuro acontecessem para o mundo moderno, era necessário explorar novos territórios e organizá-los de acordo com sua perspectiva de evolução. Os invasores queriam imprimir sua visão de mundo em territórios onde já existiam diversas concepções próprias, portanto devemos cuidar para que o território escolar não seja invadido por concepções hegemônicas, que as diversas memórias e histórias possam habitar o espaço escolar. O que nos leva às próximas experiências aqui narradas.