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Indícios do apagamento, indícios do surgimento

Estava “zapeando” os canais da TV e parei em um documentário que falava sobre água, a possibilidade de recuperar nascentes de um solo já muito prejudicado. Ficou na minha mente a imagem da água brotando do chão, quando a pessoa pisava no mato, o pé afundava na água, o olho d’água estava ali. Esse procedimento de recuperação é possível por meio da proteção da área local da mina, evitando a pastagem, ou seja, o pisoteamento dos animais nessa área, pois soterram o manancial. A água armazenada no solo jorra na superfície.

– O Júlio me contou que sua bisavó é indígena, é verdade isso? (eu-professora)

– É sim professora! (Eric) ...

– Professora, minha vó deita no chão do lado da fogueira, o povo acha que ela é doida. (Júlio)

– E você? O que acha? (eu-professora)

– Ah, eu tô acostumado. (Júlio)

Fiquei com essa imagem do menino e avó na fogueira e retomei a conversa.

– Júlio, sua avó é indígena? (eu-professora)

– Minha bisavó. (Júlio)

– E você convive com ela? (eu-professora)

– Não, mas a minha madrasta é indígena e ela me disse. (Júlio)

– Sim. (Júlio)

Entre realidade e desejo, Júlio, desde o dia em que fizemos o grafismo com tinta guache em seu braço, gosta de falar neste assunto e até sorri durante a conversa. Ele vai construindo um caminho de resquícios e se apegando aos detalhes para confirmar sua legitimidade, sua origem indígena. Então eu percebi que quando trazia o tema para a sala de aula, começavam a verter as falas. Algo que está em uma espécie de subsolo vem à tona, embora inicialmente se pareça apenas com um fio d’água, pode alimentar rios e desaguar em oceano. A imensurável força da memória.

[...] rememorar para Benjamin é um ato político, com potencialidades de produzir um “despertar” dos sonhos, das fantasmagorias, para a construção das utopias. Despertar que possibilita trazer imagens do passado vivido, como opção de questionamento das relações e sensibilidades sociais, como uma busca atenciosa relativa aos rumos a serem construídos, sobretudo, no presente (GALZERANI, 2008, p. 230).

Júlio rememora suas questões, a percepção que tem sobre si mesmo diante da possibilidade de uma pintura corporal com grafismo. Quando olha para a pintura na sua mão, ao mesmo tempo que afirma sua identidade, parece também reivindicá-la, traz suas imagens do passado vivido para o presente, construindo seu próprio despertar.

Jubartes

Há alguns dias, Kaio levou um chute que fez sangrar seu nariz durante a aula de arte, alguns riram da situação.

Esse menino adora desenhar baleias jubartes, é como se estivessem dançando no papel, são várias, uma pra cada lado e às vezes se entrelaçando, seu desenho tem uma linha torta e contínua, como quem já percorreu este caminho incansavelmente, será reflexo de um destemido? Ele pouco usa a borracha. Dizem que tem dificuldade de aprendizagem.

Dias depois, aguardávamos em frente à sala, a professora abre a porta. Eles estavam esperando há dois meses a visita de Ortência, ou melhor, Nikita, que escolheu cuidadosamente cada objeto que iria nos mostrar… sua voz, doce e calma, exigia deles uma escuta diferente.

Todos sentados na cadeira com suas carteiras à frente. Silêncio para ouvi-la.

Enquanto Nikita conversava com as crianças lembrei-me de quando fui à Valinhos em 2016 para conhecê-la. Ela recebeu-me com sorriso no rosto e uma certa timidez. Entre seus pássaros e plantas, no quintal, Nikita contou sua história.

Uma menina de dez anos, que acabara de perder os pais, estava numa cidade estranha e não falava português, sua língua materna é o guarani, dias e anos de choro e luta. Eu a escuto em silêncio, ela não me contava fatos curiosos, ela dizia de sua dor. Nos dias de desespero não havia para onde ir, para onde voltar, com quem falar…

– Nossa! Você é forte mesmo! (Kaio)

Kaio rompe o combinado de ficar em silêncio.

A infância de Nikita encontrou acolhimento na infância dos estudantes, em suas próprias histórias, cada um ressignificando a narrativa de Nikita em sua singularidade, como uma espécie de amálgama. Galzerani evidencia a memória enquanto o meio em que se dá a experiência, proporcionando o atravessamento de diferentes temporalidades e espacialidades, ou seja, rompendo limites do espaço e linearidade do tempo (GALZERANI, 2008, p. 233).

A lição ou a moral da história depende do projeto de dizer de quem conta, mas seus efeitos dependem do repertório, da experiência e da visão de mundo de quem ouve. O ouvinte reorganiza seu mundo interior em relação ao que foi narrado. O modo narrativo está intimamente dependente das experiências do narrador e do narratário (LIMA, GERALDI e GERALDI, 2015, p. 24).

O ímpeto da reação de Kaio me chamou atenção, também pelo fato de ser considerado um menino desatento, mas para mim tão sensível. Naquele momento ele expressou sua relação com as

memórias de infância que Nikita nos contava. Me pego pensando na intangibilidade dos sentidos e conhecimentos que produzimos.

Agora, sim!

– Tá entrando um menino novo, já foi aluno daqui agora voltou, difícil viu. (professora da turma)

Júlio tem costume de chamar seus colegas de capeta, tem uma voz doce. Cabeça levemente baixa, sem olhos nos olhos a menos que seja um pedido da professora.

– Olha lá profe, o Júlio tá dormindo. (Manuela) ...

– O que é isso no seu braço, uma tatuagem? (Pedro) – É uma pintura, um grafismo indígena. (Nikita)

Júlio levanta a mão muitas vezes para tentar falar com a Nikita, nossa convidada, sem êxito, eram muitos querendo fazer perguntas a ela.

– Minha vó é indígena. (Júlio dirigindo-se a mim)

– Você precisa contar pra Nikita, levanta a mão e fala. (eu-professora) – O Júlio tem uma coisa pra contar pra gente. (eu-professora)

O menino coloca a cabeça entre as pernas, se esconde nele mesmo. – Fala logo. (Betânia)

Ele não diz.

– Bom dia pessoal, seguinte, ontem já fiz reunião com alguns pais por conta do mau comportamento, semana passada não consegui dar aula, a professora Gorete já conversou com vocês, nós já fizemos assembleia e os combinados, agora chega, vamos fazer essa aula acontecer, conto com a ajuda de todos, vamos fazer pintura corporal com guache lá fora, vou liberar a fileira que estiver quieta. Formem duplas, não vamos usar pincel, apenas um palitinho. (eu-professora)

– Cadê a tinta professora? (Yuri) – Tá aqui, pode usar. (eu) – Mas eu não ganhei. (Yuri)

– Não tem um pra cada, é tudo no coletivo. (eu) – Faz pra mim professora, eu não sei fazer. (Saulo)

– A gente tá aprendendo, se você errar é só lavar. (eu-professora) Lá está o menino separado do grupo, sentado no chão lendo gibi. Julio me mostra que, com muita delicadeza, ele permite aproximação. – Vamos fazer uma pintura? (eu-professora)

– Não quero. (Júlio)

– Vamos, eu faço em você. (eu-professora)

Seguro na sua mão tentando transmitir confiança e afeto. – Tá bom, bem pequenininha. (Júlio)

– Vou fazer bem fininha, esse é o grafismo guarani. (eu-professora) – Agora eu sou um indígena de verdade. (Júlio)

Figura 37- estudante com grafismo Guarani na mão

Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento (LARROSA, 2002, p. 27).

Aos poucos Júlio vai se aproximando da experiência, e vamos significando, a cada passo, os acontecimentos. A narrativa está inscrita no corpo, surge na superfície através da pintura corporal, o corpo torna-se o território do saber da memória construída na experiência. Neste encontro intercultural construímos possíveis espaços para a visibilidade indígena, dos povos indígenas e de suas culturas em relação a nós, de um tipo de conhecimento que ainda não consideramos.

“Nessa antiguidade desses lugares [memória] a nossa narrativa brota, e recupera os feitos dos nossos heróis fundadores” (KRENAK, 1992, p. 201).

O menino tão distanciado da turma, de alguma maneira está atento aos movimentos da aula, apesar da timidez e revolta, se recusa a participar no início, em certo momento se entrega para a experiência e nos surpreende, orgulhoso da marca cultural que carrega na mão, como um grito ancestral que recupera os feitos dos heróis fundadores.