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Com as mudanças na concepção de alfabetização nas sociedades ocidentais vistas anteriormente, surge a questão: como as pessoas que se apropriam das habilidades de leitura e escrita conseguem se envolver em práticas sociais que envolvem essas habilidades? Mas mais do que isso. O outro lado da questão é a percepção de que existe uma aquisição e uso plural da leitura e escrita na sociedade. Dessa forma, um enfoque distinto a respeito do processo de alfabetização começa a ser pensado, especialmente desde o final do século XX.

No Brasil, esse enfoque concerne aos estudos do que passou a ser designado de letramento e/ou alfabetismo, situados na década de 8039. Trindade (2004) lembra que “tais estudos deixam de ocupar-se”, em termos de ênfase, “com o como se ensina’” (do período anterior aos anos 60, com os métodos de alfabetização) “e com o ‘como se aprende’” (dos estudos da psicogênese da língua escrita), “passando a discutir os mitos que se constroem em torno do mito da alfabetização” (p.130).

O aparecimento dos termos letramento e também alfabetismo no cenário educacional marcam uma diferença conceitual com os já citados e conhecidos termos analfabetismo e

alfabetização. Como discutido antes, autores tais como Graff (1995), Cook-Gumperz (2008) e

Ferreiro (2003), no estrangeiro, e Trindade (2004), no Brasil, traduzem o termo inglês literacy

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O termo letramento, em particular, surgiu segundo Soares (2000), no vocabulário acadêmicobrasileiro (da Educação e das ciências linguísticas), em meados da década de 1980, cujos usos iniciais estão associados a nomes como o de Kato (1996), Tfouni (1988) e Kleiman (1995), nos seus respectivos textos: KATO, Mary. No

mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986; TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988 e, no caso de Kleiman, ver referências.

66 como alfabetização (ou alfabetismo40) e o compreendem como aquisição e, também, como utilização efetiva das práticas de leitura e da escrita. No Brasil, literacy, geralmente, tem sido traduzido por letramento e possui acepções diversas, originadas das complexas e dinâmicas interações e relações sociais.

Trindade (2004) opta por diferenciar “alfabetismo de letramento”, pois considera que este último termo “inclui e extrapola as práticas culturais, sociais e escolares do primeiro” e afirma que “a opção pelo uso do termo alfabetismo ou letramento, exige uma discussão cuidadosa [...]”, e “que o uso do termo alfabetismo remete diretamente a analfabetismo e

alfabetização, sem ficar encoberto em um novo termo” e a utilização do “termo letramento

exige a discussão de significado que recebe nos estudos acadêmicos” (p.139). Alguns autores, porém, utilizam o termo alfabetismo como sinônimo de letramento (BRITTO, 2004), ou substitui aquele por este, como é o caso de Soares (2010) 41, que, já em textos anteriores (desde o final da década de 90 em diante) explica que “só recentemente esse termo [alfabetismo] tem sido necessário, porque só recentemente começamos a enfrentar uma realidade social em que não basta simplesmente ‘saber ler e escrever’”, como se compreendia antes, porém se requer dos “indivíduos [...] não apenas que dominem a tecnologia do ler e do escrever, mas também que saibam fazer uso dela, incorporando-a a seu viver, transformando- se assim seu ‘estado’ ou ‘condição’, como consequência do domínio dessa tecnologia” (SOARES, 2004, p. 15, 29).

Dentre as questões relacionadas ao termo letramento, uma é particularmente útil para esta pesquisa: a distinção que Soares (2000; 2010) faz entre letramento individual e

letramento social42.

40Pode-se dizer que o termo inglês literacy incluiu por extensão o referido termo alfabetismo. Trindade (2004)

considera que Graff (1995) também usa a palavra alfabetismo para literacy (p.139).

41Soares (2010) diz que “é importante observar que, aqui [se referindo a esse texto de 2010], opta-se pelo termo

alfabetismo, preferido a letramento, na época da elaboração” de outro texto seu: SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

42No penúltimo texto mais recente de Soares (2004) que se usou aqui, esta autora ainda utiliza as expressões

“letramento individual” e “letramento social”, mas no texto mais recente que se recorreu na presente pesquisa (2010), a referida autora lança mão das expressões “alfabetismo individual” e “alfabetismo social”.

67 Esses dois tipos de letramento são inferidos das discussões a respeito das definições, não só distintas, mas antagônicas e contraditórias de letramento, a exemplo das definições expressas por Graff (1995) e Scribner (apud SOARES, 2000) 43.

Quando se tem em vista o letramento individual, a tarefa revela um nível de complexidade grande, pois “é difícil definir letramento, devido à extensão e diversidade das habilidades individuais que podem ser consideradas como constituintes do letramento” (SOARES, 2000, p.67). De qualquer maneira, para a referida autora, o letramento individual “focaliza a dimensão individual”, sendo o letramento “visto como um atributo pessoal, referindo-se à posse individual de habilidades de leitura e escrita” (2010, p.30, grifo nosso). Nessa dimensão individual, estas duas habilidades devem ser vistas como dois processos radicalmente distintos, tanto no aspecto do conhecimento que os constitui como no aspecto da aprendizagem dos mesmos, mas também complementares.

No que tange à tecnologia da leitura, Soares (2000) a concebe como “um conjunto de habilidades” e conhecimentos “linguísticos e psicológicos, que se estende desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos” (p.68). Nesse conjunto figuram, portanto, desde habilidades de “traduzir em sons sílabas” isoladas, a “habilidades [de pensamento] cognitivas e metacognitivas”. Mas, além disso, a referida autora afirma que “há ainda o fato de que” essas habilidades “devem ser aplicadas diferenciadamente a diversos tipos de materiais de leitura” (p.69).

Já a tecnologia da escrita, para Soares, é compreendida como “habilidades linguísticas e psicológicas, mas habilidades [e conhecimentos] fundamentalmente diferentes daquelas exigidas pela leitura” (idem). Nesse sentido, a tecnologia da escrita envolve desde “a habilidade” de apenas transcrever sons “até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor potencial” (idem), isto é, abrange “desde a habilidade de transcrever a fala, via ditado” [de fonemas em grafemas], “até habilidades cognitivas e metacognitivas”

43Para o estudo e a interpretação da alfabetização (letramento no Brasil), Graff apresenta algumas questões

fundamentais, das quais destacamos duas: a primeira é a necessidade de se formular uma “definição consistente que sirva comparativamente ao longo do tempo e através do espaço. Níveis básicos ou primários de leitura e escrita constituem os únicos sinais ou indicações razoáveis que satisfazem este critério essencial” (op. cit., p.29) e a segunda questão é que a alfabetização é “uma tecnologia ou conjunto de técnicas para a comunicação e a decodificação e reprodução de materiais escritos ou impressos [itálicos do autor]; ela não pode ser tomada como sendo nada mais nem nada menos” (ibid., p.33). Já Scribner, citado por Soares (2000), diz que “as tentativas de definição (de letramento) estão quase sempre baseadas em uma concepção de letramento como um atributo dos indivíduos; buscam descrever os constituintes do letramento em termos de habilidades individuais. Mas o fato mais evidente a respeito do letramento é que ele é um fenômeno social [...]. O letramento é um produto da transmissão cultural [...]. Uma definição de letramento [...] implica a avaliação do que conta como letramento na época moderna em determinado contexto social... Compreender o que “é” o letramento envolve inevitavelmente uma análise social...” (p.66, grifo do autor).

68 (ibid., p.70). Mas, além disso, essas habilidades escritas “devem ser aplicadas diferenciadamente à produção de uma variedade de materiais escritos” (idem).

Já o letramento social, para Soares (2010), é compreendido como “um fenômeno

cultural”, tendo como foco “um conjunto de atividades sociais, que envolvem a língua escrita,

e a um conjunto de demandas sociais de uso da língua escrita”, em diferentes contextos. Logo, essa prática social “não se limita pura e simplesmente à posse individual de habilidades e conhecimentos”, como enfatizado pelo letramento individual; “implica também, e talvez principalmente, em um conjunto de práticas sociais associadas com a leitura e a escrita, efetivamente exercidas pelas pessoas em um contexto social específico” (p.32).

A referida autora destaca dentro do letramento social, pelo menos duas tendências de pensamento, que tornam ainda mais complexo o termo letramento. A primeira delas se relaciona a uma tendência “progressista, ‘liberal’”, designada de “versão fraca”. Nesta perspectiva, como acentua Soares (2000) o “letramento é definido como um conjunto de habilidades necessárias para ‘funcionar’44

adequadamente em práticas sociais nas quais a leitura e a escrita são exigidas” (p.74). Subjaz a essa concepção, o que Graff (op. cit.) chama de “mito da alfabetização”, no qual o letramento promove o progresso individual e social, ou seja, promove “desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso profissional, cidadania” (SOARES, 2000, p.74).

A segunda tendência teórica é a chamada de “radical, ‘revolucionária’”, nominada de “versão forte”. Nesta vertente, como mostra Soares (2000), o “letramento não pode ser considerado um ‘instrumento’ neutro a ser usado nas práticas sociais quando exigido”, pelo contrário “é essencialmente um conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais” (p. 74 - 75).

44Soares (2010) lembra que daí “deriva [...] a expressão alfabetismo funcional (ou alfabetização funcional, como

69 Soares associa Street (ibid., p. 75) como um dos autores da vertente “revolucionária”. Contrapondo-se à construção teórica (e ideológica) em torno do “mito da alfabetização”, Street (2003) propõe “duas perspectivas novas para o letramento e para o desenvolvimento”, a saber: as “contribuições alternativas oferecidas pelos métodos etnográficos” 45

e o que ele designa de “modelo ideológico do letramento” (p.1) 46

.

Na verdade, Street (idem) discute sobre dois modelos de letramento. O primeiro é o chamado modelo autônomo47, no qual “as pessoas precisam aprender uma forma de decodificar as letras, e depois poderão fazer o que desejarem com o recém-adquirido letramento” (p.4). Nesse modelo, se supõe que uma prática de letramento de maneira autônoma terá “efeitos sobre outras práticas sociais e cognitivas”, mas na verdade se baseia numa prática de pretensa neutralidade e de caráter universal, que simplesmente impõe “conceitos ocidentais de letramento a outras culturas” (idem).

A proposta de Street (idem) é que se compreenda o letramento numa perspectiva ideológica. Esse modelo, conforme o referido autor, “oferece uma visão com maior sensibilidade cultural das práticas de letramento [no plural], na medida [em] que elas variam de um contexto para outro” (p.4).

No modelo ideológico, assim, têm-se como referência algumas premissas, a saber: a primeira é que o letramento “é uma prática social, e não uma habilidade técnica e neutra” ou abstrata, ou seja, divorciada do ato comunicativo, dos seus interlocutores, do contexto social e

45Na década de 1980, concomitantemente às perspectivas psicológicas e históricas sobre letramento, surgiu a

perspectiva social e etnográfica. Com o nome New Literacy Studies, essa perspectiva se consolida na década de 90, a qual segundo Soares (2004) trouxe, além de novos princípios e pressupostos teóricos, alguns instrumentais para a análise do fenômeno do letramento, entre os quais se destacam dois pares de conceitos: de um lado, dois ‘modelos’ de letramento, o modelo autônomo em confronto com o modelo ideológico; de outro lado, dois componentes básicos do fenômeno do letramento, os eventos e as práticas de letramento (p.104).

46Stromquist (2001) diz que “nas últimas duas décadas [as de 80 e 90], vários acadêmicos, particularmente nos

campos da linguística e da antropologia [e em menor grau no campo da semiótica, da psicologia e da história], têm desafiado a ideia de que existe uma divisão clara entre pessoas alfabetizadas e analfabetas e de que as habilidades letradas podem ser adquiridas independente do contexto social no qual as pessoas vivem. Conhecida como New Literacy Studies (NLS), essa escola de pensamento e pesquisa tem examinado as experiências cotidianas das pessoas, procurando exemplos nos quais a comunicação e o uso da palavra escrita acontecem” (p.308).

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O termo autônomo pode causar confusão, pois não se refere a uma pretensa autonomia da instituição escolar nem dos alunos e alunas, mas sim da perspectiva que se tem acerca da tecnologia da escrita. Na verdade, a característica da ‘autonomia’ refere-se ao fato de que a escrita seria, nesse modelo, um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado; o processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico interno ao texto escrito não dependendo das (nem refletindo, portanto) reformulações estratégicas que caracterizam a oralidade, pois, nela, em função do interlocutor, mudam- se rumos, improvisa-se, enfim, utilizam-se outros princípios que os regidos pela lógica, a racionalidade, ou consistência interna, que acabam influenciando a forma da mensagem. Assim, a escrita representaria uma ordem diferente de comunicação, distinta da oral, pois a interpretação desta última estaria ligada à função interpessoal da linguagem, às identidades e relações que interlocutores constroem, e reconstroem, durante a interação (KLEIMAN, op. cit., p. 22).

70 assim por diante; e a segunda é que o letramento “aparece sempre envolto em princípios epistemológicos socialmente construídos” (idem), ou seja, é um aspecto das estruturas de poder da sociedade48.

Finalmente, para um aprofundamento dos significados e usos do letramento, na perspectiva ideológica, dois conceitos são destacados: o de eventos é descrito como “qualquer ocasião [concreta] em que um texto escrito faça parte da natureza das interações dos participantes e de seus processos interpretativos [e suas estratégias]” (HEATH apud STREET, 2003, p.7). Dessa forma, essa interação se torna um aspecto fundamental nas relações estabelecidas entre falantes partícipes num determinado evento. Um segundo conceito é o de

prática, formulado por Street, que amplia a noção de evento, no sentido em que este autor

compreende práticas de letramento como um “conceito cultural mais amplo das formas específicas de pensar e de fazer a leitura e a escrita dentro dos contextos culturais” (p.8).

Em meados da década de 90, Kleiman (op. cit.) recorre a Street como uma referência e afirma que o conceito de letramento começa a ser usado numa “tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’ [...] dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita” (p. 15-16, grifo do autor). Segundo a mesma autora, os estudos sobre letramento posteriormente se alargam no momento em que “os estudos já não mais pressupunham efeitos universais do letramento, mas pressupunham que os efeitos estariam correlacionados às práticas sociais e culturais dos diversos grupos que usavam a escrita” (p.16), seguindo as pressuposições do modelo ideológico.

Kleiman propõe a utilização do termo letramento ao invés alfabetização49. Não identifica o fenômeno do letramento com métodos, com habilidades, com escolarização e/ou com alfabetização (embora reconheça a existência desse processo como alvo do “letramento escolar”). Compreende, sim, esse fenômeno “como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para

objetivos específicos” (ibid., p.19, grifo nosso). Essa definição destaca a existência de uma

multiplicidade de práticas (admite o letramento social daquelas pessoas não alfabetizadas) e

48Mesmo sem utilizar a terminologia de modelo ideológico, o sentido disso é algo já discutido por Freire, desde

as suas primeiras obras, nas quais ele mostra o papel político que a educação pode ter, e que esta poderia levar as massas não somente a uma participação efetiva, mas à condução da própria construção de uma nova sociedade, atribuindo, dessa maneira, à alfabetização e ao letramento (escolar) um caráter político e não apenas pedagógico.

49A autora justifica essa substituição mostrando as diversas facetas possíveis da temática da oralidade no campo

dos estudos sobre letramento e que “em certas classes sociais, as crianças são letradas, no sentido de possuírem estratégias orais letradas, antes mesmos de serem alfabetizadas” (1995, p.17-18).

71 resgata um pressuposto teórico de Street (2003) sobre o letramento, que concebe as práticas de escrita como um aspecto social e da cultura e como tal,

os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida. Não pressupõe, nesse modelo, uma relação casual entre letramento e progresso ou civilização, ou modernidade, pois, ao invés de conceber um grande divisor entre grupos orais e letrados, ele pressupõe a existência, e investiga as características, de grandes áreas de interface entre práticas orais e práticas letradas (KLEIMAN, op. cit., p.21).

Segundo Kleiman (ibid.), apesar de a escola ser “o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido”, e, também “segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado”, com o alargamento da compreensão de letramento, essas práticas escolares “passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita” (p.19). Ela chama a atenção para o equívoco de supervalorizar o processo de escolarização e de se classificar os alunos e alunas, reproduzindo, portanto, o que historicamente se fez, inclusive no Brasil, que quanto mais tornavam precisas essas práticas (escolares), mais se hierarquizava os seus sujeitos aprendizes.

O modelo autônomo é normalmente associado ao processo formal de escolarização. Ou seja, a instituição – alvo é a escola, na qual a escrita é encarada como neutra, além de ser ela um fim em si mesmo. Segundo Kleiman, é um modelo que

pressupõe que há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que essa forma está associada quase que casualmente com o progresso, a civilização, a mobilidade social [...] esse é o modelo que hoje em dia [falando em meados da década de 90] é prevalente na nossa sociedade e que se reproduz, sem grandes alterações, desde o século passado [se referindo ao século XX], quando dos primeiros movimentos de educação em massa (ibid., p. 21).

Esse modelo, ainda de acordo com essa mesma autora, “tem o agravante de atribuir o fracasso e a responsabilidade por esse fracasso ao indivíduo que pertence ao grande grupo dos pobres e marginalizados nas sociedades tecnológicas” 50

(ibid., p. 38). Ou seja, o aluno e

50A discussão sobre o neoliberalismo, no âmbito do capitalismo, acentuou a tese na culpabilidade do indivíduo.

Cook-Gumperz (2008) diz que “o desenvolvimento social e os usos da literatura no Ocidente” terminaram por distorcer “a ideia do que significa letrado”, pois “grande parte dessa discussão considerava a presença ou a ausência de alfabetização [entendida como incluindo o letramento] como um atributo individual, que transforma as chances da vida da pessoa ou existe como sinal de fracasso social e pessoal” (p.14). Na verdade, passa por esse modelo uma questão bem mais ampla, que tem a ver com a própria concepção de educação, de escola, de homem/mulher e de sociedade. Uma questão que foge ao propósito deste trabalho, mas que se constitui matéria de discussão na teoria educacional e pedagógica, por exemplo.

72 aluna são responsáveis pelo seu não aprendizado. Os estereótipos que são incorporados por pessoas jovens e adultas são um exemplo disso e que vão se aprofundando negativamente, pois o “analfabetismo”, conforme Galvão e Di Pierro “não é percebido como expressão de processos de exclusão social ou como violação de direitos coletivos, e sim como experiência individual de desvio ou fracasso, que provoca repetidas situações de discriminação e humilhação, vividas com grande sofrimento e, por vezes, acompanhadas por sentimentos de culpa e vergonha” (2007, p.15).

Ainda segundo Kleiman (op. cit., p.20), o letramento, dessa forma, extrapola o mundo da escrita conforme ensinado na escola. Esta instituição é de fato “a mais importante das

agências de letramento”, cuja preocupação é com uma prática de letramento determinada, ou

seja, a alfabetização, “o processo de aquisição de códigos [alfabético, numérico], processos geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola”. A mesma autora completa “que outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes” (idem). Nessa lógica, de acordo com a agência em questão, teríamos tipos de letramento distintos e, associar o letrar à agência escolar seria no mínimo questionável.

Nesse sentido, o letramento se inicia bem cedo, até mesmo antes de se aprender a ler e a escrever e pode existir mesmo onde não haja escola (escolarização), tanto no tempo como no espaço. Pessoas jovens e adultas analfabetas envolvem-se em práticas sociais de leitura e escrita diariamente, em diferentes contextos com diferentes objetivos e interlocutores, portanto; pode acontecer fora do espaço escolar de forma espontânea, independente, como quando jovens e adultos leem um texto da Bíblia, leem o nome do ônibus, escrevem uma lista de compras de supermercado e assim por diante. Nesse sentido é que não somente Kleiman, mas outros autores têm problematizado o descompasso existente entre o letramento escolar e os demais letramentos extraescolares, a exemplo de Rojo (2010) que diz:

as camadas populares tiveram finalmente acesso à educação pública (ou a ela retornaram) e trouxeram para as salas de aula práticas de letramento que nem sempre a escola valoriza e que dialogam com dificuldades com os letramentos dominantes das esferas literárias, jornalística, da divulgação científica e da própria escola. Por outro lado, os letramentos na sociedade atual urbana (e mesmo no campo) sofisticaram-se muito nos últimos 20 anos, exigindo novas competências e capacidades de tratamento dos textos e da informação. Os letramentos escolares, no entanto, não acompanharam essas mudanças e permanecem arraigados em práticas cristalizadas, criando insuficiências. Há, pois, problemas sérios no letramento escolar das camadas populares (p 79).

73 A compreensão de Soares (2000; 2004; 2010) a respeito de letramento é distinta da de Kleiman (1995). Ao invés de uma substituição de termos, ela distingue letramento de alfabetização e, apesar de considerar esses dois fenômenos como distintos destaca que eles