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O discurso (ideológico) do analfabetismo, abordado anteriormente, que via o sujeito sobre uma ótica estereotipada e negativa, recebeu no século XX novos enfoques teóricos e práticos advindos de pesquisas no exterior e no Brasil, formando, por exemplo, equações entre a alfabetização e escolarização e alfabetização e o letramento. Esta última equação, especialmente, é o nosso foco neste tópico. Para se tratar das especificidades e relações entre alfabetização e letramento, no contexto da EJA, se recorrerá, especialmente, às referências teóricas associadas a Freire (1967; 1987; 1988; 2011), Ferreiro (1985; 1988; 2003), Ferreiro e Teberosky (1988), Graff (1995), Cook – Gumperz (2008), Soares (2000; 2004; 2010), Tfouni (1995), Kleiman (1995 e 2001) e Street (2003).

Como visto no panorama histórico, no início deste capítulo, a compreensão teórica do que era a alfabetização e de quem era uma pessoa alfabetizada e em “condições” de viver na cidade modificou gradativamente ao longo do século XX, à medida que a vida urbana ia se

56 tornando mais complexa, especialmente com as transformações ocorridas no mundo do trabalho, das diversas ciências e da tecnologia. É nesse sentido que Di Pierro e Galvão e (2007) salientam que a alfabetização tornou-se

um dos pilares da cultura contemporânea, pelo valor que a leitura e a escrita adquiriram no modo de vida das sociedades urbano-industriais permeadas pela ciência e tecnologia, e também por ser uma ferramenta que permite o desenvolvimento de outras habilidades igualmente valorizadas nesse âmbito (p.13).

No início da primeira metade do século XX, especialmente no Ocidente, a exemplo do Brasil, as relações entre a tríade alfabetização, industrialização e urbanização produzirão princípios teóricos e práticos para o campo mais amplo da educação, que serão, posteriormente, colocados sob suspeita e problematizado.

Concernente à questão da alfabetização nesse contexto, Graff (1995), de uma perspectiva histórica, destaca que até a década de 60 “o lugar e o sentido do conceito e do fato da alfabetização na compreensão acadêmica e popular eram simples e segura”, sendo vista como “uma variável central”, que distinguia “indivíduos e sociedades”, julgando-as desenvolvidas ou menos desenvolvidas, passando, assim, a ser concebida como uma “variável independente” (p.11), sendo superestimada a sua importância. Para esse mesmo autor, só após o final da década de 80, a alfabetização veio a ser conceitualizada como um “fator dependente” e a “linearidade de suas contribuições” (ibid., p.12) questionada.

A tese que considerava a alfabetização como a responsável pelos efeitos e pelas consequências do “desenvolvimento socioeconômico, na ordem social e no progresso individual” dos sujeitos foi discutida por Graff, que a denominou de “mito da alfabetização”, o qual não servia “mais como uma explicação satisfatória para o lugar da alfabetização na sociedade, na política, na cultura ou na economia” (ibid., p.26 -27). O referido autor apontou para a necessidade, de uma “desconstrução” ou uma “reconsideração” e “reconceitualização” da alfabetização, para lançá-la em bases mais “significativas”, como mudança “mental” e também “histórica” (ibid., p.17, 25).

Além da alfabetização, superestimada também foi a escolarização. Segundo Cook- Gumperz (2008), “durante os dois últimos séculos, quando as taxas e os valores da alfabetização mudaram e se expandiram nas sociedades ocidentais, a escolarização também se desenvolveu como movimento social” (p.34). Essa autora, assim como Graff (1995), se posiciona contrariamente à concepção de uma passagem linear do analfabetismo ao alfabetismo, propondo, ao invés disso, trajetórias de “múltiplas alfabetizações” à alfabetização

57 escolar31, apontando para uma diversidade de práticas de leitura e escrita independentemente daquelas práticas estabelecidas na instituição escolar. Esse posicionamento contraria e coloca em novas bases “as equações entre alfabetização e escolarização, alfabetização e mudança cognitiva, alfabetização e desenvolvimento econômico” que, segundo Trindade “incluíam a escolarização da alfabetização – tendo por base o mito da alfabetização e do alfabetismo” (ibid., p.127).

Cook-Gumperz, por meio de um enfoque histórico, faz uma revisão dessa relação entre a alfabetização e escolarização, que tanto tem influenciado as atuais concepções de alfabetização e da aprendizagem (op. cit., p.21). Ela realça que “ao longo de seu desenvolvimento”, as escolas tiveram, pelo menos, duas preocupações: “o ensino de habilidades de alfabetização” e “os usos dessas habilidades, que são principalmente sociais”32

. Vista dessa forma ampla, é que a aprendizagem escolar não deve ser concebida somente como aprendizagem cognitiva, até porque, segundo essa mesma autora,

se compararmos a situação atual com a história da alfabetização e da escolarização, descobriremos que, antes do desenvolvimento de um sistema de educação universal burocrático e complexo, era mais provável que a aquisição da alfabetização ocorresse por meio da interação informal em grupos localizados (ibid., p.34).

Não se pode também fazer uma associação tão estreita entre alfabetização e desenvolvimento econômico. A respeito da anterioridade da alfabetização à escolarização, Cook-Gumperz afirma, tendo como base trabalhos de historiadores a respeito da cultura popular, no Ocidente (Grã-Bretanha, Europa e Estados Unidos), nos séculos XVIII e XIX, que

a atividade econômica não foi a única razão para o desenvolvimento da alfabetização, pois era bastante possível ganhar a vida sem habilidades letradas. Inicialmente, a alfabetização tinha valor nas áreas sociais e recreativas da vida: apenas gradualmente entrou na vida econômica das pessoas comuns, de maneira que podiam determinar suas perspectivas de vida (ibid., p.37).

Em meio a essa discussão, a referida autora identifica basicamente duas correntes de mudança social contraditórias, que moldaram a institucionalização da escolarização, a saber: a primeira, que buscava a promoção da alfabetização popular, concebendo a “cultura popular e letrada das pessoas comuns” como duas referências para uma definição de alfabetização e de escolarização, que levariam tanto a “realizações individuais” como a um “radical

31Trindade (2004) observa que “também podemos reconhecer a alfabetização escolar como múltipla pelas

interpretações discursivas que recebe na produção acadêmica e na prática didático – pedagógica” (p.139).

58 desenvolvimento pessoal”. E a segunda corrente que procura o controle dessa alfabetização da cultura popular e era representada por “políticos e patrões capitalistas”, que “acreditavam que a escolarização proporcionava uma força de trabalho cada vez mais industrializada, com o sentido de disciplina [de controle] e aquilo que posteriormente seria chamado de competências escolarizadas” (ibid., p.4, grifo do autor). Essa disciplina da qual a autora trata é o tipo de alfabetização, cujos processos de ensino e aprendizagem enfatizavam “características comportamentais e morais” (idem)33

, sem deixar de lado, mas não priorizando, a habilidade de decodificar e codificar símbolos escritos.

Além da ideia de que a alfabetização estava essencialmente ligada ao desenvolvimento pessoal, social e econômico, Cook-Gumperz realça que na construção da “ideologia da alfabetização” (desde os séculos XVIII e XIX), ainda estiveram presentes os seguintes princípios teóricos: a ideia de que “habilidades letradas para todas as pessoas resultariam em igualdade e na possibilidade de uma nova ordem social e política”; a ideia de que a alfabetização escolarizada deveria estratificar o “conhecimento” e a sua “transmissão”, descontextualizando-os, bem como padronizá-la, o que a distinguiu dos “usos cotidianos da alfabetização” das pessoas; e a ideia de que o indivíduo analfabeto seria responsável tanto pelos seus avanços no aprendizado e usos da leitura e da escrita como pela sua pobreza e/ou fracasso (ibid., p.43 - 44).

No século XX, novos princípios são incorporados à ideologia da alfabetização, segundo a mesma autora, fruto dos “movimentos de educação em massa e o alcance de níveis mais ou menos universais de alfabetização nas sociedades industriais avançadas”, a saber: a “institucionalização” da alfabetização como um direito fundamental; a alfabetização como “pré-condição para qualquer mudança ou progresso futuro” e que sem esta “não existe escolarização ou educação” (ibid. p.45).

Mais dois princípios podem ser identificados: o surgimento da escolarização profissional34, que “proporcionou as condições organizacionais para que as escolas se tornassem juízes dos padrões de alfabetização, tornando-a mensurável e avaliativa para outras

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Não é demais se realçar que a oferta pública da educação e o crescimento da alfabetização, desde o começo encontraram resistências pela “preocupação política crescente com o fracasso da escolarização” bem como “uma noção recém - afinada do analfabetismo, que considerava aqueles que não tiveram escolarização e alfabetização um perigo social” (ibid., p.42).

34Para Cook – Gumperz esse termo “significa a escolarização pública, com apoio legal dentro da sociedade e

com um currículo coerente, que contenha um plano organizado de instrução para aprendizes e professores” (ibid., p.46).

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por meio de testes; e o de que houve uma “transformação da alfabetização, de uma virtude moral para uma habilidade cognitiva”, levando as escolas ao status de transmissora “seletiva do conhecimento” e promotora dessa habilidade, em razão da “crescente sofisticação tecnológica das técnicas de aprendizagem e ensino” (ibid., p.46,49).

Porém, na avaliação de Cook-Gumperz “se a alfabetização é vista como uma habilidade cognitiva que pode ser aprendida e adquirida em cenários especializados por meio de esforços individuais”, a mesma cria a ideia de que “os menos prósperos em realizações educacionais também podem ser vistos como menos merecedores do ponto de vista social” (ibid., p.49).

Trindade, portanto, considera “problemáticos os discursos que desvalorizam as habilidades dos não-escolarizados, ao mesmo tempo em que valorizam as dos escolarizados, já que cada habilidade deve ser analisada no seu contexto de aprendizagem e uso” (op. cit., p.132). Ao invés disso, habilidades cognitivas ocorrem em espaços sociais distintos dos escolares, apresentando contornos próprios, no que tange ao cultural, ao regional, ao histórico, ao dialético e ao instrumental. Na verdade, Leal (1996) diz que “qualquer conhecimento a ser construído, decorre de um processo histórico, onde não apenas os conceitos, como as próprias formas de aquisição e operações cognitivas são provenientes das relações sociais que se estabelecem nas sociedades” (p.21).

Nesse sentido, é que a escrita deve ser ela considerada um instrumento cultural e a leitura, por conseguinte, não deve se limitar a uma simples decodificação. Até porque,

a escrita é um instrumento que favorece, na sociedade, mudanças ao nível da organização desta; mudanças cuja natureza e direção dependem das mensagens emitidas e interpretadas, bem como de quem as emite. Assim, aprender a ler não implica apenas em saber decodifica textos, mas também analisar sua veracidade lógica e suas próprias premissas, a fim de proceder à análise crítica deste (COOK – GUMPERZ apud LEAL, 1996, p.21).

A alfabetização, no entanto, até 1960 era vista de fato, no seu aspecto pedagógico, simplesmente como aprendizagem de um código, de uma tecnologia. Cook-Gumperz relaciona a prática escolar de leitura com ênfase em métodos que destacam o processo de

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Para Soares (2004) essa relação entre alfabetização e escolarização talvez se explique justamente “pelo fato de que a aquisição da tecnologia da escrita – o processo de alfabetização – tem resultados visíveis e evidentes (como, aliás, a aquisição de qualquer tecnologia): embora alfabetização seja um contínuo, e o nível de domínio da tecnologia da escrita possa variar de indivíduo a indivíduo, é sempre possível determinar se (...) um jovem ou adulto sabe ou não sabe ler e escrever – trata-se de ter ou não ter a posse de uma tecnologia” (p. 94-95). Para a referida autora, do processo de alfabetização, então, “pode-se esperar que resulte, ao fim de determinado tempo de aprendizagem, em geral pré-fixado, um ‘produto’ que se pode reconhecer, cuja aquisição, ou não, atesta ou nega a eficiência do processo de escolarização” (p.95). Soares compreende alfabetização e escolarização como dois fenômenos distintos, embora relacionados.

60 decodificação, à expansão da escolarização, à população, com o objetivo de alfabetizá-la ou de “controlar a alfabetização e não promovê-la, controlar ambas as formas de expressão e de comportamento que acompanhava o avanço rumo à alfabetização” (op. cit., p.40). Como abordado anteriormente, essa alfabetização escolar, relacionada a uma noção estratificada e potencialmente padronizável de alfabetização, se diferenciava das práticas sociais de leitura e de escrita vivenciadas fora e antes mesmo da escola.

Ao se enfatizar os métodos de alfabetização, o foco pretendido era na apropriação de habilidades que ajudassem o (a) aluno (a) a codificar e decodificar, exigindo dele (a) a memorização de letras, sílabas e/ou palavras e/ou frases soltas e a consequente associação de sons, sem a devida atenção a uma construção reflexiva do SEA e à inserção em práticas de leitura e escrita.

A partir da década de 60, no Brasil, Paulo Freire (1987) destacou a necessidade de se ultrapassar a concepção de alfabetização voltada apenas para a decodificação da escrita, enquanto uma ação neutra. Essa questão, segundo o referido autor, tem relação estreita com a visão do educador como sujeito do processo de alfabetização, cujas implicações básicas são as seguintes: a primeira é que “conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado”, para que se apossem de uma tecnologia; e a segunda implicação é que a “narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador”, ou seja, “a educação se torna um ato de depositar” (p.58).

Já a educação que ele chama de “problematizadora” / “libertadora” (ou seja, o desenvolvimento de uma “consciência crítica”) concebe a alfabetização como um “ato de conhecimento” ou um “ato cognoscente” (isto é, percepção de si mesmo no mundo onde está), baseada numa relação dialógico-dialética36 entre educador e educando (ibid., p. 68), afinal ambos aprendem juntos. Nesse sentido, Freire (ibid.) propõe uma inversão conceitual (ideológica) e prática, ou seja, a de que o educando adulto é um “agente” ou um “sujeito” do e no processo de alfabetização. Por conseguinte, ele é um produtor de cultura, não uma “tábula rasa” ou mero portador de conhecimentos prévios, e que se encontra imerso em práticas em

36Segundo Zitkoski (2010) “no diálogo aberto, o exercício da argumentação dos sujeitos participantes dele

garante que as posições diferentes tenham iguais condições de serem ouvidas, debatidas e avaliadas com base no processo de construção dialógica do mundo humano. Então, a construção dialética freiriana confere um sentido inovador e uma fundamentação diferente, desde a construção lógico – racional da experiência humana no mundo até a produção cultural das formas de organização da sociedade e sua recriação através da história, porque as raízes profundas de seu processo efetivo visam à libertação da humanidade e não ao controle dela à semelhança de uma visão histórica determinista, que, infelizmente, a tradição da dialética hegeliano – marxista reproduziu nos últimos séculos” (p.116).

61 distintos espaços sociais. Nessa perspectiva, Galvão e Soares (2004) afirmam que, para a alfabetização se tornar significativa, é necessário considerar o adulto como

produtor de saber e de cultura e que, mesmo não sabendo ler e escrever, está inserido – principalmente quando mora nos círculos urbanos – em práticas efetivas de letramento, [tornando] o processo de alfabetização [...] mais significativo. O adulto não é mero portador de ‘conhecimentos prévios’, que precisariam ser resgatados pelo alfabetizador para ensinar aquilo que quer, mas um sujeito que construiu uma história de vida, uma identidade e cotidianamente produz cultura (p.51).

Tal perspectiva é diametralmente oposta àquela que infantiliza o adulto a exemplo do MOBRAL. Pinto (2010) chama a infantilização de adultos de “concepção ingênua” na EJA, pois

considera o adulto analfabeto como uma criança que cessou de desenvolver – se culturalmente. Por isso, procura aplicar – lhe os mesmos métodos de ensino e até utiliza as mesmas cartilhas que servem para a infância. Supõe que a educação (alfabetização de adultos) consiste na ‘retomada do crescimento’ mental de um ser humano que, culturalmente, estacionou na fase infantil. O adulto é considerado, assim, um ‘atrasado’ (p.91).

Freire (1985) ressalta que, no processo de alfabetização, o aspecto pedagógico é indissociável do aspecto sociopolítico. Quando trata do ato de ler nesse processo, adverte que

[...] não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas [...] se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto (p.11-12).

Para esse mesmo autor, é justamente essa “percepção das relações entre o texto e o contexto” que faz da alfabetização um “ato político e um ato de conhecimento” e, por conseguinte, “um ato criador” (ibid., p.12), inversa à educação bancária, que não conscientiza, não humaniza e não dialoga.

Ao se considerar que o sujeito adulto analfabeto é um ser produtor de saber e de cultura, é importante que ele, ao longo de sua vida, construiu conhecimentos diversos nas relações sociais vivenciadas, incluindo aqueles relacionados à escrita. Nessa perspectiva, desde a década de 1980, a alfabetização de crianças e adultos tem sido considerada, por meio das pesquisas sobre a Psicogênese da Língua Escrita, como um processo de apropriação da

62 escrita alfabética. Por outro lado, vem ganhando força os estudos que, principalmente a partir da década de 1990, relacionam a alfabetização às práticas de letramento.

No início da década de 80, avanços ocorreram na compreensão da aquisição da escrita, do ponto de vista cognitivo, com os estudos da psicogênese da escrita, cujo referencial teórico advém, sobretudo, da Psicologia e Epistemologia Genética de Jean Piaget. Esses estudos fazem um contraponto com a já mencionada concepção de alfabetização como um código fragmentado e descontextualizado, mostrando a necessidade de vê-la como um sistema socialmente construído, como um processo.

Ferreiro e Teberosky (1988) mostram que a criança e o adulto analfabeto possuem, por exemplo, competências cognitivas e linguísticas relacionadas a conhecimentos sobre a escrita e sobre o sistema alfabéticos. E afirmam que

as atividades de interpretação e de produção da escrita começam antes da escolarização, como parte da atividade própria da idade pré – escolar; a aprendizagem se insere (embora não se separe dele) em um sistema de concepções previamente elaboradas, e não pode ser reduzido a um conjunto de técnicas perceptivo – motoras (p.42 – 43).

As referidas autoras compreendem a “escrita não como um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço coletivo da humanidade” (ibid., p.43). Sendo assim, “a escrita cumpre diversas funções sociais e tem meios concretos de existências (especialmente nas concentrações urbanas)” (idem). E destacam que para a criança, “o escrito aparece [...] como objeto com propriedades específicas e como suporte de ações e intercâmbios sociais”, já os adultos “fazem anotações, leem cartas, comentam os periódicos, procuram o número de telefone, etc.” (idem). Ou seja, na sociedade circulam diversas fontes e gêneros textuais37, com os quais os adultos convivem com alguns desses gêneros. Dessa forma, segundo Trindade essas autoras

apresentam [...] três princípios básicos que guiariam suas pesquisas: não identificar leitura com [o] decifrado, não identificar escrita com cópia de um modelo e não identificar progressos na conceitualização com avanços no decifrado ou na exatidão da cópia (op. cit., p.130).

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De acordo com Marcushi (2005), os gêneros textuais não são o produto de um trabalho individual, mas coletivo, e que “contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”, sendo “entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa”, caracterizando-se “como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos”, surgindo “emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas” (p.19).

63 Albuquerque e Ferreira (2008), tendo essas duas autoras acima como referência, dizem que:

os alunos, sejam crianças ou adultos, na interação com a escrita em práticas sociais realizadas em diferentes contextos significativos, se apropriam do sistema alfabético de escrita por meio de um processo construtivo que envolve a reflexão sobre alguns dos princípios do sistema de escrita alfabética e a apropriação da linguagem própria dos diferentes gêneros textuais escritos” ( p.427-428).

Nesse processo, de acordo com Ferreiro (1988), crianças e adultos passam por alguns estágios sobre a escrita (não lineares), que são simplificados por ela em quatro sistemas ordenados de escrita: pré-silábico, silábico (inicial quantitativo ou inicial de qualidade),

silábico – alfabético e o alfabético38.

No estágio pré-silábico, a pessoa não estabelece uma relação entre escrita e pauta sonora. Quando essa relação começa a ser estabelecida, a pessoa avançaria para outro estágio de compreensão, que é chamado de silábico inicial. Quando os alunos “passam por um período em que a preocupação é exclusivamente quantitativa, então colocam qualquer letra para representar as sílabas”, considerando a quantidade delas nas palavras. O estágio silábico

de qualidade é quando os alunos “passam a demonstrar preocupação com as

correspondências, colocando letras que tenham relação com os sons representados”. Para eles, cada sílaba deveria ser representada por uma letra, e a escolha dessa letra tem relação com o som. Outros dois estágios são o silábico alfabético e o alfabético. O primeiro se apresenta quando gradativamente “os aprendizes começam a perceber que ‘as sílabas podem ser compostas de unidades menores (fonemas)’ e começam a colocar mais letras em cada sílaba”. No estágio alfabético os alunos e alunas “começam a perceber que ‘as regras de correspondência grafofônica são ortográficas e não fonéticas”, e aí, “as preocupações se voltam para as normas ortográficas” (LEAL, 2004, p. 81-87).

Os alunos adultos, no processo de alfabetização, também passam por tais estágios (hipóteses) de escrita, como revelou Ferreiro (1988), ao realizar pesquisas com adultos não alfabetizados. No entanto, diferentemente das crianças, ela observou que os conhecimentos que os adultos possuem são mais amplos e também mais específicos do que os das crianças. Diante de suas experiências de vida, eles têm uma maior compreensão dos usos e funções