• Nenhum resultado encontrado

1.1. O jovem e adulto analfabeto no Brasil: história, identidade e realidade escolar

1.1.2 Quem é o jovem e adulto analfabeto no Brasil e sua realidade escolar

Pensar as pessoas na idade jovem e adulta é tarefa por demais complexa. Alguns aspectos dessa complexidade têm relação com as faixas etárias distintas desses dois grupos humanos, com suas peculiaridades (por exemplo, de vida, de religião, de trabalho, de conhecimentos prévios), também com os seus contextos (por exemplo, histórico, político, econômico, social, cultural) e com as diversas perspectivas possíveis de análise desses jovens e adultos (por exemplo, religiosa, filosófica, histórica, psicológica, sociológica, antropológica). A essa altura, ao se falar de JA, tem-se em vista aquelas pessoas de cidades brasileiras, que tiveram acesso à escola ou não vivenciaram, por diferentes motivos, essa escolarização regular prevista na legislação, e ainda não dominam as práticas culturais de leitura e escrita e continuam sendo designadas de analfabetas24.

24Entende-se que o conceito de jovens e adultos, no âmbito educacional, não se restringe à situação denominada

“adequação idade-série”, embora seja esse grupo o foco dessa pesquisa, pois há jovens e adultos, por exemplo, no ensino médio, em cursos técnicos e no ensino superior.

46 Apesar de tamanha complexidade, ao se destacar a condição de ser analfabeto, situa-se os referidos JA num contexto bem específico, ou seja, o escolar, no qual se estabeleceu, gradativamente, uma dicotomia entre quem é analfabeto e quem não o é. Provavelmente a utilização generalizada dos termos ‘analfabetismo’ e ‘analfabeto’ teria sido exatamente o “preconceito com o indivíduo que não soubesse [...] ler e escrever que, na Modernidade, era visto como ‘incivilizado’, ‘bruto’, ‘bárbaro’. Com isso, teria se tornado necessário nomear esse ‘fenômeno’ para que ele pudesse ser estigmatizado, repelido” (SILVEIRA apud TRINDADE, 2004, p.126).

Nesse universo de analfabetos estão tanto os considerados analfabetos absolutos, pois não sabem ler e escrever, quanto os que tiveram um acesso restrito à escolarização ou possui uma habilidade restrita quanto ao uso de prática de leitura e escrita. De qualquer modo, são todos eles enquadrados na designação mais ampla e preconceituosa de analfabetos.

Sendo assim estereotipados ao longo do tempo, no Brasil, passaram a ser vistos como pessoas carentes de algo, que nada sabem e assim por diante25. Na própria morfologia do termo analfabeto, é possível já identificar a ideia de negação. De fato, em sua etimologia, o prefixo grego “an-” (de “an - alfabeto”) já indica “negação”, “privação”.

Tal concepção de analfabeto pode ser encontrada, por exemplo, em dicionários da língua portuguesa. Conforme o Dicionário Brasileiro Globo, por exemplo, analfabeta é a pessoa “que não sabe ler nem escrever; que é muito ignorante” ou aquele “que desconhece o alfabeto”, um “indivíduo ignorante”; e analfabetismo como uma “qualidade ou estado do que é analfabeto” ou que não possui “instrução elementar” (1998).

Furter (1974) afirma que uma das negações em relação às pessoas designadas de analfabetas diz respeito ao termo mesmo analfabeto, pois “a priori, no simples ato de denominar uma pessoa, caracterizamos uma diferença radical entre sua inexistência, totalmente negativa, e a nossa existência plena e radiosa”. E esse autor acentua que o analfabeto é, portanto, “um homem que nos é totalmente estranho. Nada tem do próximo, mas tem tudo do contaminado. Não causa espanto se, por associação, lhe são atribuídos todos os caracteres negativos imagináveis”. E conclui Furter, afirmando que o analfabeto é alguém que “só conta para nós pelo que não é. E, por isso, não o estudamos: o analfabeto não é um homem – é apenas o suporte de uma negação. Basta classificá-lo” (p.33).

25

Um levantamento histórico do preconceito contra o analfabeto bem como a necessidade de revisão de tal concepção são ressaltados em trabalhos como os de Furter (1974), Romanelli (1978), Viñao Frago (1993), Graff (1995), Freire (2001), Almeida (2003), Galvão e Di Pierro (2007) e Galvão e Soares (2004).

47 Ainda sobre essa questão, Galvão e Di Pierro afirmam que, atualmente, no Brasil, o termo analfabeto é, “com poucas exceções, carregado de significados negativos”. Por conseguinte, “podemos inferir, também, que a relação que as pessoas, de modo geral, têm com o analfabeto é mediada por preconceito, por pré-julgamentos, por estigmas” (2007, p.10). Freire (2001), por exemplo, elenca algumas concepções (ideológicas) ingênuas, associadas à pessoa analfabeta, a saber: “erva daninha”, “enfermidade”, “chaga”, “incapacidade”, “pouca inteligência”, “preguiça”, “famintos de letras” e “sedentos de palavras”, “vergonha” e de “natural inferioridade” (p.15,53-55, 59).

Galvão e Soares (2004) chamam a atenção também para duas tendências comuns (que serão desenvolvidas mais adiante): a de se infantilizar o adulto analfabeto, como alguém que se assemelha “a uma criança que precisa de ajuda de alguém”, e a de considerá-lo num estado de prisão, ou seja, como “alguém que precisa” de se libertar da “escravidão” (p.50). O que agrava essa situação, ainda segundo os referidos autores, é a veiculação desse tipo de representação na mídia e em outros discursos, que alimenta nesses sujeitos a “inferioridade a eles atribuída” e, também, a presença do referido discurso na escola, quando alfabetizadores veem os adultos não alfabetizados como “tábulas rasas”, os quais “precisam do saber do outro para sobreviver” (ibid., p.50 - 51).

O ser analfabeto, no uso comum, no entanto, não se limitou ao fato só do sujeito não saber ler e escrever. Abrangeu, também, o seu aspecto identitário.

Esse aspecto, segundo Furter, é mais sutil e perigoso. Ele diz que “uma vez que os analfabetos só existem para nós, em função de alguma coisa que não são; não se fará distinção entre eles. São todos reduzidos a um denominador comum: o analfabetismo26”. Dessa maneira, “substituem-se homens que vivem plenamente, em situações concretas, por uma única qualidade ‘coisificada’ e negativa: o analfabetismo”. E mais, “substitui-se uma qualidade diversa e múltipla por uma qualidade abstrata, pejorativa, que só tem sentido para aquele que julga. Para o homem que tratamos de analfabeto, representa uma rejeição definitiva”. E conclui, “o analfabetismo não pode, então, ser um fim em si mesmo, pois é apenas o fim de um começo” (op. cit. p.34-35).

A questão se agrava ainda quando se tem em vista a mulher brasileira.

Quanto à educação das mulheres, Souza (1990) recorre à própria constituição da sociedade brasileira e aponta que “as raízes do sombrio quadro atual [21 anos atrás] da

26

O termo analfabetismo é marcado pela dicotomia e exclusão, sem falar em ambiguidades, pois o próprio sufixo “-ismo” aponta para um estado, uma condição, no caso, de ser analfabeto.

48 educação das mulheres se localiza nas estruturas do patriarcado, que continuam a influenciar as atitudes e comportamentos para com as meninas e as mulheres em muitas sociedades” (p.13).

Ainda segundo o mesmo autor, durante séculos, as mulheres que foram excluídas “das estruturas de poder, pela subjugação e discriminação”, deveriam elas mesmas ser “as figuras- chave na campanha de alfabetização global” (ibid., p.12). Souza afirma, assim, sobre a necessidade de se desvelar a falsidade do mito que afirma que “LUGAR DE MULHER É EM CASA. MULHER – PIOR AINDA DEPOIS DA IDADE – NÃO TEM DE INVENTAR DE ESTUDAR” (idem, grifo do autor). O referido desvelamento para esse mesmo autor se faz preciso, pois esse mito

reforça uma dupla discriminação: ser mulher e ser analfabeta. Contraditoriamente, a mesma sociedade que a discrimina, cobra-lhe responsabilidade pela sobrevivência e bem-estar dos filhos, assim como um papel central na transmissão do patrimônio cultural às novas gerações. Se é verdadeiro que ‘educar uma mãe é educar uma família’, é igualmente verdadeiro que quando a educação da mãe é insuficiente, a dos filhos também o será. Finalmente, a condição de ser mulher não pode afetar o direito à cidadania (ibid., p.29).

O primeiro alerta de Souza, é que a mulher, então, se assemelha ao homem em relação à condição de analfabeta, mas pesa sobre ela a questão de gênero, de ser mulher. E embora tenham ocorrido mudanças evidentes no campo profissional, nos mais diversos espaços sociais, para muitas delas a realidade é aquela que só situa a mulher unicamente no espaço do lar. Outro alerta feito pelo autor é aquele que garante à mulher o direito à cidadania, que certamente inclui o acesso irrestrito dela à educação.

Do ponto de vista da legislação, a Constituição do Brasil consagra a educação escolar como um direito civil básico tornado explícito para mulheres e homens, quando afirma que a educação é um direito social (Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo II,

Dos Direitos Sociais, Art. 6), que “o dever do Estado com a educação será efetivamente a

garantia de ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a este não tiveram acesso na idade própria” (Artigo 208) e estabelece como uma de suas metas a “erradicação do analfabetismo e da universalização do atendimento escolar” (Artigo 214).

Apesar dos direitos assegurados e metas estabelecidas, a EJA permanece, porém, como um grave problema da educação escolarizada brasileira, e como visto acima, um problema que atinge especialmente as mulheres.

49 Souza (1990) elenca pelo menos três razões para justificar a permanência desse problema: a primeira é que é um problema, antes de tudo, “econômico-político” e não somente pedagógico; a segunda, que “depende da escolarização infantil que da forma como está sendo realizada não nos permite grandes esperanças” e, por fim, “porque o próprio trabalhador (empregado, desempregado, por conta própria) ainda hoje não percebe nem sente tão claramente a necessidade de se alfabetizar” de forma, conclui o autor, “que justifique acrescentar à dureza de sua vida o sacrifício de frequentar uma escola noturna, sem condição física e mal equipada, com um professor despreparado para enfrentar os problemas da aprendizagem de jovens e adultos” (p. 70).

Dados quantitativos27 no Brasil, que abrangem todo o século XX (1920 a 2000), os quais vêm sendo usados integral ou parcialmente, especialmente na literatura educacional em geral28, mostram a situação do analfabetismo na população de 15 anos ou mais, conforme apresenta a tabela abaixo (IBGE apud GALVÃO e DI PIERRO, 2007, p.59).

Tabela 1 - Brasil: Evolução do analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais–1920/2000.

Ano/Censo Total Analfabetos %

1920 17.557.282 11.401.715 64,9 1940 23.709.769 13.269.381 56,0 1950 30.249.423 15.272.632 50,5 1960 40.278.602 15.964.852 39,6 1970 54.008.604 18.146.977 33,6 1980 73.541.943 18.716.847 25.5 1991 95.837.043 19.233.758 20,0 2000 119.556.675 16.294.889 13,6

Fonte: IBGE. Censo Demográfico

A tabela 1 destaca uma relação estreita, para fins estatísticos, entre o crescimento da população de 15 anos ou mais, ao longo dos anos, e os números de analfabetos dentre essa população.

27Ferraro faz uma separação entre “indicadores do estado educacional”, que se relacionam “à avaliação e

determinadas características da população, tais como saber ler e escrever”, realizados, por exemplo, pelo IBGE, e “indicadores do movimento educacional”, que “são construídos com base nos dados extraídos dos registros de determinados eventos escolares, como matrícula”, dentre outros (2009, p.19). Nessa pesquisa, destacou-se o primeiro dos indicadores. Ainda segundo esse mesmo autor, os censos, apesar de fundamentais, têm limitações metodológicas, como a dificuldade da verificação da informação dada; a impossibilidade de “certificar-se de que ‘saber ler e escrever’, tenha, para as pessoas entrevistadas, o mesmo significado que (...) para os formuladores do censo (...) e/ou para os pesquisadores”; também “que a avaliação socialmente negativa ou estigmatização das pessoas que têm a característica chamada analfabetismo pode produzir um viés tendente a esconder, em dimensão ignorada, a condição de analfabeto ou analfabeta” (idem, p.20).

28Por autores como Di Rocco (1979, p. 85); Siqueira (1989); Gatti, Silva e Espósito (1990); Paiva (2003);

50 O crescimento desse conjunto populacional durante o século XX acompanhou o crescimento da própria população brasileira, conforme os dados da tabela a seguir (apud PAIVA, op. cit., p.408).

Tabela 2 – Brasil: Evolução da população em milhões.

ANO 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000

População 30,6 41,2 51,9 70,9 94,5 121,1 146,8 169,4

Houve, sim, esses dois crescimentos ditos acima, e é preciso reconhecer que houve a diminuição, no âmbito da educação, da população analfabeta, de acordo com a tabela 1, especialmente entre os anos de 1940 a 1970 e o ano 2000.

Na avaliação de Romanelli, porém, “em números absolutos, cresceu o analfabetismo29, mas “em números relativos decresceu sensivelmente” (op.cit., p.75). Nesse sentido, Galvão e Di Pierro dizem que esse recuo nos índices de analfabetismo no século XX ocorreu, “quando se intensificou a migração do campo para as cidades e começou a se estruturar uma rede de escolas públicas acessível à população mais pobre, ao mesmo tempo [em] que se desenvolveram campanhas de alfabetização de adultos” (op.cit. p.58).

Dados do analfabetismo das mulheres no Brasil, em 2000, considerando faixas etárias mais específicas, mas a partir dos 15 anos, em comparação aos homens, indicam que há mais mulheres analfabetas do que homens, mas, igualmente aos homens, à proporção que a faixa etária aumenta, também aumenta o número de analfabetos, não ocorrendo esse fenômeno, para ambos os gêneros, a partir dos 39 anos, quando a quantidade de pessoas analfabetas é muito grande, e mais uma vez o número de mulheres é superior ao dos homens, como indica a tabela abaixo (apud, ibid., p.62).

29Ferraro também constata isso e acrescenta que “somente os censos de 1991 e 2000 é que passaram a registrar

51

Tabela 3 – Brasil: Pessoas de 15 anos ou mais, não - alfabetizadas, por sexo segundo os

grupos de idade – 2000.

Grupos de idade Total Homens % Mulheres %

Total 15.467.262 7.526.250 48,66 7.941.012 51,34 15 a 17 anos 432.005 287.005 66,44 145.000 33,56 18 a 24 anos 1.330.327 837.329 62,94 492.998 37,06 25 a 29 anos 1.040.647 618.652 59.45 421.994 40,55 30 a 34 anos 1.197.781 670.639 55,99 527.142 44,01 35 a 39 anos 1.252.178 668.772 53,41 583.406 46,59 Mais de 39 anos 10.214.324 4.443.853 43,51 5.770.472 56,49 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000.

Diante desse cenário ainda persistente, Gatti, Silva e Espósito, a partir de fontes estatísticas diferentes, dizem que um dos grandes desafios atuais [isso na década de 90], no Brasil, se relaciona ao “contingente de adultos analfabetos”, os quais “a sociedade não se tem mostrado capaz de incorporá-los à cultura escrita” 30 (op.cit., p. 7).

De fato, continua muito alto o número de JA analfabetos, para um país de dimensões continentais como o Brasil, que, segundo um levantamento estatístico, expõe uma das maiores taxas de analfabetismo, entre pessoas com 15 anos ou mais (11,6%, em 2003), se comparado, por exemplo, com outros países da América do Sul, pra quem o Brasil só fica atrás, de acordo com esse mesmo levantamento, da Bolívia (13,5% em 2001) e do Peru (12,3% em 2004) (UNESCO apud GALVÃO e DI PIERRO, op. cit., p.57). Realidade que Siqueira, no final da década de 80, destaca que o Brasil naquele momento era “o país latino-americano”, que mais apresentava “o maior número absoluto de analfabetos adultos” (op.cit., p. 10). Mas, afinal, quem são esses JA? Como são vistos no Brasil?

Como dito até agora, a faixa etária do público destacado como analfabeto é aquele de 15 anos e acima. Nesse sentido, Di Rocco diz que “conceituar adulto através do aspecto cronológico, apontando uma idade para separar a infância da maturidade, seria simplificar demasiado uma realidade extremamente complexa” (op. cit., p.12). E a justificação para a

30

Do ponto de vista avaliativo, que não será aprofundado aqui, o que está sendo avaliado nesses critérios censitários é a alfabetização. Sobre isso, Soares (2004) diz que “as medidas censitárias, no Brasil, têm avaliado índices de alfabetização, isto é, têm buscado identificar a posse, ou não, da tecnologia da escrita, quer do ‘saber ou não saber assinar o próprio nome’ (...), quer pelo critério do ‘saber ou não saber ler e escrever um bilhete simples’ (...). Embora em ambos os critérios estejam pressupostas práticas sociais de escrita (assinar o nome e fazer uso de bilhete), a avaliação da capacidade de ler e escrever um bilhete simples, prática sem dúvida um pouco mais complexa que a assinatura, já representou um avanço em direção a medidas de letramento, avanço incentivado pela UNESCO que, no final dos anos 1970, passou a sugerir, para as estatísticas educacionais, a avaliação da alfabetização funcional” (p.96). Essa mesma autora, falando a respeito dessa avaliação proposta nesses censos, diz que na verdade “não se trata de avaliação, mas de auto-avaliação, uma vez que os Censos se baseiam na declaração do informante, sem qualquer verificação, o que traz consequências para a confiabilidade dos dados” (idem).

52 escolha dessa idade como referência tem associação, segundo ele, com “fins estatísticos”, pois “o fato dos indivíduos atingirem 15 anos de idade, sem saber utilizar os recursos mínimos de comunicação lida e escrita, equivale a classificá-los como analfabetos” (idem).

Apesar do estereótipo sobre as pessoas analfabetas, e talvez também por causa disso, tem crescido o contingente de JA que estão voltando à escola depois de muito tempo ou que estão iniciando os estudos pela primeira vez. O perfil geral desse público que tem procurado a escola vem sendo destacado em algumas pesquisas, inclusive em documentos produzidos pelo próprio Ministério da Educação (MEC, 2006; GALVÃO e DI PIERRO, 2007).

No âmbito pessoal, um primeiro aspecto que pode ser detectado é a baixa autoestima desses sujeitos. O preconceito existente contra as pessoas analfabetas na sociedade brasileira termina sendo internalizado pelos próprios JA e se reflete em seus relatos, quando, sobretudo, falam sobre si. Nesse sentido, Larrosa (1984), de uma perspectiva foucaultiana, afirma que

o que somos ou, melhor ainda, o sentido de quem somos, depende das histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos. Em particular, das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal. Por outro lado, essas histórias estão construídas em relação às histórias que escutamos, que lemos e que, de alguma maneira, nos dizem respeito na medida em que estamos compelidos a produzir nossa história em relação a elas. Por último, essas histórias pessoais que nos constituem estão produzidas e mediadas no interior de práticas sociais mais ou menos institucionalizadas (p.48).

Relatos de JA tem sido um material riquíssimo utilizado em diversas pesquisas. Galvão e Di Pierro, de um ponto de vista histórico, e afirmando, como Larrosa, a construção histórica desse preconceito e a não linearidade dessa construção, dizem que tal preconceito

foi sendo fabricado, em diferentes instâncias sociais, ao longo da história brasileira. Esse processo não foi linear, na medida em que as visões sobre aquele que não sabe ler nem escrever não caminharam em uma única direção. Hoje, assim como ocorreu em outros momentos, discursos diferentes e muitas vezes antagônicos concorrem, em diferentes esferas, na produção de um lugar simbólico para esse sujeito (op.cit., p.53).

Essa baixa autoestima é “muitas vezes reforçada pelas situações de fracasso escolar”, até porque “a sua passagem pela escola, muitas vezes, foi marcada pela exclusão e/ou pelo insucesso escolar”. Assim, quando esse jovem e/ou adulto retorna aos estudos ou começa pela primeira vez a estudar, “com um desempenho pedagógico anterior comprometido", ele “volta à sala de aula revelando uma autoimagem fragilizada, expressando sentimentos de

53 insegurança e de desvalorização pessoal frente aos novos desafios que se impõem” (MEC, op. cit., p.16).

Além disso, esses mesmos alunos, em sua maioria, tendem a se culpar pelo não aprendizado em sala de aula, sem que façam uma avaliação mais ampla que inclua fatores externos à escola (por exemplo, relações familiares, questões econômicas e políticas públicas) e fatores internos (por exemplo, o relacionamento com os colegas e com os professores, as condições físicas da escola, e, especialmente, a prática pedagógica vivenciada).

No âmbito sócio – econômico esse público é composto por “homens, mulheres, jovens, adultos ou idosos”, pertencentes “todos a uma mesma classe social: são pessoas com baixo poder aquisitivo, que consomem, de modo geral, apenas o básico à sua sobrevivência: aluguel, água, luz, alimentação, remédios para os filhos (quando os têm)”. Dentro desse quadro, “o lazer fica por conta dos encontros com as famílias ou dos festejos e eventos das comunidades das quais participam, ligados, muitas vezes, às igrejas ou associações”. E ainda, “a televisão é apontada como principal fonte de lazer e informação. Quase sempre seus pais têm ou tiveram uma escolaridade inferior à sua” (MEC, ibid., p.15).

No âmbito do trabalho, esses JA, em sua maior parte, “são trabalhadores e, muitas vezes, a experiência com o trabalho começou em suas vidas muito cedo” (MEC, ibid., p.19).

Na zona urbana, os pais desses JA “saíam para trabalhar e muitos deles já eram responsáveis, ainda crianças, pelo cuidado da casa e dos irmãos mais novos. Outras vezes, acompanhavam seus pais ao trabalho, realizando pequenas tarefas para auxiliá-los”. Também, é comum que “estes alunos tenham realizado um sem-número de atividades cuja renda completava os ganhos da família: [...] arrematar costuras, cuidar de crianças etc.” (idem).

Diante do perfil de jovens e adultos supracitado, por que, no entanto, eles procuram a escola? Quais as suas expectativas de vida? Eles desenvolvem práticas de leitura e escrita em espaços além da escola?

Em relação à primeira pergunta, é sabido que pessoas jovens e adultas procuram a escola por diversos motivos. Numa dimensão individual, esses motivos se avolumam bastante. Até porque, quando se considera alunos analfabetos da zona urbana em geral,

a cada realidade corresponde um tipo de aluno e não poderia ser de outra forma, são pessoas que vivem no mundo adulto do trabalho, com responsabilidades sociais e familiares, com valores éticos e morais formados a partir da experiência, do ambiente e da realidade cultural em que estão inseridos (MEC, ibid., p.4).

54 É possível, no entanto, reunir alguns motivos comuns destacados em algumas pesquisas. Nessa dimensão pessoal, por exemplo, Gléria (2009) destaca que “os alunos da EJA veem à volta aos estudos como uma possibilidade de recuperação da identidade humana e cultural, restabelecendo dessa forma a autoestima que por muitas vezes permanece oculta nos sujeitos de suas ações” (p.43).

A segunda pergunta (quais as suas expectativas de vida?), nos leva às mais variadas expectativas de vida expressas por pessoas jovens e adultas. Numa de suas pesquisas, Garcia (2006) destaca algumas dessas expectativas: “alfabetização como busca de emprego”; “alfabetização como valorização da imagem social”; “alfabetização como prazer em