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CAPÍTULO 3 – A CRÍTICA EM MARIA RITA KEHL E ARLINDO MACHADO

3.1 ALGUMAS BALIZAS EM MARIA RITA KEHL

Nascida em Campinas, em 1951, Maria Rita Kehl é psicanalista e jornalista. Atua como psicanalista desde 1981, foi editora do jornal Movimento e participou da criação do jornal Em Tempo, duas importantes publicações da imprensa alternativa na época do regime militar (o jornal Movimento circulou entre 1975 e 1981; o Em Tempo de 1978 até 2004, quando passa a se chamar Democracia Socialista, cuja versão online circula até os dias de hoje) , além de ter publicado regularmente em jornais da grande imprensa como a Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo.

Em 1979, tornou-se mestra em psicologia na Universidade de São Paulo com a dissertação “O Papel da Rede Globo e das Novelas da Globo em Domesticar o Brasil Durante a Ditadura Militar“. Em 1997, concluiu o doutorado em Psicanálise pela PUC-SP com uma pesquisa que resultou no livro “Deslocamentos do Feminino – A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade” (depois publicado pela Imago Editora, em 1998). Atualmente, já publicou nove livros publicados e, desde 2006, é psicanalista de membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os textos de Maria Rita Kehl no Folhetim, quando contrastados com as suas publicações sobre televisão fora deste Caderno, revelam um processo de pesquisa e análise da programação televisiva e de sua estrutura produtiva que resultariam posteriormente em capítulos publicados em coletâneas e também em sua dissertação de mestrado. É possível observar, além dos diversos tópicos abordados que se repetem, que a autora vai, ao longo do tempo, construindo uma interpretação da televisão que encontra sua forma mais acabada na adaptação de sua dissertação de mestrado publicada em 1986 como parte do livro Um país no ar: história da tv brasileira em três canais233. A coletânea traz a história das quatro emissoras que protagonizaram a criação e consolidação da transmissão televisiva no Brasil: Tupi, Rio, Excelsior e Globo. O capítulo escrito por Maria Rita Kehl, chamado “Eu vi um Brasil da TV”, aborda a trajetória da Rede Globo.

233 KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: SIMÕES, Inimá F.; COSTA, Alcir Henrique da; KEHL, Maria Rita. Um país no ar: história da TV brasileira em três canais. São Paulo: Brasiliense/ Funarte, 1986. p.167-276.

Para a autora, a consolidação da emissora está intimamente ligada aos planos de integração nacional do regime militar e ao desenvolvimento de uma sociedade de consumo. Dessa forma, a integração do Brasil fragmentado se faria pela instituição de hábitos de consumo padronizados para todo o país. No entanto, essa integração pelo consumo não se cumpre plenamente, uma vez que grande parte do país não possui poder de compra e, nesta condição, esta parcela da população se integra somente no nível do imaginário.

Se na entrevista concedida para a Boitempo, em 2009234, Kehl afirma que em sua dissertação de mestrado apenas “pincelou” elementos da psicologia, é possível notar, porém, tanto na dissertação quanto nos textos publicados no Folhetim que conceitos como a psique, o imaginário e a subjetividade são as bases que sustentam a teoria da autora sobre o poder que a televisão exerce sobre seus espectadores, especialmente no que diz respeito ao motivo pelo qual o público outorga à televisão este poder. Assim, a autora mobiliza estes conceitos de várias formas em sua análise. Estas bases vão se solidificar ainda mais em Videologias235, o livro sobre televisão que Kehl publicou, em coautoria com o jornalista Eugênio Bucci, 20 anos mais tarde.

No capítulo “Eu vi um Brasil da TV”, Kehl discorre sobre a inovadora estruturação da emissora, centrada na figura de empresários e profissionais de marketing, e de sua associação com empresas norte-americanas que renderam, mais do que o simples investimento financeiro, a capacitação nas formas corporativas de se produzir cultura na mídia televisiva. A autora destaca o papel da Rede Globo no intento de pacificar o país de forma a evitar o que se chamava de “radicalização”. Essa pacificação se deu não pelo ocultamento de eventos inconvenientes para o discurso ideológico dominante, mas pela absorção das tendências e necessidades emergentes nesta sociedade de consumo de forma a orientar os debates sociais e inserir todas as possibilidades e significações dentro da lógica dominante.

Antes de publicar sua dissertação, Maria Rita Kehl contribui em outra coletânea sobre televisão. Em 1979 elabora dois dos 25 ensaios, organizados pelo jornalista e professor Adauto Novaes e escritos por intelectuais e artistas sobre a cultura brasileira na década de

234 Disponível no site da editora.

1970236. O volume que fala de televisão foi escrito por Maria Rita Kehl, Elizabeth Carvalho, Santuza Naves Ribeiro e Isaura Botelho237.

Em “Um só povo, uma só cabeça, uma só nação” a autora trata da televisão no contexto do governo militar e do desenvolvimento capitalista. Para ela, falar da história da televisão brasileira significa falar da história da consolidação da indústria cultural no Brasil, um processo marcado pelo crescimento dos monopólios econômicos que, no caso da televisão, é protagonizado pela Rede Globo. Assim, a autora justifica o seu foco quase que exclusivo na análise da trajetória da emissora neste e em todos os trabalhos que escreveu no período.

Neste ensaio, a autora cria uma íntima relação entre o indivíduo que nasce do processo de industrialização e urbanização e a televisão, onde cada um retroalimentava o outro. Esse processo é explicado utilizando conceitos da psicanálise. Para Kehl, essa íntima relação entre televisão e espectador não se explica pelo viés simples da lavagem cerebral, segundo a qual a televisão dita o pensamento do espectador como uma programação mental no estilo “estímulo/resposta”. O processo é mais sofisticado e está baseado na capacidade da televisão de satisfazer pulsões subjetivas de seus espectadores. O que a televisão faz é dar nome ao que Kehl chama de “manifestações espontâneas”, que emergem da sociedade de forma caótica e anseiam por significação. A televisão, portanto, cumpriria esse papel de dotação de significado na vida coletiva e individual, aproveitando para inserir todos os acontecimentos dentro da lógica explicativa dominante. Sendo assim, a estratégia da televisão seria, ao invés de deixar invisíveis fatos que não são convenientes para as classes dominantes, explicar todos eles por meio desta ideologia burguesa.

Em seu segundo ensaio, “Mil e uma noites para as multidões”, a autora vai reforçar o argumento do ensaio anterior focando agora na narrativa das novelas. Mesmo em histórias na qual o processo de industrialização e urbanização é criticado, ele ainda é visto como uma transformação inevitável com a qual todos os espectadores devem se acostumar. O personagem que foge e combate esta nova realidade é apresentado como um inocente ou idealista. Ele é reconhecido, mas a sua potência de transformação é anulada pelas gigantes engrenagens do progresso. Com a exceção deste progresso inevitável, todos os conflitos

236CARVALHO, Elisabeth; KEHL, Maria Rita; RIBEIRO, Santuza Naves. Anos 70: 5-Televisão.Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

acontecem na esfera dos dramas privados e, depois de diversas reviravoltas, o status dos personagens volta a ser o mesmo do início, perpetuando um movimento cíclico.

Sobre os enredos considerados progressistas trazidos para a televisão no final da década de 1970, Maria Rita Kehl explica que se trata de uma tentativa de inovação que, no entanto, não revoluciona de fato. Segundo a autora, a crítica social é abordada superficialmente, sem chegar ao cerne da questão, e os temas “ousados“, como aqueles trazidos pelo seriado Malu Mulher (divórcio, violência doméstica, aborto), servem para chocar um público conservador criado pela própria emissora, que acaba por jogar a responsabilidade pelo enredo tradicional na demanda da audiência.

Neste arcabouço conceitual desenhado em seus ensaios e em sua dissertação, Maria Rita Kehl funda suas análises para o Folhetim. Inicialmente, a jornalista publicava apenas notas curtas para o Caderno, com comentários sobre programas específicos. É possível observar, porém, como Kehl traz estas concepções para dentro de suas breves análises sobre a televisão. Assim como em seus ensaios sobre a televisão na década de1970 e em sua dissertação de mestrado, a Rede Globo e sua programação é o foco de Maria Rita Kehl no Folhetim. Ao contrario do que ocorre em sua dissertação, no Folhetim, Kehl não se dedica a mapear as estruturas produtivas e administrativas da Rede Globo, dando mais atenção à relação entre discurso televisivo e o processo de subjetivação do telespectador. Em sua crítica, Kehl tem como eixos centrais a análise do discurso televisivo, no qual aborda a narrativa textual e imagética de programas e anúncios publicitários, e as implicações deste discurso e da própria presença das telas no cotidiano na construção da subjetividade do telespectador. Ambos os eixos permeiam toda a sua crítica, mas é possível separar os textos que priorizam um ou outro.

Entre os textos que enfocam o discurso articulado pela televisão, o argumento que Maria Rita Kehl desenvolve em “Um só povo, uma só cabeça, uma só nação” em torno do enquadramento da realidade na lógica simbólica dominante se desdobra em exemplos específicos, como em “‘Dane-se’. Nova campanha da Globo?”238, na qual comenta as campanhas de conscientização promovidas pela rede, como “Guie sem ódio”, sobre violência no trânsito e “Mexa-se”, sobre o sedentarismo nas grandes cidades. Na opinião de Kehl, ambas as campanhas são falaciosas, uma vez que acabam por culpar o cidadão pelas

238 KEHL, Maria Rita. "Dane-se". Nova campanha da Globo? Folhetim: Folha de São Paulo, São Paulo, 02 out. 1977.

consequências que sofre por viver em um sistema que lhe é imposto, sejam elas a frustação expressada na forma de violência no trânsito ou do sedentarismo fruto das imposições do estilo de vida urbano tanto no âmbito do trabalho como do lazer. Como defendido em “Um só povo, uma só cabeça, uma só nação”, aqui Kehl exemplifica a estratégia do discurso da televisão, que ao invés de negar problemas como a violência no trânsito e o sedentarismo, suprime a causa e transforma a vítima em algoz ao culpar o cidadão.

Na nota “Globo Repórter ou Jean Manzon?”239 Kehl afirma que a Rede Globo representa uma falsa imagem da Febem, apresentando-a como uma instituição bem estruturada e administrada, em vias de resolver eventuais problemas. Ela então aponta problemas graves ainda sem solução na instituição, como maus-tratos e casos de suicídio. Para indicar a linguagem utilizada pela emissora, Kehl compara a matéria jornalística da Rede Globo com o trabalho de Jean Manzon, fotógrafo francês que trabalhou para o Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas e para a revista O Cruzeiro na década de 1940, conhecido como um dos fotógrafos de maior prestígio da história do Brasil e também por produzir fotografias ensaiadas e posadas que se passavam por realidade. Embora não faça referência direta a nenhuma reportagem específica de Manzon, Kehl traz o nome do fotógrafo no título pressupondo não apenas que o leitor o conheça, mas que também associe seu nome a um trabalho de encenação de situações reais para fins de propaganda institucional240. Aqui a estratégia discursiva da televisão é outra, ao invés deslocar as relações sociais de causa e consequência, o programa evita tratar dos problemas da instituição e apresenta uma realidade encenada de uma Febem próspera.

Em “O brasileiro não está preparado para ver TV”241, Maria Rita Kehl trata da discussão ecológica que surge em torno do projeto de instalação de uma indústria de papel e celulose no Vale do Paranapanema e sobre como a Rede Globo lucra em cima dessa polêmica. A emissora, ela afirma, capta de um lado a comoção pública, ao fazer um programa relatando as mazelas sofridas pela população e o ecossistema local, e de outro lucra com o patrocínio da Braskraft (empresa que pretendia construir a indústria), ao fazer um segundo

239 Idem. Globo Repórter ou Jean Manzon? Folhetim: Folha de São Paulo, São Paulo, 16 out. 1977.

240 Embora Maria Rita Kehl não mencione, Jean Manzon e David Nasser publicaram uma reportagem na revista O Cruzeiro tratando das instituições correcionais de jovens infratores (com o título de “Delinquência Juvenil”, foi publicada em 01/02/1947). Nas fotografias da reportagem, o recurso da encenação é utilizado e, segundo análise de Bruno Pinheiro, as imagens buscam legitimar o sistema carcerário juvenil. PINHEIRO, Bruno. Uma Bahia em construção: Pierre Verger e Odorico Tavares na revista O Cruzeiro, 1946-1951. 2016. 130 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. P. 109-115.

programa, este financiado pela empresa, defendendo a instalação da fábrica. Nesta nota, Kehl traz ao fundo um argumento estruturante de sua dissertação de mestrado: o valor que norteia a Rede Globo é o lucro acima de tudo. Embora não desenvolva este argumento nesta crítica, fica claro que, segundo Kehl, à Rede Globo pouco importa se o meio ambiente será preservado ou se a fábrica será construída, desde que a emissora possa lucrar com a empatia do telespectador de um lado e com a publicidade da Braskraft do outro.

Em “O mito do psicanalista”242, a autora trata do mito construído em torno da personalidade de Eduardo Mascarenhas, psicólogo brasileiro famoso por sua participação em programas de televisão, como o TV Mulher e pela sua expulsão da Sociedade de Brasileira de Psicanálise. Ela coloca que a discussão que se constrói em torno de Eduardo Mascarenhas não é a respeito da dessacralização do mito do psicanalista (o intelectual hermético e austero), mas uma simples modernização de sua imagem (o intelectual que usa calça jeans e se permite ser narcisista e vaidoso). A autora começa o texto afirmando que, durante os anos do regime militar, a televisão passou a ditar pautas de discussão pública, pela falta de outros espaços que eram cerceados pelo regime: “a principal faculdade que ela (a televisão) nos rouba não é a de criticar o que ela mostra, mas a de enxergar o que ela não mostra“. Segundo a autora, somente a socialização da práxis da psicanálise poderia dessacralizar o campo. Esta é a nota em que Kehl trata com mais clareza a ideia que desenvolverá posteriormente em torno da produção de mitos perpetrada pela televisão. Aqui, a autora defende que a única forma de desarticular o mito é desnudando estratégias de construção midiática – que é o que Kehl faz em sua crítica – e ampliando o conhecimento da população sobre as práticas da psicanálise.

Em “Nina, quem diria, hein?”243, Maria Rita Kehl sai da esfera pública para a vida privada quando analisa o final de três núcleos da novela Nina244. Ela se surpreende com o final da protagonista Nina, que termina a série solteira e anônima, destacando a raridade deste tipo de final para protagonistas da televisão brasileira; destaca também o casamento de um migrante que ascendeu socialmente com uma mulher de família rica e tradicional, como uma adequada representação da formação da alta burguesia paulista; e mostra como a série se redime de seus desfechos inovadores frente ao público conservador com o casamento do casal “marginal e revoltado“ em moldes tradicionais (contando até com o batismo do rapaz). Aqui mais uma vez Kehl sugere o intuito da Rede Globo de lucrar com os dois lados de uma

242 Idem. O mito do psicanalista. Folhetim: Folha de São Paulo, São Paulo, 29 nov. 1981. 243 Idem. Nina, quem diria, heim? Folhetim: Folha de São Paulo, São Paulo, 22 out. 1978.

244 Nina foi uma telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo, entre 27 de junho de 1977 a 13 de janeiro de 1978, às 22 horas.

mesma polêmica, desta vez ligada à vida íntima. Se por um lado atrai os progressistas com uma protagonista que acaba a novela solteira, por outro lado agrada os conservadores ao trazer também um final tradicional com casamento e batismo.

No mencionado ensaio “Mil e uma noites para as multidões”, Kehl volta a tratar da novela Nina, mas desta vez não traz a questão abordada na nota do Folhetim. Nesta análise, Kehl se atenta ao enredo da novela como um todo. A personagem Nina representaria as ideias “modernas” e positivistas e seu desfecho como uma professora de cidade do interior solteira é a forma que a novela encontra de mostrar que “a vitória do ‘livre-pensar’ característico do capitalismo de livre-concorrência surge apenas como uma perspectiva longínqua.”245, um objetivo a ser conquistado pelas futuras gerações. Assim, segundo Kehl, ao retratar o período de 1926 a 1930 em São Paulo, a novela trataria da queda da aristocracia cafeeira e da ascensão da burguesia industrial, relacionando a época com as transformações da década de 1970 (a novela foi ao ar entre 1977 e 1978).

A preocupação de Maria Rita Kehl, nestas notas para o Folhetim, é a forma como a televisão busca dar significado à experiência social, tanto na esfera pública – ao pensar sobre o comportamento do cidadão no trânsito, sobre a opinião em torno das políticas públicas para a reintegração do menor infrator, sobre a questão ambiental, ou em torno da imagem pública da profissão do psicanalista – quanto no âmbito do fórum íntimo – ao refletir sobre a narrativa da novela em torno da trajetória da protagonista de Nina e da representação mais conservadora do casamento. Ao revelar essas construções simbólicas, seu intento é desnaturalizá-las, dando ao leitor instrumento para articular sua crítica. Aqui, a relação com a subjetividade do telespectador está apenas implícita, dando suporte à preocupação da autora em relação aos discursos da televisão. Em outros textos, é possível perceber como a autora compreende essa relação entre o discurso e a subjetividade de maneira mais direta.

O artigo que melhor explicita a ponte que Maria Rita Kehl faz entre a história política e econômica da televisão brasileira (objeto de sua dissertação de mestrado) e a relação entre construção simbólica midiática e elaboração da subjetividade do telespectador (objeto de seus estudos posteriores sobre televisão) é “As modas do colonizado”246, que faz parte da edição de número 233 do Folhetim, cuja matéria principal é intitulada “Multinacionais: a presença estrangeira na economia brasileira“. Em uma relação direta com a matéria de destaque, o

245 KEHL, Maria Rita. Mil e uma noites para as multidões. In: CARVALHO, Elisabeth; KEHL, Maria Rita; RIBEIRO, Santuza Naves. op. cit., p.66-67.

artigo de Maria Rita Kehl trata da incorporação de costumes e valores estrangeiros à cultura dos brasileiros, viabilizada especialmente pela televisão.

A autora afirma que, inicialmente, a imitação de valores e costume estrangeiros era uma forma da elite se diferenciar das camadas populares. Contudo, com o desenvolvimento da indústria cultural, iniciada na década de 1960, a adoção desses costumes e valores se democratizou, e agora ela pode ser observada em todas as camadas sociais. A autora centraliza esse desenvolvimento na consolidação da televisão como meio de comunicação de maior abrangência no Brasil e na crescente penetração das multinacionais no cenário econômico brasileiro que, em confluência com diversos outros fatores, seriam as bases de uma alienação cultural imposta à população brasileira:

...a chegada da televisão, aliada ao sufoco político, ao desenraizamento das populações rurais, à falta de perspectiva de participação da grande maioria da população nos mecanismos de tomada de decisão que afetam suas próprias vidas – tudo isso representa a substituição do fazer cultura pelo consumir cultura247.

A autora encerra o texto já com um argumento que terá grande repercussão em um de seus trabalhos posteriores a respeito da televisão: a ideia de que a televisão é parte de um sistema opressor que submete por meio do prazer (segundo ela, estratégia mais eficiente que o controle pela força). Kehl afirma que essa dominação é estruturada de maneira que a televisão atua como um duplo fetiche: “fetichismo no sentido freudiano da palavra – substituição de um autêntico objeto de satisfação por um objeto derivativo, secundário, perverso – e marxista – ocultação das verdadeiras relações entre homens e coisas”.

No artigo “Casamento (i) real”248, Kehl discorre a respeito de um assunto que muito diz respeito às comunicações de massa: a construção simbólica da fantasia sobre um evento real. Como psicóloga, Maria Rita Kehl explora como essa construção interage com o inconsciente do brasileiro que assiste ao casamento do Príncipe Charles e da Princesa Diana, experiência definida pela autora como um “monstruoso chá-das-cinco via Embratel”.

Dois pontos são importantes no que diz respeito à televisão na análise de Kehl: o