• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – BALIZAS DA CRÍTICA DO FOLHETIM

1.4 ESTUDOS ACADÊMICOS SOBRE TV

Sobre os estudos acadêmicos a respeito da televisão, Renato Ortiz, em seu livro A moderna tradição brasileira, explica que o fato do Brasil fazer parte dos países que tiveram a chamada “modernidade tardia” fez com que os estudos sobre a indústria cultural brasileira só fossem se desenvolver propriamente na década de 197065. Contudo, como o país se encontrava no contexto do regime autoritário, com os meios de comunicação sob forte censura, o autor afirma que essa situação desviou o olhar dos estudiosos deste tempo para a relação do estado autoritário com os meios, dando pouca importância para um fator constituidor da indústria cultural brasileira: a consolidação de uma cultura de mercado66.

Somente após a suspensão da censura militar as análises sobre televisão começaram a se voltar para o mercado de bens simbólicos e à cultura popular de massa. Anos mais tarde, Esther Hamburger diagnostica que, embora o mercado de bens simbólicos tenha passado a fazer parte dos estudos sobre televisão, a relação com o Estado e o foco na televisão como instrumento da dominação permanecem no centro do debate, em detrimento de análises sobre a especificidade da indústria televisiva brasileira no contexto mundial, que seria o foco das pesquisas internacionais sobre o assunto67.

Em outra análise, Alexandre Bergamo compara a produção acadêmica sobre televisão no período de sua emergência – década de 1970 e 1980 e durante a década de 200068. Segundo Bergamo, em suas primeiras décadas a pesquisa sobre televisão no Brasil se focou quase que exclusivamente na estrutura social e política que sustenta o meio, deixando de lado uma análise mais detalhada da linguagem televisiva e da programação.

Além da constatação destas informações, Bergamo faz uma perspicaz crítica quando observa que os estudiosos da televisão inicialmente compreendiam a produção do meio como um todo, uma vez que o consideravam plenamente determinado por suas condições de produção, o que acaba por produzir uma visão uniformizante e superficial do conteúdo televisivo e de seus processos de produção. Bergamo então defende a ideia, muito mais difundida hoje, de que a produção televisiva é formada por uma estrutura complexa, composta por diversos agentes que possuem os mais diversos objetivos e interesses e que tem a

65 ORTIZ, Renato. O silêncio. In: ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 13-37.

66 Ibidem, p. 15.

67 HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado: A sociedade da novela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 25.

capacidade de participar ativamente de uma disputa para fazer valer tais interesses dentro das dinâmicas da produção.

Outra crítica importante de Alexandre Bergamo diz respeito à maneira como estas análises compreendiam a relação entre meios de comunicação e público telespectador. O determinismo não se encontrava apenas na estrutura produtiva, mas também nas consequências da presença da televisão nos lares brasileiros. As análises tendiam a apontar para um desdobramento fatalista e uniforme, dando a todos os telespectadores um terrível destino de alienação em um futuro (ou até mesmo presente) de passividade sem saídas. O problema desta visão, afirma Bergamo, é que neste momento também existe uma compreensão superficial e uniforme da recepção, ignorando a agência e as especificidades culturais dos telespectadores.

Já na década de 2000, as pesquisas se voltam finalmente para a programação, em uma crítica que se volta para a análise de programas individualmente. Sobre este período, Alexandre Bergamo coloca que as análises passam a adotar a categoria do gênero, criticando cada programa conforme os critérios de legitimação estabelecido no próprio campo da televisão para cada gênero. Dessa forma, o que ocorre é a formação de uma crítica acadêmica heterônoma, ou seja, que julga a televisão dentro dos termos que o próprio meio definiu. O problema com esse tipo de estudo, segundo Bergamo, é a incapacidade de se distanciar do objeto que avalia, como se buscasse a legitimação dentro do campo do objeto e não no campo acadêmico. Essa abordagem pode gerar uma perspectiva rendida aos desígnios do campo televisivo que Bergamo chega a acusar como bajulatória da televisão69.

A academia trazida pelo Folhetim vem majoritariamente da Universidade de São Paulo, como a psicanalista Maria Rita Kehl, os sociólogos Gabriel Cohn e Muniz Sodré, o cientista político Gisálio Cerqueira Filho, os filósofos Vilém Flusser e Renato Janine Ribeiro. A prevalência da USP no Folhetim faz com que a parcela majoritária da crítica acadêmica do Caderno se baseie primariamente na Teoria Crítica, fundada nos estudos da Escola de Frankfurt, que entende a televisão como parte da Indústria Cultural e, portanto, determinada por suas condições de produção e orientada pelas diretrizes do mercado. Esta análise é feita em detrimento de uma observação do meio e suas linguagens ou mesmo de uma compreensão das disputas internas por legitimação e poder.

A análise da crítica do Folhetim reitera em parte os argumentos de Ortiz, Hamburger e Bergamo, uma vez que apresenta críticas predominantemente conjunturais em detrimento de análises particulares da programação. No entanto, uma leitura mais demorada permite ver tanto diversos casos de crítica da programação (que se assemelham à descrição de Bergamo dos estudos acadêmicos mais recentes, mas não são necessariamente “bajulatórios”), como casos de análises conjunturais que não colocam a televisão neste lugar plenamente definido pelo contexto. Um dos críticos que pode ser colocado como grande exemplo desta crítica mais atenta às particularidades do meio, e menos colada à estrutura social, é o semiólogo Arlindo Machado que, ao tratar do “efeito zapping”, está atento à grade da televisão e à noção posta por Raymond Williams de fluxo70 contínuo produzido pela sutura discursiva, em uma compreensão mais sintonizada com os debates internacionais em torno da televisão. Mas não somente Machado se coloca fora desta curva traçada pelos estudiosos das pesquisas sobre televisão no Brasil. Muitos textos e imagens do Folhetim reconhecem o entorno e, nesse sentido, conseguem se distanciar do objeto analisado, mas não deixam de reconhecer a agência do público ou dos profissionais que compõem o meio, nem de compreender o campo da televisão como um espaço de disputas.