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CAPÍTULO 1 – BALIZAS DA CRÍTICA DO FOLHETIM

1.5 A TELEVISÃO DO PERÍODO

No campo da comunicação, as décadas de 1960 e 1970 se caracterizam como o período da consolidação da indústria cultural no Brasil, marcado pela intervenção do Estado militar e parte integrante de um processo mais amplo de estruturação do que se chamou de “capitalismo tardio”, tendo como característica a formação de conglomerados, a mudança nas práticas administrativas e a internacionalização do capital71.

A conformação da indústria cultural brasileira se deu em diversos campos da cultura: no mercado editorial, na imprensa, no cinema nacional, no mercado fonográfico e no rádio. Mas foi a televisão a protagonista desse processo, e ao longo das décadas de 1960 e 1970 teve o crescimento mais expressivo, se estabelecendo como o meio de comunicação de massa de maior alcance no país72. Apenas este dado já justificaria o interesse do Folhetim pela

70 Sobre o conceito de fluxo de Raymond Williams, tratado com mais atenção no próximo item, ver: WILLIAMS, Raymond. Television: Technology and cultural form. London; New York: Fontana, 1974.

71 Sobre o processo de consolidação do um mercado de bens simbólicos no Brasil, ver: ORTIZ, Renato. Op. Cit., p. 113-148.

72 Sobre o desenvolvimento da indústria cultural nos diferentes campos da cultura, ver: ORTIZ, Renato. Op. Cit., p. 122-130.

televisão. Mesmo para críticos que anteriormente poderiam colocar a televisão como uma forma de expressão que não era digna de uma análise mais detalhada, publicar um suplemento sobre cultura deixando de lado o meio que protagoniza a difusão cultural no país seria deixa- lo, no mínimo, incompleto. Porém, outras especificidades do desenvolvimento da televisão ao longo das décadas de 1970 e 1980 enfatizam o interesse da crítica do Folhetim pelo tema.

A década de 1970 também foi o período de consolidação da Rede Globo como emissora hegemônica no Brasil. Na televisão, o modelo comercial se consolidava no país e todas as emissoras também entravam nesta lógica. Muitas mudanças podem ser citadas, por exemplo, a organização vertical e horizontal da grade, a adoção das narrativas seriadas como formato de maior sucesso – é neste momento que as telenovelas atingem o posto de maior audiência e prestígio na televisão brasileira –, a introdução do videoteipe e a possibilidade de gravar externas. Outro fator importante foi a determinação dos preços e pacotes de venda de inserções publicitárias por parte da Rede Globo, que marca uma virada no controle da programação que sai das mãos dos investidores e vai para a empresa que se orienta, a partir desse momento, pelos resultados das pesquisas do recém-criado departamento de marketing.

Essas inovações, tanto tecnológicas quanto dos formatos dos programas e da grade, foram implantadas no sentido de ampliar a possibilidade de gerir o que Raymond Williams vai chamar de fluxo da televisão73. O conceito de fluxo está fundado na ideia de que, para além do conteúdo individual e distinto de cada conteúdo, a característica estrutural do sistema de broadcasting é o advento da transmissão sequencial ininterrupta, que gera um fluxo contínuo de palavras e imagens, tecendo discursos mais amplos que transcendem a mensagem de cada programa ou cada peça publicitária, buscando a permanência do espectador diante da tela74. Embora este não seja um conceito muito explorado pela crítica do Folhetim, alguns autores, como Arlindo Machado, vão pensar nestes discursos já tecidos pelos fragmentos da televisão e nas implicações deste fluxo, deste movimento contínuo e também deste ritmo colocado pela televisão que constitui, ele mesmo, uma mensagem.

Neste período de profissionalização das práticas televisivas e expansão da televisão no Brasil, o Estado teve um papel central tanto na forma de incentivos à importação de equipamentos quanto no financiamento de infraestrutura para a ampliação do alcance da televisão no território nacional, com destaque para a fundação da Embratel e a construção de

73 WILLIAMS, Raymond. Television: Technology and cultural form. London; New York: Fontana, 1974. 74 WILLIAMS, Raymond. Op. Cit., p. 86-95.

antenas para aumentar o alcance das transmissões. A televisão era vista pelo Estado militar como um assunto de segurança nacional. Para lograr seus objetivos de tecer uma coesão nacional e um sentimento de país, a televisão se mostrou como o meio adequado para atingir tais objetivos75.

Todavia, as relações entre televisão e Estado não se resumem à pura convergência de interesses. Embora as empresas de televisão também estivessem interessadas em ampliar o alcance e vissem a possibilidade de executar essa coesão desejada pelos militares por meio da conformação de um mercado consumidor, havia uma discordância no sentido de qual o conteúdo a ser veiculado nesta nova televisão de alcance nacional. O maior conflito entre televisão e Estado ocorreu em torno dos programas considerados de interesse popular, em especial os programas de auditório76.

Em seu estudo sobre a consolidação da Rede Globo na década de 197077, Maria Rita Kehl afirma que a virada que produziu o chamado “padrão globo de qualidade” veio em decorrência de um plano de mercado traçado pela gestão da Rede Globo desde a sua fundação. A ideia seria se inserir no mercado e ganhar audiência a qualquer custo no final da década de 1965 (daí a transmissão de programas de auditório trazendo apresentadores já consagrados na época) para que, na década de 1970, já com uma audiência consolidada, a emissora se voltasse para um público mais elitizado, que busca um conteúdo diferente, um público que não se identifica com conteúdos considerados de interesse popular, pois suas intenções são justamente se diferenciar deste público.

Esta noção pode ser relativizada se comparada com a análise posterior feita por Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento em “A renovação estética da TV”78. Os autores relacionam a criação do “padrão Globo de qualidade” também aos planos moralistas do regime militar, que chegou a ameaçar as emissoras de televisão diante da apresentação de um conteúdo considerado imoral. De acordo com Ribeiro e Sacramento, a nova estética da Globo entraria em confluência com a imagem do Brasil modernizado e “civilizado” que os militares queriam instituir como parte da construção da imagem do milagre econômico. Dessa forma, a renovação estética da Rede Globo pode ser compreendida não apenas como uma demanda

75 ORTIZ, Renato. Op. Cit. p. 118.

76 RIBEIRO, Ana Paula Goulart Ribeiro; SACRAMENTO, Igor. A renovação estética da TV. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (Org.). Op. Cit., p.116.

77 KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: SIMÕES, Inimá F.; COSTA, Alcir Henrique da; KEHL, Maria Rita. Op. Cit.

78 RIBEIRO, Ana Paula Goulart Ribeiro; SACRAMENTO, Igor. A renovação estética da TV. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (Org.). Op. Cit., p.116-117.

interna, mas também como o fruto da pressão estatal e seus intentos “modernizadores” e “civilizadores”.

De qualquer forma, o fato é que a Rede Globo passou a contratar uma série de novos profissionais em busca desses elementos de distinção. Neste momento, os detentores da considerada estética de qualidade no Brasil eram os artistas de esquerda, em especial vindos do cinema e do teatro79. É nesse momento que são contratados profissionais como Alfredo Dias Gomes, Eduardo Coutinho, Gianfrancesco Guarnieri, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Júnior e muitos outros. Em seu livro, Igor Sacramento aborda sobre a questão da vinda destes profissionais para a televisão, especificamente para a produção do programa Globo Repórter, da Rede Globo80.

A ideia de Sacramento é de que o trabalho destes profissionais feito em uma empresa regida pela lógica de mercado não determina completamente esta obra como um produto comercial. Embora existam as limitações impostas pelo contexto, a compreensão da indústria cultural como um espaço de constante disputa mostra que estes profissionais são capazes de negociar com seus patrões e transmitir suas mensagens, apesar da conjuntura. Este conflito é expresso largamente na crítica do Folhetim, como apresentado adiante.

Muitos profissionais defenderam seu ingresso na indústria cultural alegando que esta seria a forma mais eficaz de entrar, de fato, em contato com seu público pretendido, que é o público conquistado pela televisão. O período da década de 1970 foi fortemente marcado pela censura sobre as obras destes profissionais, e neste momento o Estado era também outro ator nessas negociações. Posteriormente, as emissoras passam a internalizar a censura, e cortam materiais antes mesmo destes serem vetados pelos censores – ação chamada de censura interna. Outra forma de limitação das obras ocorre devido aos interesses de mercado. Estas formas de censura a as possibilidades de agência dos profissionais dentro do aparato da indústria cultural também serão tema de discussão na crítica do Folhetim.

Já na década de 1980, diante da gradual suspensão dos mecanismos de censura, a televisão volta a abrir espaço para programas moralmente condenados pelo regime militar81. Essa abertura marca a volta dos programas de apelo popular à televisão, o que gerou muitas

79 SACRAMENTO, Igor. Depois da revolução, a televisão: cineastas de esquerda no jornalismo televisivo dos anos 1970. São Carlos: Pedro. & João Editores, 2011. p. 41

80 SACRAMENTO, Igor. Op. Cit.

81 Sobre a volta à televisão dos programas jornalísticos rechaçados pela ditadura no período da redemocratização e a relação destes com as tradições culturais populares ver ROXO, Marco. A volta do "jornalismo cão" na TV. In: GOULART, Ana Paula; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco. Op. Cit., p. 177-196.

críticas, inclusive dentro do Folhetim, no qual muitos autores passam a se valer das noções de “qualidade” legitimadas em seus próprios campos para julgar os programas da televisão.

Dentro da discussão sobre a legitimidade e a noção de “alta e baixa qualidade” de determinada expressão cultural, Maria Celeste Mira aplica a teoria de Pierre Bourdieu para tratar deste julgamento negativo dos programas de auditório82 – mais especificamente dos programas de Silvio Santos, na década de 1980:

Com o passar do tempo, as concepções sobre arte e cultura se transformam, a legitimidade cultural, ou seja, o poder de definir o que é certo ou errado em termos de arte e cultura, se desloca, vai parar em outras mãos. Portanto, para compreender o que é “popular”, “popularesco” ou, como veremos à frente, “brega”, é fundamental descobrir quem tem o poder de nomear e quando o fez83.

Dessa forma, os mesmos critérios que delegavam o prestígio à produção cultural de esquerda desqualificavam o valor cultural dos programas de auditório no mesmo período, produzidos pela mesma elite cultural.

Assim como na imprensa, também a televisão passou por uma mudança de estilo diretamente ligada à juventude e à cultura de consumo na década de 198084. Em busca de tecer uma imagem de um país ligado ao mercado globalizado e à cultura da juventude, muitos programas na televisão se valeram de uma linguagem mais veloz e fragmentada (inspirada nos videoclipes), com forte apelo ao humor, onde o culto à juventude era o mote por trás da narrativa e a sociedade de mercado não era necessariamente defendida, mas vista como um fato. Esse clima era também atrelado a uma sensação de incerteza sobre o futuro e uma rejeição à ideia de ideologia (mote da juventude da década de 1970). Essa emergência da juventude como tema não foi privilégio somente da imprensa e da televisão. A década de 1980 foi marcada pela cultura (e contracultura) da juventude também no cinema e na música85.

82 A primeira análise de Mira sobre os programas de auditório e o SBT pode ser encontrada em: MIRA, Maria Celeste. Circo Eletrônico: Silvio Santos e o SBT. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

83 MIRA, Maria Celeste. O moderno e o popular da TV de Silvio Santos. In: GOULART, Ana Paula; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (Org.). Op. Cit., p. 166.

84 Quem traz essa perspectiva sobre a televisão na década de 1980 é Marina Caminha ao tratar do seriado da Rede Globo, Armação Ilimitada. CAMINHA, Marina. A teledramaturgia juvenil brasileira. In: GOULART, Ana Paula; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (Org.). Op. Cit., p.197-215

85 Para a cultura da juventude no cinema e na música brasileira, ver artigos de Diego de Morais Salim e de Aline do Carmo Rochedo na coletânea sobre a década de 1980 organizada por Samantha Viz Quadrat. QUADRAT, Samantha Viz. Não foi tempo perdido: os anos 80 em debate. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.