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Dentre os processos e as ações de construção da cidade com os quais tive contato ao longo do meu percurso enquanto técnico e também no decorrer desta pesquisa, seja diretamente ou através da literatura, existem algumas experiências que eu gostaria de destacar como referências que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a composição das idéias deste trabalho. Isso não significa que tenham uma relação direta com o trabalho em si, com a prática social estudada, ou com o que venho refletindo até aqui: simplesmente me ajudam a pensar sobre possibilidades diversas de processos educativos relacionados à produção dos espaços, alargando minha visão sobre o tema da pesquisa. Por esse motivo considerei relevante apresentá-las neste momento do

trabalho.

Para tanto, ressalto a ação de alguns grupos que trabalharam ou vêm desenvolvendo seu trabalho no campo da arquitetura e do urbanismo, e que tinham ou têm como premissa a transformação das condições de opressão no canteiro de obras (e consequentemente no processo de construção das cidades), desde o nível da organização do trabalho, até as relações entre técnicos e moradores, entre os próprios moradores e destes com o espaço em que irão morar.

Dentre as experiências que pretenderam superar estes níveis de opressão, me vale citar as experiências, no Brasil, do grupo paulista “Arquitetura Nova” 44 e das assessorias técnicas a movimentos de moradia

da cidade de São Paulo (SP)45. Em ambos os casos, considero possível

identificar uma questão central na tentativa de transformação das condições de opressão, tanto dos trabalhadores do canteiro, quanto dos moradores dos espaços produzidos: a identificação e valorização dos processos educativos intrínsecos à prática social de produção dos espaços.

O grupo “Arquitetura Nova” desenvolveu suas experiências na construção de habitações de classe média, procurando, no seu trabalho, redesenhar a estrutura do canteiro de obras, na tentativa de romper com a alienação do trabalho dentro do próprio canteiro e de revalorizar o trabalhador e o seu papel criativo na execução da obra. O grupo partiu do

44 “Arquitetura Nova” é como se denominou (após seu período de existência) um grupo composto por três

arquitetos/pintores/cenógrafos/”fazedores”, que atuaram no início da década de 1960, vindos de uma formação na principal escola de Arquitetura da época, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que ostentava uma forte tradição moderna. Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, imbuídos de um pensamento revolucionário, propunham uma forte ruptura com o sistema de produção vigente na construção civil e no pensamento arquitetônico. Com o golpe militar de 1964, o grupo é separado: Sérgio e Rodrigo participam da luta armada e são presos, Flávio refugia-se no seu estúdio e passa a se dedicar mais intensamente à pintura. Para mais informações sobre o grupo e suas idéias vejam-se, entre outros, os trabalhos de Arantes (2002), Koury (2001) e Ferro (2006).

45 As assessorias técnicas aqui citadas são um conjunto de grupos, formados essencialmente por técnicos, que a

partir do final da década de 1980, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina de Souza (1989 – 1992) na cidade de São Paulo, passaram a dar assessoria a movimentos sociais urbanos, mais especificamente movimentos de moradia, na resolução de suas demandas coletivas, desde a ocupação de prédios e terrenos vazios até a construção, por mutirão, de habitações. Para saber mais vejam-se, dentre outros: Arantes (2002), Pulhez (2007), Lopes; Rizek (2005).

reconhecimento de que o trabalho no canteiro se configuraria como uma manufatura, em que as equipes realizam partes diferentes da obra e, então, pensou a racionalização desta manufatura como uma possibilidade de proporcionar maior autonomia para cada equipe envolvida. Com isso, desenvolveu práticas projetuais menos prescritivas, nas quais muitas decisões eram tomadas em conjunto pelas equipes de trabalhadores, estimulando processos educativos muito ricos dentro do próprio canteiro e procurando desconstruir as relações hierarquizadas46.

Segundo Sérgio Ferro, um dos integrantes do grupo:

“(o) procedimento (...) era simples. Nenhuma preocupação com o 'progresso das forças produtivas', a idéia fixa da época. Ao contrário: utilização do material disponível com toda a modesta racionalidade técnica – o que justificava usos pouco habituais, como o de vigas e blocos cerâmicos, previstos para lajes planas em abóbodas de catenárias perfeitas. Estrita observação das seqüências produtivas cuja autonomia, assim adquirida, permitia a otimização das performances com bons materiais. Mas principalmente escuta, diálogo e abertura à participação dos operários nesse mesmo objetivo. De modo geral uma manufatura mais racional e humana – sem os entraves à lógica que a dominação exige.”47 (FERRO, 2006, p. 325)

O grupo reconheceu o potencial da obra, mais especificamente do trabalho manual do construtor, como um processo educativo que deveria ser mais valorizado dentro do canteiro: em sua atuação, começou a identificar os momentos em que o trabalhador poderia exercer com liberdade seu ato construtivo, proporcionando, então, um canteiro de obras mais criativo, e menos reprodutor de uma ordem estabelecida por um projeto técnico. Pedro Fiori Arantes (2002), comentando a dissertação de mestrado de Rodrigo Lefèvre, escreve:

46 Essa identificação das possibilidades de ensino e aprendizagem dentro de um canteiro de obras fica explícita

na dissertação de Rodrigo Lefèvre (1981), denominada: “Projeto de um acampamento de obra: uma Utopia”, na qual o autor idealiza um canteiro-escola.

“(...) é a proposta de um “canteiro-escola”: a produção de habitações populares pensada como forma de conscientização dos construtores (...), a democratização do conhecimento e a transformação das relações de produção. (...) transformar o canteiro em um momento de aprendizado, pesquisa e criação que envolva todos os produtores (...)” (ARANTES, 2002, p. 132)

Considero que, a partir desta perspectiva, abre-se uma possibilidade na qual se torna viável imaginar a transformação do canteiro de obras de um lugar da opressão dos trabalhadores e envolvidos na construção em um lugar de aprendizado e conscientização dos mesmos, considerando, como nos apresenta Ernani Maria Fiori (1986), a implicação mútua entre os processos educativos e a conscientização.

Quanto às experiências das assessorias técnicas que atuam junto aos movimentos de moradia em São Paulo, identifico o desenvolvimento de uma metodologia de trabalho compatível à construção de habitações através de mutirões autogestionários, nos quais os trabalhadores são os próprios moradores. Nessas experiências, percebo o maior avanço no sentido da participação da população na discussão e elaboração da concepção projetual das moradias e dos espaços coletivos dos conjuntos habitacionais: aqui também se percebe um rico processo educativo, que estimula a organização comunitária e o desenvolvimento de uma perspectiva de autonomia daquele coletivo envolvido no mutirão, favorecendo uma outra relação de apropriação dos espaços construídos.

Vale ressaltar, ainda, que os mutirantes-moradores, em sua maioria, vinham de um acúmulo organizativo junto aos movimentos de moradia, o que, muitas vezes, possibilitou algum avanço na implementação dos mutirões. A questão da autogestão, que já figurava como bandeira dos movimentos de moradia e como estratégia de produção destas moradias, encontrou então alguma oportunidade de efetivação, configurando os chamados mutirões autogestionários, em que o controle da construção do empreendimento habitacional era exercido

pelas associações de moradores, responsáveis por assinar o contrato, receber e gerenciar os recursos, contratar uma assessoria técnica e realizar a obra.

Essas participações junto ao movimento, à articulação da associação de moradores, às assembléias, às negociações diretas com setores da Prefeitura, à contratação da assessoria técnica, ao gerenciamento dos recursos e à realização da obra, poderiam significar, para os mutirantes envolvidos, muitas possibilidades de aprendizado. Para além das definições do projeto arquitetônico, que ocorriam em reuniões com os moradores, identifico que a configuração geral destes mutirões autogestionários apresentam um grande potencial, no sentido de valorizar os processos educativos inerentes às práticas sociais que compõem a construção das cidades.

Considero que tanto as experiências dos canteiros de obras do Grupo Arquitetura Nova, quanto a metodologia de discussão dos projetos desenvolvida pelas assessorias técnicas, bem como a relação entre elas e as associações de moradores em São Paulo, apresentam, dentro das limitações em que estão inseridas, alguns avanços importantes nas relações entre as pessoas que participam de um canteiro de obras.

Como já mencionei, estas experiências são citadas aqui como referencial de possíveis maneiras de se lidar com as transformações urbanas. Obviamente, estão limitadas a alguns aspectos destas transformações e poderiam ser interpretadas como não adequadas para me referenciar: entretanto, em meio ao material estudado sobre a prática social em foco, são as experiências que mais avançaram em um sentido que se aproxima à discussão que procurei fazer ao longo da pesquisa. É nesse sentido que, embora não se enquadrem totalmente, considero fundamental mantê-las como pano de fundo do que penso e discuto neste trabalho.