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Nesses processos de transformação urbana, interagem pessoas com diversas visões de mundo que, de forma às vezes mais, às vezes menos conflituosas, acabam se modificando mutuamente. Entre os envolvidos diretamente nas intervenções, podemos destacar: os moradores da área, os técnicos do poder público, os trabalhadores da construção civil e os técnicos que assessoram as transformações.

Para este estudo, a interação entre tais grupos de pessoas com diversas visões de mundo é uma característica importante das transformações, porque contêm uma grande diversidade de processos educativos, o que poderia contribuir para educar os envolvidos. Essa diversidade acaba também contribuindo para a complexidade da prática social em questão, podendo implicar, também, em preconceitos e predisposições entre os diferentes agentes envolvidos. Assumindo seu caráter complexo, dinâmico e contraditório, convivem na prática social estudada tanto a estrutura do canteiro de obras, quanto as idéias e o aparato técnico dos projetistas do poder público e da assessoria técnica, e ainda as relações sociais cotidianas dos moradores.

As transformações que descrevo e analiso neste trabalho se viabilizam a partir do canteiro de obras, caminho indispensável para a efetivação da intervenção urbana. As especificidades do canteiro materializam e caracterizam o setor produtivo da construção civil, o qual, de acordo com Rosa Elisa Barone (1999) está entre os setores produtivos mais atrasados da economia brasileira no que diz respeito à implementação tecnológica e especialização da mão de obra:

“(...) a identifição da construção civil com a noção de “atraso”, com a imagem de um setor refratário a quaisquer tipos de mudanças.(...) Baixa utilização de maquinário, uso intensivo de mão-de-obra pouco ou não qualificada e precariamente escolarizada, execução parcelar do trabalho, marcada pela exigência de força física e habilidades manuais, utilização de métodos construtivos tradicionais(...)” (BARONE, 1999, p. 87)

Segundo Sérgio Ferro (2006), essa “noção de atraso” do setor produtivo da construção nada tem a ver com as características da produção construtiva em si. O autor nos mostra que, historicamente, a forma de produção da construção vem sendo a manufatura, e que a noção de “atraso” que lhe é atribuída, na realidade é uma prerrogativa do setor, que tem como função possibilitar que a atividade se torne ainda mais lucrativa para seus empreendedores.

“A forma manufatureira dá a linha condutora da continuidade. Entretanto, o papel desta constante desloca-se com o tempo, muda de motivação. Primeira adaptação da produção pelo capitalismo (efetuada simultaneamente nos setores textil e da construção), ela serve, primeiro, para a acumulação primitiva: a taxa de mais-valia é aí muito alta. Superada depois pela submissão real do trabalho na indústria, ela serve também (e pode ser mais ainda, segundo as situações) como forma de resistência à queda tendencial da taxa de lucro que a evolução contraditória provoca.

A manufatura da construção é, desse modo, fortemente sobredeterminada pelo conjunto da economia política. Nenhuma 'natureza', nenhuma especificidade do ato de construir impõe tal forma. Ao contrário, ela decorre de sua relação com o exterior – primeiro como oposição 'progressista' ao mundo das corporações, depois como compensação às contradições do avanço do capital. É justamente por isso que ela se torna a 'qualidade' específica, a diferença específica, a marca distintiva da fabricação do construído. Como em toda a parte, a 'qualidade' só é diferença em relação ao outro, à sua 'negação'. Mas, pouco a pouco, pela reflexão em si, o que vem do exterior se reúne como em si, se fixa como essência do construir, sua substância.” (FERRO, 2006, p.

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Ainda segundo o autor, o setor da construção se estruturou historicamente, pelo menos desde os primórdios do capitalismo, para efetivamente se configurar como uma atividade lucrativa. Em função disso, as características de seu funcionamento, como o trabalho parcelado, a grande absorção de mão-de-obra não especializada, assim como a baixa mecanização na produção, que a princípio são identificadas como características do seu “atraso”, na realidade o constituem e viabilizam.

Essa noção de um setor atrasado, principalmente no canteiro de obras, contribui para a importância e a relevância que é dada aos técnicos da construção, engenheiros e arquitetos, que em muitos casos se inserem nesta realidade como os “donos do saber”: responsáveis pela assessoria às transformações urbanas, possuem como instrumental de trabalho um razoável aparato tecnológico, como o acesso a fotos aéreas, a fotos de satélite, ao uso de softwares de desenho, de simulação e processamento de informações.

formação universitária muitas vezes bastante afastada da realidade social do país, em função, inclusive, da elitização desta área de atuação43.

Fazem parte de uma classe social diferente dos trabalhadores e dos moradores das áreas em transformação e essas diferenças sócio- econômicas e de formação escolar os incute uma visão de mundo, a qual, muitas vezes, é bastante diversa da visão dos moradores das áreas em transformação.

Em síntese, o que procurei demonstrar, no sentido de caracterizar a Prática Social estudada, é que nela convivem: as características do canteiro de obras, as idéias e o aparato dos técnicos – do poder público e das assessorias - e as relações sociais cotidianas dos moradores, de forma às vezes mais, às vezes menos conflituosa. Com isso, finalizo aqui a aproximação e o levantamento das características gerais que abrangem a prática social estudada, sem me referir, ainda, a um caso específico, o que será realizado em outro momento deste trabalho: com esse esforço de caracterização, realizado aqui, pretendi ampliar o olhar sobre a problemática geral da pesquisa.