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Os processos educativos e os indícios de autonomia

Após analisar os processos educativos dentro das categorias que ajudaram a explicitá-los, a continuidade deste trabalho vai no sentido de matizá-los, verificando se os seus apontamentos indicam perspectivas de autonomia dos moradores envolvidos. Para tal esforço, lanço mão da análise anterior dos processos educativos em si, em diálogo com o referencial teórico sobre Autonomia e Condução da própria vida90,

apresentado anteriormente.

Considerando, em acordo com a discussão teórica anterior, que a autonomia humana não é simplesmente a possibilidade de definição do mundo - porque “O mundo está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 608) -, e que

tampouco o ser humano se configura como uma simples condição do mundo - o que significa que “nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 608) -, entendo que o que me cabe nesta etapa da análise é

procurar indícios de autonomia nos processos educativos identificados, o que não representa a existência de autonomia em si, mas, sim, alguns indicativos, algumas possibilidades claramente limitadas.

Coloco-me, então, a procurar esses indícios, que seriam as aprendizagens, e as condições em que os processos educativos que levaram a elas se desenvolveram. Na minha análise, a presença dos indícios possibilita a identificação de uma perspectiva que, embora aponte um processo de contrução da autonomia, não consegue efetivá-la como um todo. Conforme discutido anteriormente, em acordo com Enrique Dussel (s/d, p. 104), quando diz: “El hombre es libre porque teniendo un proyecto futuro ninguna posibilidad lo cumple del todo.”.

Entendo que as pessoas, em suas participações nos processos educativos, podem aprender e agir de forma a conduzir-se à esferas de

autonomia91, de forma a ampliar a autodeterminação de suas vidas, mas,

de qualquer modo, e enquanto seres inacabados, a autonomia mais ampla será sempre uma busca, uma incompletude, como nos lembra Paulo Freire (1987).

Em acordo com o que apresentei no Capítulo 1 deste trabalho, quando analiso o conceito de “aprender a conduzir a própria vida” desenvolvido por Silva (2003), apresento a compreensão de que as pessoas, em suas interações cotidianas com o mundo e com outras pessoas, podem alcançar diferentes esferas de condução de sua própria vida.

Seguindo a análise, baseado nas discussões de Paulo Freire (1987) sobre humanização, considero que os processos educativos identificados na categoria Transitoriedade, pelo próprio condicionamento decorrente da situação de pobreza que os caracteriza, na sua maioria, apontam para uma perspectiva inversa à autonomia, que seria a “coisificação”92. Me refiro aos processos educativos em que os

moradores-migrantes aprendem a se desumanizar, construindo uma vida sem vínculos com outras pessoas e com o mundo, mas sobretudo condicionada por ele. Sem possibilidade de projetar um amanhã diferente, sem opção de escolha, são reduzidos quase que exclusivamente à mera condição do mundo.

A coisificação, em acordo com o que foi discutido no Capítulo 1 deste trabalho, significa o resultado das relações desumanizantes existentes na sociedade em que vivemos, nas quais os homens e mulheres são tratados como se fossem “coisas” e com isso ficam impossibilitados de se autodeterminar, deixando de ser seres para si. Conforme mostra Paulo Freire (1987, p. 47) neste trecho: “Os oprimidos, como objetos, como quase 'coisas', não têm finalidades. As suas, são as finalidades que lhes prescrevem os opressores.”

Quanto aos processos educativos identificados na categoria

91 Idem.

Fracionamento, considero que estes mesmos processos podem apontar para as duas perspectivas, tanto a da coisificação, quanto a da autonomia. Em relação à primeira perspectiva apontada, verifica-se que na vivência do fracionamento, os moradores aprendem a ser mais competitivos, a se preocupar apenas com sua situação e a deixar de lado as condições dos outros moradores, fortalecendo posturas individualistas, que configuram relações em que as pessoas não convivem, e sim competem entre si, tornando-se “coisas” a serem comparadas e consumidas. Milton Santos (1998) discute a competitividade e o individualismo como frutos do sistema capitalista em que estamos inseridos, no qual os homens e mulheres muitas vezes são considerados coisas a serem permutadas.

Já em relação à segunda perpectiva apontada, os dados demonstraram que, na sua vivência fracionada, os moradores podem perceber o problema do próprio fracionamento e, a partir de sua negação, encontrar na união uma possibilidade de mudança, o que potencialmente apontaria para uma perspectiva de autonomia. Considero que neste caso trata-se apenas de um potencial, em função desta assunção da união pelos moradores se configurar apenas como reflexão, até onde os dados permitem compreender, descolada da ação. Segundo Paulo Freire (1987) só a práxis liberta os seres humanos, através da relação imbricada entre reflexão e ação, que não é ativismo e nem intelectualismo, é ação e reflexão engajadas e intencionadas a transformar o mundo.

No caso da categoria Reorganização das relações, considero que os processos educativos que identifiquei e que dividi em três grupos, apontam cada qual para uma das duas perspectivas citadas anteriormente. O primeiro grupo de processos educativos relaciona-se à participação dos moradores no processo de mutirão: em tais processos eles aprendem a importância da ajuda-mútua e da união dos mutirantes, e podem, possivelmente, acarretar uma maior compreensão coletiva do processo em que estão inseridos. Nesse caso, os processos educativos

identificados podem proporcionar uma maior aproximação entre a reflexão e a ação dos mutirantes organizados, localizando o mutirante como sujeito de suas ações no canteiro: em função disso, considero que eles apontam para a perspectiva da autonomia. Como dito anteriormente, Freire (1987) quando discute a práxis ressalta a importância da relação entre reflexão e ação, ação e reflexão para a inserção das pessoas enquanto sujeitos no mundo.

Ainda em sua participação no mutirão, no segundo grupo de processos educativos identificados os moradores aprendem também o respeito à hierarquia do trabalho na obra, que institui uma divisão entre a realização das ações e a reflexão sobre elas, cabendo aos mutirantes apenas a execução das tarefas, as quais foram pensadas e definidas por outras pessoas, no caso, os técnicos responsáveis pelo canteiro e pelo projeto a ser construído. Essa divisão, da maneira como está posta no campo desta pesquisa, bem como para o referencial teórico adotado, faz do mutirante um executor de ordens e, assim, destitui a reflexão da sua ação, o que dificulta que se insira como sujeito dentro do processo e, por isso considero que aponta para a perspectiva da coisificação.

O terceiro grupo de processos educativos identificados, nos quais os moradores aprendem que existe uma relação desigual entre eles e a PROHAB, proporcionam a compreensão das relações em que estão envolvidos e o funcionamento mais amplo da sociedade, na qual são desrespeitados e desvalorizados. Considero que estes processos também apontam para a autonomia, porque caminham para um desvelamento do mundo (FREIRE, 1987), através do qual os envolvidos se apercebem da realidade em que estão inseridos e dos sistemas que não lhes permitiam percebê-la, o que pode configurar uma consciência do mundo (FIORI, 1986), no sentido da compreensão e da assunção de sua condição, qualificando sua inserção enquanto sujeito dentro do processo em curso.

Os processos educativos que identifiquei na categoria Construção de Vínculos demonstram que os moradores, condicionados pela sua pobreza, em sua vivência com os demais moradores e com o

local em que moram, aprenderam a conviver melhor entre si, a tolerar as diferenças, a dar mais valor aos outros, a se sensibilizar pelas dificuldades alheias e a valorizar a força das amizades. Considero que os processos educativos identificados nesta categoria se aproximam bastante do conceito desenvolvido por Silva (2003) de “aprender a conduzir a própria vida”, já apresentado anteriormente.

Na interação em que aprenderam todas estas coisas, os moradores construíram suas próprias relações de respeito, e suas regras de convivência. Definiram, com isso, os limites das ações individuais e as possibilidades de interação entre elas e, dessa forma, se constituíram enquanto sujeitos que ocuparam conjuntamente aquela área: em função disso, considero que os processos educativos de que participaram nesta categoria apontam para a perspectiva da autonomia.

Estas perspectivas de autonomia e coisificação que identifiquei nos processos educativos, são apontadas aqui como resultado da análise da existência de alguns indícios nas aprendizagens e nos processos em si. Portanto, quando identifico que um dado processo educativo aponta para a perspectiva da autonomia ou da coisificação, não estou afirmando que este processo efetiva a autonomia ou a coisificação, mesmo porque considero, que nenhuma destas perspectivas possam se efetivar por completo, segundo Merleau-Ponty (1996, p. 608): “nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua”. Entendo que as perspectivas citadas aqui apenas apontam possibilidades e potencialidades, que podem ou não ser exploradas, e que não se colocam como situações fechadas ou como seqüências lógicas de causa e efeito.

Por fim, compreendo que a perspectiva da autonomia está presente em todas as ações humanas enquanto um horizonte, uma possibilidade que pode ser potencializada na efetivação de uma prática libertadora ou, ainda, na negação de um processo de coisificação. Em relação aos processos educativos, entendo que funcionam neste mesmo sentido, já que eles só existem quando existem pessoas em interação. O

que procurei demonstrar é que a identificação da perspectiva não tem relação direta com sua efetivação, que dependeria de muitas outras circunstâncias, e que, mesmo no quadro mais favorável que eu possa imaginar, ainda assim, a autonomia em si não se efetivaria completamente, já que ela é uma busca permanente.