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As práticas sociais são aqui compreendidas como as relações interpessoais, entre indivíduos e grupos, entre grupos e a sociedade, podendo abarcar muitas ou poucas pessoas, envolvendo relacionamentos amorosos, políticos, culturais, profissionais, comunitários, afetivos, entre muitos outros possíveis.

“São práticas sociais que são [sic] ações e relações que as pessoas e os grupos mantém entre si para passar as normas de vida, de manutenção ou transformação da sociedade. Normas para garantir a sobrevivência. A tradição dos grupos é passada em práticas sociais, a manutenção da saúde é passada em práticas sociais.” (SILVA, 2004, p. 1)

determinada intencionalidade e proporcionam o estabelecimento de relações entre elas, podem ser consideradas práticas sociais. Estas práticas adquirem determinadas características de acordo com o local em que estão inseridas, o tempo histórico em que se desenvolvem, as pessoas envolvidas, suas visões de mundo e os objetivos com que participam da prática social, podendo ser bastante distintas de acordo com a diferenciação destes fatores, como vemos no trecho que segue:

“(...) práticas sociais se estendem em espaço/tempo construído por aqueles que delas participam seja compulsoriamente, seja por escolha política ou de outra natureza, seja por adesão. Sua duração – permanência, desaparecimento, transformação depende dos atores que as constroem, desenvolvem, mantêm, do momento histórico, dos objetivos que com elas se quer atingir” (SILVA et al, 2005, p. 1)

Seguindo esse raciocínio, se pessoas e grupos em relações interpessoais constituem práticas sociais, é possível afirmar que o conjunto das práticas sociais é que define as características de determinada sociedade, já que a estrutura social está ligada às maneiras como as pessoas e os grupos se relacionam e, portanto, as transformações destas práticas modificam conseqüentemente as características da sociedade.

Ainda nesta linha, as sociedades podem ser caracterizadas, então, de acordo com um determinado equilíbrio na coexistência entre as práticas sociais que as compõem. Este equilíbrio, entretanto, não é estático, mas bastante dinâmico, estruturando-se a partir de constantes rearranjos entre as diversas práticas sociais.

Embora essa perspectiva aponte para uma razoável mobilidade, na maioria das vezes as práticas sociais que procuram a transformação geral da sociedade em que estão inseridas acabam se deparando com muitos obstáculos internos e externos à elas, que de muitas maneiras vão impedindo, dificultando a sua efetivação. Essa

tendência de resistência à transformação, presente no conjunto mais amplo das práticas sociais, é que define as principais características de uma sociedade, já que, por negação, o que é mais difícil de modificar é aquilo que está mais estável, mais consolidado, e que, portanto, se conforma como fator estrutural.

Essa tendência tem correlação, também, com os processos evolutivos da sociedade, já que, em determinados momentos históricos, uma determinada prática social pode encontrar mais resistência à sua efetivação do que em outros. Neste mesmo sentido, poderíamos pensar que a combinação complexa entre as práticas sociais é que se modificou, de forma a não mais resistir, ou a criar melhores condições para o desenvolvimento daquela determinada prática social, que antes não encontrava condições para seu pleno desenvolvimento.

Entre muitos outros, podemos destacar um exemplo de uma prática social que, num determinado momento histórico, encontrou muita resistência para sua efetivação, e em outro momento não: é o caso da prática social de formação e organização de grupos de moradores de regiões específicas da cidade, com o interesse de atuar sobre a realidade local em que estão inseridos.20

Nas décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura militar, período em que muitos direitos civis foram tolhidos pelo estado, essas organizações eram proibidas e perseguidas, na esteira da repressão a todo tipo de organização popular. Dessa forma, a prática social de organização de grupos de moradores encontrou bastante resistência à sua efetivação, sobretudo nos grandes centros urbanos.

Esse quadro de resistência, presente nas décadas de 1960 e 1970, é muito diferente do encontrado na década de 1990, depois da chamada redemocratização, processo em que o estado brasileiro deixou de ser controlado pelos militares e voltou a ser estruturado por um governo civil, baseado no equilíbrio entre os três poderes, o Executivo, o

Legislativo e o Judiciário. Em 1990, a ação de grupos de moradores organizados nas cidades já era algo corrente, configurando, em alguns casos, movimentos estaduais e nacionais em torno de questões urbanas. Tanto é que tais movimentos passaram a ser reconhecidos pelas políticas públicas urbanas e, em alguns programas públicos de intervenção na cidade, encontraram inclusive estímulos para a sua existência21.

Atualmente, nos anos 2000, a existência de grupos de moradores organizados é considerada inclusive requisito programático e condição para o repasse e aplicação de recursos em algumas políticas públicas urbanas22.

Outro aspecto fundamental da inter-relação complexa entre as práticas sociais e da tendência de resistência à transformação da sociedade está diretamente relacionado àquela direção do olhar descrita anteriormente na Apresentação deste trabalho, já que o quadro geral que encontramos nesta inter-relação não é o que podemos considerar como mais “humanizado”, sendo talvez até o contrário disto. Segundo Paulo Freire (1987; 1992), as relações entre os homens e mulheres acontecem mediatizadas pelo mundo - e isso inclui toda a materialidade que lhe cabe -, o que influi diretamente nas relações, desequilibrando-as, acomodando- as, favorecendo-as. Muitas vezes, essa mediatização acaba servindo como meio de resistência às práticas sociais transformadoras que pretendem, por exemplo, modificar as condições de acesso à materialidade do mundo.

Esse aspecto, do tensionamento existente entre as práticas sociais que compõem a mesma sociedade, fica explícito na pergunta da professora Petronilha Gonçalves e Silva:

“(...) de que forma, nas práticas sociais mais variadas, as pessoas ajudam a construir a sociedade que aí está ou resistir a essa

21 Exemplos desse estímulo podem ser encontrados nas experiências de mutirão para construção de habitações

populares nos primeiros anos da década de 1990 na cidade de São Paulo, nas quais as associações de mutirantes eram consideradas, pelo poder público, como agentes participantes da implementação da política pública, inclusive recebendo repasse de recursos públicos para organizar e realizar a obra do mutirão.

22 Para uma leitura crítica sobre os processos que levaram à organização dos moradores ser considerada pré-

mesma sociedade ou propor outros encaminhamentos para essa sociedade, para essas relações sociais?” (SILVA, 2004, p. 2)

A questão levantada pela autora explicita o caráter contraditório inerente às práticas sociais, já que pessoas participantes de práticas sociais distintas não buscam, necessariamente, os mesmos objetivos, sejam eles focados em questões mais amplas da sociedade ou ligados a questões mais corriqueiras do dia-a-dia. E mais, em uma única prática social encontramos pessoas com diferentes visões de mundo, o que significa que uma mesma prática pode comportar muitas possibilidades, por vezes contraditórias, que corroboram para a sua própria caracterização.

Nesse sentido, as práticas sociais, como partes constituintes da sociedade, contêm as contradições que a compõem. Dessa forma, não se diferenciam da sociedade, mas fazem parte dela: trazem consigo as características da sociedade de que fazem parte e que, ao mesmo tempo, ajudam a caracterizar.