• Nenhum resultado encontrado

Esta, sem dúvida, é a parte deste texto mais difícil de começar, isso porque, na realidade, ela tem a função de fechar o trabalho. Este começo traz consigo essa ambiguidade: é ao mesmo tempo início e fim. Ele me traz a dúvida sobre como terminar o que não acaba e como finalizar o que não começou aqui.

Refletindo sobre este trabalho, no esforço de finalizá-lo, me vem à memória alguns momentos da pesquisa. Imagens que vêm e vão em minha mente: os detalhes observados; as pessoas; os sorrisos; as casas; as crianças brincando; a solução perspicaz da calha com garrafa pet; o bate-boca entre vizinhas; o latido do vira-lata, que sabe e não me deixa esquecer, entre uma xícara de café e outra, que ali estou “inserido”, que mesmo não me sentindo, ainda assim sou um estranho, já que não vivo ali, estou ali. Constatação que me faz perceber que minha simples presença, como estudante de mestrado, em uma casa e em uma ocupação construída de forma tão precária, em função dos escassos recursos financeiros disponíveis, significa uma demonstração nítida da injustiça social e da desigualdade em que vivemos.

Minhas idas e vindas ao Orfanato renovam a minha sensação de inconformismo e, por assim dizer, de revolta com a realidade que nós, seres humanos, edificamos para nós mesmos. Sem nenhuma dose sequer de inocência, e com uma ampla sensação de sofrimento e impotência perante um mundo que não desejo, mas que está aí, me vem à memória a conhecida frase “é pena eu não ser burro, eu não sofria tanto”93.

Em meio a esta angústia, tentando terminar com dignidade aquilo que comecei, lembro das casas dos sujeitos desta pesquisa, e das casas existentes no Orfanato de uma maneira geral. Começo então a pensar sobre a similaridade que possuem com este trabalho, já que, como ele, as casas estão sempre inacabadas, possuem em si um vir-a-ser que pouco a pouco vai ganhando qualidades, e ao mesmo tempo já se sustentam a si mesmas pois, pelo menos para quem as habita, elas têm um papel fundamental de abrigo.

Da mesma forma, este trabalho, desde seu início, é entendido como algo aberto, assim como o próprio conhecimento, de acordo com o que foi apresentado na sua Abertura. Isso significa que ele nunca esteve isolado ou fechado em si, que muito mais que algo pronto, é apenas um abrigo à algumas idéias que se encontram aqui, e que já possuem estrutura suficiente para se sustentar, mas que merecem sempre alguns ajustes aqui e ali, que vão se fazendo ao longo da vida, em momentos oportunos, quando a disposição encontra as disponibilidades.

A estrutura de que falo se constitui a partir dos referenciais da Linha de Pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos, que contribuíram diretamente em todas as etapas deste trabalho: desde a concepção de conhecimento que funda o texto, passando pela qualificação das práticas sociais e dos processos educativos, pela contribuição fundamental para a leitura da situação das cidades hoje, pela coerência das opções metodológicas tomadas, chegando então à análise dos dados em si. Ao longo deste percurso, destaco o diálogo com as idéias defendidas por Paulo Freire, que constroem uma linha condutora da pesquisa, que se faz perceber e dá unidade a tudo o que foi feito.

Com esta estrutura procurei manter uma coerência reflexiva e, a partir dela, compreender o que os dados me apresentaram, processo este que necessariamente significou depurar escolhas que acabaram por configurar o que está apresentado aqui. As escolhas metodológicas realizadas construíram o percurso da pesquisa, recortando pouco a pouco

a amplitude do assunto pesquisado, o que proporcionou um foco bastante específico, dentre muitos outros possíveis. Em função disso, espero ao menos ter conseguido deixar clara a trajetória de minhas idéias até aqui, já que compreendo a possibilidade de sustentar muitas outras escolhas, o que necessariamente significaria a consolidação de outras trajetórias.

Dessa forma, considero que outras estruturas e possibilidades de análise poderiam ter sido utilizadas para desenvolver esta pesquisa, o que não a desqualifica, apenas considera que o que foi feito é uma das possibilidades, que não se pretende nem melhor nem pior que outras, apenas coerente em si mesma. Considero que as opções por uma pesquisa qualitativa, realizada a partir de um estudo de caso, seguida da definição pela observação participante e da aplicação de entrevistas se demonstraram bastante adequadas, já que possibilitaram que a coleta de dados atingisse seus objetivos.

A vastidão do tema da construção das cidades, e as suas possibilidades de interpretação a partir da configuração das práticas sociais e dos processos educativos que nele estão contidos, se mostrou como um profícuo campo de pesquisa, do qual considero que este trabalho faz parte. É neste sentido que compreendo as diversas lacunas presentes aqui, que ficam como apontamentos para futuras pesquisas, como por exemplo: um maior aprofundamento do histórico das intervenções públicas nas cidades; o maior detalhamento da diversidade de práticas sociais que compõem a construção das cidades; a análise das formas populares de construção das cidades; um estudo que leve em conta o processo mais geral da intervenção pública, estudando todas as áreas urbanas afetadas e as informações técnicas e documentais disponíveis; uma maior aproximação do canteiro de obras do mutirão e o acompanhamento dos processos migratórios dos pobres entre as regiões precárias da cidade.

Considero, também, que as perspectivas e indícios levantados neste trabalho, quanto aos processos educativos analisados, trazem indicativos que contribuem para reflexões sobre o modo de se realizar

futuras intervenções em áreas ocupadas por populações de baixa renda. Dessa forma, entendo que, aos olhos sensíveis, este trabalho contribui para a análise das intervenções já realizadas e aponta possibilidades para as que ainda virão a acontecer.

As transformações urbanas, realizadas a partir de intervenções do poder público, em regiões ocupadas por população de baixa renda, necessariamente alteram as relações existentes entre os moradores envolvidos. Essas transformações não são simplesmente redutíveis a uma faceta material ou financeira e não podem, portanto, ser pensadas apenas em termos de bons projetos ou da liberação de muitos recursos fincanceiros. Isso acontece porque, sobretudo em ocupações de baixa renda, morar significa mais do que a materialidade da casa e o seu custo real, está ligado também ao que se constrói e cultiva no lugar e com as pessoas com as quais se compartilha a vida.

Essa reflexão explicita a necessidade da construção de novas bases para as discussões sobre a qualidade urbana, porque indica que tal qualificação não pode ser pensada apenas a partir da existência ou não de infra-estrutura urbana, saneamento básico, equipamentos e serviços públicos, áreas de lazer, áreas verdes e etc. Aponta para o fato de que fazem parte da qualidade urbana outros fatores, mais difíceis de serem analisados friamente, tais como: a apropriação, o convívio, as relações existentes entre as pessoas, as práticas sociais em desenvolvimento, o histórico de ocupação da região, entre outros fatores.

Com este trabalho, espero ter contribuído para o entendimento de um horizonte de aproximação entre a Educação e a Arquitetura e o Urbanismo, que, como ciências aplicadas, trazem consigo a intervenção na realidade como parte constituinte de si mesmas. A partir deste pressuposto de lidar com a realidade, e do entendimento de que a construção dos espaços das cidades educa seus moradores, a Educação e a Arquitetura e o Urbanismo são compreendidas, aqui, como áreas de conhecimentos complementares.

O caminho que percebo a partir da aproximação destas áreas me parece bastante longo: identifico nele a possibilidade da constituição de processos, que tendo como sujeitos os moradores das cidades, tenham como produto os espaços das cidades, que, no meu entender, só poderão se constituir sem opressões urbanas a partir do momento que forem construídos por processos que não tragam consigo estas opressões. E é esta a concepção que aproxima os conceitos da educação popular de Paulo Freire dos processos de produção dos espaços urbanos aqui analisados.

Com relação à Educação, acredito que a contribuição está tanto na ampliação das discussões e na identificação dos processos de ensinar e aprender, que aqui se desenvolvem em situações e circunstâncias ainda não discutidas e pesquisadas, quanto no aprofundamento e explicitação das contradições em que estão enredados os processos educativos dentro da prática social estudada. Dessa forma, contribui para a reflexão sobre os processos de ensinar e aprender que estão no dia-a-dia das pessoas e nos seus envolvimentos com os espaços com os quais e em que se relacionam. Reflexão que pode contribuir para os processos de ensinar e aprender existentes dentro da escola, de forma a compreender que os alunos, professores e funcionários, nas suas relações e apropriações dos espaços em que vivem, inclusive o da escola, se educam mutuamente.

Já em relação à Arquitetura e o Urbanismo, percebo que este trabalho fortalece a importância dos processos e relações que estão para além da materialidade dos espaços em si, reafirmando que os espaços não deveriam ser pensados de forma dissociada deles. A contribuição consiste em caminhar no sentido - que tem muito a ser feito ainda - de reconhecer que os espaços são produzidos por seres humanos, e que os processos em que se relacionam na produção dos espaços são tão ou mais importantes do que o espaço produzido em si. Reconhecimento esse que aponta para a necessidade de se constituir outras formas de pensar, produzir e analisar os espaços.

Espero que as reflexões aqui apresentadas sejam compreendidas como um processo em aberto, que trazem considerações e possibilidades dentro dos limites materiais, espaciais e temporais de uma pesquisa de mestrado, que se envolveu com um estudo de caso bastante complexo, no qual a intervenção estudada esteve em pleno processo durante todo o período da pesquisa e ainda posteriormente à sua finalização.

O que se coloca aqui é o encerramento deste momento de comunicação, viabilizado pela escrita e leitura das idéias, e que pela sua própria condição sequencial94, neste momento tem que ter um fim. De

qualquer forma, embora eu finalize o texto, certamente continuo a reflexão sobre o que escrevi, como espero que continuem aqueles que o leram até aqui: se isso acontecer, em parte os objetivos de tê-lo escrito vão ter sido alcançados.

Bibliografia