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A autonomia é entendida, aqui, como a liberdade individual e coletiva de decidir e executar os rumos da própria vida, a superação das opressões que colocam homens e mulheres a realizar suas vidas em desacordo com o que desejam. Considero que, na relação com o mundo e com as pessoas, cotidianamente vivenciamos possibilidades de afirmação ou negação desta autonomia. Essa reflexão aproxima o entendimento de autonomia da conceituação de “aprender a conduzir a própria vida”, desenvolvida pela professora Petronilha Gonçalves e Silva em alguns de seus trabalhos:

“Aprender a conduzir a própria vida é, pois um processo de constantes trocas com quem se convive, na família, no próprio grupo étnico/racial, no trabalho e em outros ambientes, como terreiros e igrejas, sindicatos, escolas. Nele, se é incentivado a afirmar ou a negar a origem étnico/racial, a assumir outra alheia como se fosse própria, sem conseguir, no entanto, apagar totalmente a primeira.” (SILVA, 2003, p. 13)

Faz-se necessário, aqui, uma ressalva, já que o conceito citado acima está, nos trabalhos da autora, diretamente ligado ao modo de ser dos afrodescendentes e africanos. Eu o transporto para cá não para afirmá-lo como universal a outras etnias, mas como contribuição em um sentido amplo de superação das opressões, que se colocam de formas muito diferentes de acordo com os contextos em que estão inseridas, mas que, no sentido da resistência à dominação que é imposta aos homens e às mulheres, guardam também muitas similaridades entre si.

O conceito em foco compreende várias esferas possíveis de “aprender a conduzir a própria vida”, desde a família, até o sindicato, passando pelo trabalho, sendo que em todas estas esferas existem opções, atitudes, palavras que podem ou não conduzir as pessoas para sua própria auto-determinação. Considerando, como Paulo Freire (1987), que não se pode construir a liberdade por meio da opressão, esta

“condução da própria vida”, no sentido de autogerir seus rumos, passa por opções, atitudes e palavras coerentes com a autonomia desejada.

Nas ações humanas, a liberdade se configura como uma gama de possibilidades a serem definidas e que, necessariamente, lidam com as condições reais com as quais as pessoas convivem no seu dia a dia. Como nos mostra Maurice Merleau-Ponty (1999):

“O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e nascer no mundo. O mundo está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído. Sob o primeiro aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Portanto

nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou

coisa e nunca sou consciência nua.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.

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Dessa forma, “liberdade” não significa a possibilidade dos seres humanos de simplesmente definirem o mundo, tampouco de se entenderem como simples condição do mundo: ambos os aspectos estão presentes de forma a compor as ações humanas e as suas relações com o mundo.

Enrique Dussel (s/d), refletindo sobre a liberdade dos homens e mulheres de escolher os caminhos para atingir seus objetivos na vida, corrobora com a noção discutida aqui:

“La libertad se mueve en el siguiente ámbito. Como el proyecto es un pode-ser futuro, que no es todavia, puedo elegir distintos caminos para alcanzar dicho proyecto; em el fondo, ninguno de esos caminos me va a totalizar del todo, entonces quedo, un poco como decían los clássicos, “indiferente”, y me digo: “Esto es de alguma manera bueno, pero aquello lo es de otra manera.” El hombre es libre porque teniendo un proyecto futuro ninguna posibilidad lo cumple del todo. (DUSSEL, s/d, p. 104)

Assim, ainda que homens e mulheres sejam livres para pensar diferentes projetos futuros, eles nunca alcançarão a definição do todo, já que não podem simplesmente definir o mundo, mas nem por isso podem ser reduzidos a simples condição do mundo.

Nesse sentido, entendo que as opções e atitudes cotidianas das pessoas podem conduzi-las a esferas de autonomia, com relação ao gênero, à raça ou à classe, por exemplo; mas, de qualquer modo, e enquanto seres inacabados, sua autonomia mais ampla será sempre uma busca, uma incompletude.

Para além das opções pessoais, que podem conduzir a algumas destas esferas de autonomia, homens e mulheres só podem efetivamente realizá-la em conjunto, já que é na relação entre os homens e mulheres, na sua interação de forma dialógica que está a possibilidade de humanização do mundo. Tal possibilidade reside, portanto, na conformação de um convívio entre homens e mulheres livres, que não se coisificam uns aos outros ou a si mesmos.

“(...) a meta da liberdade começa no espírito do homem e a condição da liberdade é a imersão do indivíduo renovado numa sociedade onde o homem é o sujeito e não o objeto.” (SANTOS, 1998, p. 78)

Dessa forma, se a sociedade for constituída por “coisas” e não por sujeitos, não existe a hipótese de indivíduo livre, já que a autonomia de um está condicionada, pelo convívio, à autonomia dos outros e vice- versa.

A possibilidade de liberdade dos seres humanos está na interação entre eles, já que a sociedade em que vivemos é constituída de práticas sociais que existem em função desta interação entre homens e mulheres no mundo. Sendo assim, o impedimento da concretização da liberdade reside nos próprios homens e mulheres que constroem, edificam, convivem e participam de relações sociais que são desiguais e

injustas, e que possibilitam a dominação e imposição de uns sobre os outros.

A humanização do mundo passa, portanto, pela ação humana, a mesma que edificou a desumanização da configuração social em que vivemos. Por isso, a libertação dos homens e mulheres é uma tarefa de transformação e não de manutenção da sociedade tal qual a conhecemos. Tarefa que apresenta seu maior desafio justamente na interação entre os homens e mulheres no mundo, já que aí é que se encontram as estruturas sociais que historicamente têm contribuído para a manutenção do status quo.

“A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na 'inversão da práxis', se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens.” (FREIRE, 1987, p. 37)