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1.2 PESQUISA PARTICIPANTE? O QUE É? COMO FAZEMOS?

1.2.2 Algumas sínteses, muitas perguntas

Por certo, como um caminho a ser construído, a partir de bases que desafiam o paradigma ainda dominante, a pesquisa participante enfrenta muitas dificuldades e exige uma atitude especialmente crítica e cautelosa em sua execução. Na IEPS-UEFS a convivência respeitosa e produtiva entre saber popular e saber científico continua a ser “o” desafio diário da equipe de pesquisadores e de trabalhadores/as, em construção coletiva e artesanal, situação a situação, driblando-se preconceitos, relações de poder, diferenças de classe, dificuldades de comunicação.

A pesquisa participante enfrenta, em verdade, todo um contexto de tensionamento constante, como tudo que se dispõe a construir horizontes de mudança. A estrutura burocrática e disciplinar da Universidade impõe definir, por exemplo, o limite entre pesquisa e extensão, algo que é desafiado constantemente por este modo de pesquisar. O tempo dos projetos e dos processos acadêmicos é incompatível com o tempo dos sujeitos que compartilham a pesquisa, dos processos reais de luta e de formação, geralmente lentos e cheios de retrocessos. O processo exige recursos financeiros e tempo da equipe, sempre premida pelo produtivismo acadêmico e precarização das condições de trabalho docentes. Mesmo o “produto” da pesquisa participante muitas vezes é incompatível com os métodos de divulgação e avaliação científicas: a tensão entre a linguagem e os formatos acadêmicos e o sentido da pesquisa realizada nos coloca sempre em contradição (os/as trabalhadores/as podem, de fato, ter acesso ao conhecimento que produzimos? Faria para eles/as sentido o texto pelo qual exponho agora esta pesquisa?). Questões como “neutralidade científica” e “rigor metodológico” ainda vêm à baila com muita constância e em termos muito rígidos – pelo que o cuidado com a transparência, a explicitação

110 Ideia que remeto aos espaços de discussão acadêmica em geral: eventos científicos, as aulas do Doutorado, as reuniões de orientação, as trocas com os/as pesquisadores/as do OBFF (um outro sujeito coletivo de pesquisa que tenho a sorte de compor) e com os/as amigos/as queridos/as que fiz no PPGSD-UFF (muitas epifanias nasceram dos longos cafés da manhã na Comuna Nordestina, apelido do meu lar em Niterói, onde dividi o espaço, comida, música, risadas e muita teoria com os/as companheiros de percurso no Doutorado). Muitas das ideias chaves que desenvolvi nesta Tese nasceram do desafio de apresentar a pesquisa em andamento em “grupos de trabalho” nos mais diversos eventos científicos de que participei ao longo dos últimos quatro anos, das perguntas que me foram feitas, das apresentações dos/as colegas, das histórias que ouvi e contei.

Refletir sobre isso permite, em última instância, pôr em xeque a própria noção de autoria, quando a percepção do processo coletivo de produção do conhecimento entra em confronto com a “propriedade” das ideias na ciência sob a lógica do valor e da mercadoria.

das premissas, a sustentação teórica mostram-se necessários com muito mais cautela e apuro do que em outros contextos.

No caso do Projeto Cantinas Solidárias, em particular, nos defrontamos com uma questão específica, que parece revelar de maneira especial os riscos que resultam do encontro entre a Universidade, e seu saber, e outros tipos de saberes – especialmente os produzidos pelas classes populares. Os grupos são selecionados e passam a dispor de um espaço gratuito para comercialização de seus produtos. Cria-se, assim, uma situação singularmente vantajosa para os/as trabalhadores/as, especialmente considerando a existência de um público consumidor que tem garantido uma fonte certa de ganhos. O risco de que a prática assuma um tom assistencialista111 é, portanto, muito grande. E, da mesma forma, de que, por isso, as trabalhadoras e trabalhadores adiram sem reflexão às “verdades” e opiniões da Incubadora (ou simulem a qualquer custo esta adesão), estimulem o seu dirigismo, silenciando suas discordâncias para evitar a perda da oportunidade vantajosa de trabalho.

Produz-se um contexto artificial, que não será encontrado pelas trabalhadoras e trabalhadores fora do espaço da Universidade. Por tal motivo, os projetos preveem uma duração determinada da permanência nas cantinas da UEFS, a despeito da permanência de nossa atuação com os grupos após este período. De todo modo, esta providência não parece suficiente para anular o problema. Como superar este aspecto, e, apesar dele, contribuir para fortalecer a autonomia do grupo?

Entendo que esta questão, embora ganhe relevo diante dessa peculiaridade do Projeto, permanece central nas metodologias participativas de um modo geral. Nelas está sempre presente a possibilidade do estabelecimento de novas relações de poder, em que é grande o risco de a Universidade assumir o papel de mais um dominador. E de se embevecer com esta condição. De nos trairmos com o conforto de acreditar que, afinal, somos o lado que melhor tem condição de reconhecer o certo e o errado, os bons e os maus caminhos, de sermos críticos. E, assim, mesmo de forma inconsciente, alimentarmos a dependência das trabalhadoras e

111“O assistencialismo, ao contrário, é uma forma de ação que rouba ao homem condições à consecução de uma das necessidades fundamentais de sua alma — a responsabilidade. “A satisfação desta necessidade, afirma Simo ne Weil, referindo-se à responsabilidade, exige que o homem tenha de tomar a miúdo decisões em problemas, grandes ou pequenos, que afetam interesses alheios aos seus próprios, com os quais, porém, se sente comprometi do. É exatamente por isso que a responsabilidade é um dado existencial. Daí não poder ser ela incorporada ao ho mem intelectualmente, mas vivencialmente. No assistencialismo não há responsabilidade. Não há decisão. Só há gestos que revelam passividade e “domesticação” do homem. Gestos e atitudes. É esta falta de oportunidade para a decisão e para a responsabilidade participante do homem, característica do assistencialismo, que leva suas solu ções a contradizer a vocação da pessoa em ser sujeito[...]” (FREIRE, 1967, p. 57)

trabalhadores em relação ao nosso conhecimento e recursos, de que se tornariam meros “clientes”.

Gosto, neste particular, da advertência que faz John Holloway ao “sujeito crítico- revolucionário”

O conceito de fetichismo [...] é incompatível com uma crença no sujeito inocente. [...] A classe trabalhadora não se encontra fora do capital: ao contrário é o capital que a define (nos define) como classe trabalhadora. O trabalho se opõe ao capital, mas se trata de uma oposição interna. Só na medida em que o trabalho é algo mais do que trabalho alienado e o trabalhador é mais do que um vendedor de força de trabalho, a questão da revolução pode ser proposta. O conceito de fetichismo implica inevitavelmente que estamos autodivididos, que estamos divididos contra nós mesmos. [...] A luta entre fetichismo e o antifetichismo existe dentro de nós, coletiva e individualmente. Não pode haver, por consequência, uma vanguarda não fetichizada que conduza as massas fetichizadas. Em virtude do fato de vivermos em uma sociedade antagônica, todos estamos tanto fetichizados como em luta contra esse fetichismo.

Estamos autodivididos, auto-alienados, somos esquizoides. [...] Em lugar de olhar o herói com verdadeira consciência de classe, um conceito de revolução deve partir das confusões e contradições que nos despedaçam a todos (2003, p. 214-215).

Holloway parece tornar o fardo da empreitada da pesquisa participante menos pesado, porque me dispensa da responsabilidade de ser capaz de enxergar verdades. Divide entre todas e todos, por outro lado, o peso da alienação, contra o qual lutamos em conjunto.

A prática de pesquisa desenvolvida por mim junto às companheiras e companheiros da Incubadora está sempre a se defrontar, enfim, com os limites entre o modo como desejamos fazer pesquisa e aquele a que estamos condicionados pelas lições que aprendemos, pelos exemplos que temos, pelas imposições a que temos de nos sujeitar, por nossa própria alienação e nossa carência de atenção e reconhecimento. A cada passo renovam-se muitas perguntas:

- como se relacionam os pesquisadores com a realidade social pesquisada, na medida em que também dela fazem parte? Para quê, para quem e por quê se faz ciência? Como pensar a ciência produzida por sujeitos implicados com a mudança social?

- como construir formas de diálogo horizontais com outras formas de conhecimento? Como suplantar a dicotomia ciência versus conhecimento não científico na busca de uma melhor compreensão da vida social e das soluções para os seus problemas?

- quais são os modos, jeitos, caminhos para acercar-se das pessoas, de sua história, de suas relações, de seus saberes, de suas regras? Qual o procedimento para produzir ciência sem compactuar com o “mundo das coisas”, que escove a vida “a contrapelo” (Benjamin, 2005) em busca da humanidade perdida?

- como o Direito se situa neste contexto? Como pensar o Direito no contexto das lutas populares por outras formas de produzir e se relacionar?

Não cheguei, por certo, nesta pesquisa, às respostas para estas questões, mesmo supondo que elas são sempre provisórias – toda a dita ciência crítica112 parece estar em busca delas,

ofuscada pela proximidade dos acontecimentos, munida de uma caixa de ferramentas inservível para lidar com os desafios que a contemporaneidade nos apresenta, a construir, por tentativa e erro, a nova caixa que nos falta. Mas compartilho aqui o modo como elas vêm se apresentando para nós na Incubadora, que caminhos temos escolhido, que consequências colhemos de nossas escolhas e que distâncias avançamos ou retrocedemos.

112 O significado que pode assumir a expressão “Teoria crítica” parece ter sua certidão de batismo no famoso texto de Horkheimer, de 1937, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1983), em que de alguma forma a vincula ao campo teórico do marxismo. Identifico-me com a leitura que Marcos Nobre (2003) faz desta tradição, que aponta a “orientação para emancipação da dominação”, como elemento central do filósofo da Escola de Frankfurt. No entanto, “a orientação para a emancipação que caracteriza a atividade do teórico crítico exige também que a teoria seja expressão de um comportamento crítico relativamente ao conhecimento produzido e à própria realidade social que esse conhecimento pretende apreender” (2003, p. 9) (grifo do autor). Outro aspecto que destaco, ainda, a partir da interpretação de Nobre (ibidem), é que “sendo efetivamente possível uma sociedade de mulheres e homens livres e iguais, a pretensão de uma mera ‘descrição’ das relações sociais vigentes por parte do teórico tradicional é duplamente parcial: porque exclui da ‘descrição’ as possibilidades melhores inscritas na realidade social e, porque, com isso, acaba encobrindo-as” (2003, p. 9).

2 A DIALÉTICA DA AFIRMAÇÃO/NEGAÇÃO DA VIDA E OS DESAFIOS DO RECONHECER E INVENTAR OUTROS JEITOS DE REPRODUZIR A EXISTÊNCIA

Para interrogar sobre as razões, caminhos e consequências da personificação e da formalização jurídicas do trabalho associado parte-se de um contexto muito específico (uma Incubadora universitária de “economia popular e solidária”), que é parte, em si, de um pano de fundo político de ações e lutas condicionadas pela história recente do mundo do trabalho no Brasil e para além dele.

Neste capítulo, tomo como fio condutor a história da própria Incubadora e, em especial, a formulação de sua “Carta de Princípios” (Anexo A), para apresentar e discutir algumas categorias chave que foram se impondo ao longo da minha convivência com os temas e problemas que esta pesquisa se propôs enfrentar: economia solidária, economia popular e

solidária, autogestão, trabalho/produção associada, informalidade.

O percurso desta investigação foi fundamental para aprofundar e transformar a minha forma de compreender este entorno teórico. O objetivo foi pesquisar uma parcela muito específica dessa realidade, que foi escolhida porque problemas reais me interpelaram através de suas personagens – trabalhadores/as urbanos/as e rurais da região de Feira de Santana envolvidos/as com as ações da Incubadora de “Iniciativas da Economia Popular e Solidária” da UEFS. Procurar entender como esses/as trabalhadores/as lidam com a questão do “formalizar” – como o Direito estatal funciona neste contexto, quais as consequências da aproximação entre essas pessoas e a linguagem, normas, práticas, representantes do Estado –, pressupõe entender porque e para que elas se organizam de forma associada, ou pelo menos porque apostam nesta possibilidade. Pressupõe o envolvimento da Incubadora neste movimento, uma aposta no que escolhemos chamar, dentro de uma variada gama de categorias em disputa, de “Economia

Popular e Solidária”.

As vivências, leituras e discussões proporcionadas pelo processo de pesquisa transformaram meu ponto de partida e não teria mais como apresentá-lo aqui na sua forma original. Embora a “Economia Popular e Solidária” continue sendo o pressuposto da minha curiosidade científica tanto quanto em 2010, os caminhos percorridos tornaram possível avançar na totalização do conhecimento sobre ela.

Tendo de um lado estratégias seculares de resistência e luta pela sobrevivência de pessoas marcadas por desigualdade, invisibilização e exploração e, de outro, formulações teóricas de acadêmicos/as e/ou gestores/as públicos/as, a complexidade do contexto pesquisado explica a grande divergência conceitual em torno do léxico usado para nominar e explicar o “mundo da Economia Solidária” (MOTTA, 2010)113 – do qual é personagem a própria Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da UEFS.