• Nenhum resultado encontrado

Encontro-me, como disse, em um lugar peculiar. Faço parte de uma equipe interdisciplinar, a desenvolver atividades de extensão e pesquisa que transbordam os objetivos da investigação de que resultou esta Tese. As relações estabelecidas com as/os trabalhadores/as miram horizontes de transformação coletiva, de aprendizado, de reflexão, que atritam com a posição que a ciência tradicionalmente reserva ao sujeito produtor do conhecimento científico.

A explicação racional do mundo, da vida, da sociedade, a partir de um sujeito cognoscente que deles se aparta e que filtra a realidade, tomada como um “objeto”, através de instrumentos neutros de mensuração e cálculo, é a postura característica da ciência em sua formulação moderna original. Dela são consequências, sem dúvida, grandes avanços tecnológicos que tornaram possível um alto grau de subordinação da natureza à produção massiva de mercadorias. Dela, no entanto, ao mesmo tempo, não parecem resultar avanços correspondentes na distribuição do bem estar que supostamente a técnica deveria produzir: continuamos a viver, a despeito dos avanços na produção de alimentos, da medicina, da psicologia, pedagogia, da comunicação, da normatização jurídica dos mais diversos campos da vida, em sociedades cada vez mais desiguais e agressivas, onde, entre antidepressivos e pandemias, não tem sido confortável viver, nem para os privilegiados na distribuição das benesses do “progresso”.

Entre os séculos XVIII e XX (e, neste, especialmente após os horrores das duas grandes guerras), a crítica aos pilares sobre os quais se erigiu a modernidade – capitalismo, ciência, Estado – vai paulatinamente sendo construída. Marx, Nietzsche, Freud, Weber, Heidegger, Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer são alguns exemplos de contribuições que se articulam no decorrer dos dois últimos séculos para relativizar o discurso da modernidade, desnaturalizando as certezas sobre as quais ela se ampara e desvelando seus legados:

E o mais poderoso e repugnante legado possibilitado pela história moderna – que modela nossas experiências e, em consequência, nossas ferramentas conceituais – é, sem dúvida, a relação alienada das pessoas com a natureza, das subjetividades com seus objetos, e as relações constituídas por classes sociais, pela produção de mercadorias e pela troca mercantil (TAUSSIG, 2010, p. 30).

Do mundo desencantado de Max Weber (1985) ao moinho satânico de Karl Polanyi (2000, p. 51), a constatação do fracasso das promessas iluministas impulsionou, especialmente a partir da virada do século XX, questionamentos acerca do modo científico de produzir conhecimento. Mas como “abandonar o mito newtoniano sem renunciar a compreender a

natureza”? (PRIGOGINE; STENGERS, 1991, p. 41). Partindo-se do pressuposto que a ciência continua sendo um modo válido e necessário de observação e relação com a natureza, está ainda por construir, no entanto, um modo de fazê-la conviver com outros valores e modos de conhecimento, valendo-se deles e também se oferecendo a eles como coadjuvante. Está em jogo, é claro, toda uma estrutura de poder, de subordinação, um sistema de privilégios que guarda íntima relação com o modo capitalista de produzir, com o Estado, com os mecanismos disciplinares presentes no sistema educacional, nas religiões, na divisão do trabalho. Um novo modo de fazer ciência, penso eu, não pode ser produzido fora de um contexto político de crítica e ação mais abrangentes.

Esse processo é um caminho repleto de riscos, que exige um estado de alerta e crítica de quem o escolhe. Por um lado, um perigo que está se fazendo hoje notar de maneira alarmante: a relativização manipuladora do conhecimento científico, embalada em retrocesso conservador, fundamentalismos religiosos e novos fascismos – cada vez mais palpáveis no Brasil do “bolsonarismo”29. Afirmar que a ciência não é a única forma de produzir conhecimento e que

precisa ser submetida a uma crítica decolonial não pode significar o apagamento dos acúmulos que já produziu nem idealismo e relativismo epistemológico. “Terraplanistas” e criacionistas renascidos das cinzas estão a nos mostrar o quanto a negação absoluta da certeza pode se voltar para certezas sombrias.

Importante refletir, ainda, que a contraposição entre ciência e outras formas de saber, sobretudo as populares e as produzidas no espaço rural, é também acompanhada do risco de uma nostalgia idealista. As formas não capitalistas de produzir e trabalhar “seduzem uma mente treinada e aperfeiçoada pelas instituições capitalistas” (TAUSSIG, 2010, p. 28), sendo constante a tendência de se atribuir, por exemplo, às experiências produtivas de povos tradicionais “o fardo de ter de satisfazer nossos alienados anseios por uma Era de Ouro perdida” (TAUSSIG, 2010, p. 28) e um imobilismo sem história que os prende ao passado. Assim, autocrítica constante e atenta deve ser exercitada, mais uma vez, de modo a afastar a presunção de oferecer respostas prontas e formular desejos alheios.

É esse horizonte que me move a participar dos trabalhos da Incubadora, como espaço que nos coloca como participantes das dinâmicas vivas dos/as trabalhadores/as da economia popular e solidária, assim como das discussões teóricas em torno do trabalho e da economia

29 Sobre o “bolsonarismo” (expressão que se relaciona ao grupo político em torno do atual presidente da república brasileiro), assim como suas possíveis aproximações com o fascismo, remeto a Bernardo Ricupero (2019) e Luiz Filgueiras e Graça Druck (2019) e à entrevista da Profa. Virgínia Fontes, disponível no canal do Universidade à Esquerda no Youtube (2020).

política, em que somos coordenados/as em especial pelo professor e economista José Raimundo Oliveira Lima. Entre as diferentes tentativas de promover o encontro entre as propostas de uma

outra ciência, apresentada em termos de teoria, e a lida com a concretude da vida para a qual

se deseja olhar e compreender, temos privilegiado o caminho proposto pelo materialismo histórico-dialético para observar o concreto, a partir da práxis, como “síntese de muitas determinações” (MARX, 2011a, p. 54), desnudando-o como produto das lutas entre os seres humanos e de sua história e, portanto, como passível de transformação a partir dessas mesmas lutas.

Na desafiadora tarefa de “reprodução do concreto por meio do pensamento” (MARX, 2011a, p. 54) me valho também de todo um conjunto de leituras e discussões que, desde 2014, compartilho, na UEFS, com o grupo de pesquisa “Rede de Sentidos”. Sob coordenação do professor e filósofo Laurenio Leite Sombra, temos realizado leituras coletivas e reflexões em torno da filosofia da linguagem e da hermenêutica contemporânea (Wittgenstein, Martin Heidegger e Paul Ricoeur) e das relações de poder entre os sujeitos, sobretudo aquelas que se constituem como antagonismos (Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Stuart Hall). De 2015 a 2019 executamos, com esta tônica, o projeto de pesquisa A

constituição dos sentidos e dos sujeitos: uma investigação hermenêutica e política, com o

objetivo de “investigar processos e estruturas fundamentais que embasam a constituição humana de sentido e a constituição correlata de sujeitos individuais e coletivos, num contexto de relações antagônicas entre sujeitos” (SOMBRA, 2015a). Este movimento, aliado às nossas preocupações teóricas e políticas paralelas, foram dia a dia nos conduzindo a pensar como se constitui a “rede de sentidos” em que estamos imersos no Brasil e na América Latina e, desde 2019, está em execução o projeto Nenhuma rede é maior do que o mar: rede de sentidos,

antagonismo e ontologia, que, dando seguimento ao projeto anterior, inclui entre seus objetivos

“a investigação sobre a peculiaridade da constituição de sentido latino-americana em uma ideia de modernidade-colonialidade, a partir do pensamento descolonial” (SOMBRA, 2019)30. Fomos encadeando, então, com a mesma metodologia, leituras de autores do grupo

Modernidad/Colonialidad (Aníbal Quijano, Santiago Castro-Gómez), nos aproximamos da

filosofia intercultural do cubano Raúl Fornet-Betancourt e da produção que tem pensado a América Latina e suas lutas a partir da Benemérita Universidad Autónoma de Puebla-BUAP, com leituras de textos de Raquel Gutiérrez e John Holloway. No último ano temos nos dedicado

30 Uma consequência deste trabalho foi a organização e publicação do dossiê “Dis-pensando o ocidente”, na Revista Ideação (SOMBRA; PITA, 2017), ligada ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEF) da UEFS.

à leitura filosófica de textos de Marx e de autores marxistas. A partir dela nos aproximamos também da obra de Silvia Federici, discutimos o Sartre de Crítica à Razão Dialética a partir da dissertação de mestrado de um dos integrantes do grupo de pesquisa, June Alfred Melo Alves (2019)31 e, nos últimos meses, nos voltamos à leitura de Lo ideal y lo Material do antropólogo marxista Maurice Godelier (1989), em que identificamos vários pontos de contato com a “rede de sentidos”, categoria que Laurenio Sombra tem forjado ao longo deste percurso.

O que temos chamado de rede de sentidos, a partir da formulação de Laurenio Sombra (2015b) (2015c) (2019b) (2020), enriquece o arsenal de recursos para pensar o problema do

sujeito de direito, na medida em que ele se fricciona com a questão da identidade, em especial

da identidade coletiva. Os sujeitos, individuais (Flávia, João, Raquel...) ou coletivos (mulher, quilombola, europeu, trabalhadores associados...), são, nesta formulação, tomados como “promessas de identidades” resultantes de sentidos em disputa, construídas histórica e performativamente pelos seres humanos “de carne e osso”, em suas práticas e relações, no contexto das redes de sentidos32 em que se inserem, e em que também estão condicionados pela

concretude de sua relação com a natureza e com a reprodução da sua vida animal pelo que temos chamado de trabalho. A busca é por uma ferramenta filosófica que dê conta de superar

a separação esquemática entre, de um lado, as imposições materiais que nos fazem dependentes, animais que somos, da natureza e de sua transformação pelo trabalho, e, de outro, a nossa condição de seres linguísticos, políticos, imersos em antagonismos33, e que, por isso, igualmente concedem plasticidade àquelas mesmas determinações materiais:

A abstração dos signos só se efetua concretamente a partir da práxis, eles nos permitem a criação de uma ambiência que já reúne em si o processo prático de apropriação humana do mundo natural em articulação com a linguagem.

31 Defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFBA, Liberdade em Fusão: o engajamento

enquanto reagrupamento anti-institucional tem me inspirado outras perguntas e reflexões no âmbito do problema de que parto nesta tese, apontando para uma nova agenda de pesquisa em torno do que temos chamado de “regras de convivência” (a que farei menção, de forma breve, no último capítulo).

32 “Certa constituição abrangente do sujeito, certa ambiência prévia, basilar para uma série de operações parciais, como a ação cotidiana, a atribuição de significado de uma palavra ou de um enunciado, a compreensão de práticas sociais em geral, enfim, para os diversos processos de atribuição de sentido” (SOMBRA, 2015c, p. 63-64). 33 Os antagonismos se dão “sempre que sujeitos em relação mútua não compartilham a mesma rede de sentidos em aspectos essenciais, seja no modo com o qual eles valorizam/ hierarquizam os sujeitos, seja no modo, talvez mais sutil, como eles valorizam/hierarquizam outros signos da rede. Claro, sempre pode haver divergências mais superficiais, mas o antagonismo se dá quando as diferenças entre as redes de sentido propiciam certa inaceitação mútua com relação à rede de sentido do outro, com diversos modos possíveis de reação decorrentes desta inaceitação, a depender do grau de poder dos sujeitos envolvidos. De um modo geral, as relações de antagonismo podem ensejar negociação ou enfrentamento de sentido, mas também processos de dominação e submissão. [...] O antagonismo é fundamental para a compreensão da rede de sentidos, porque ele é que propicia as relações mais instáveis de alteridade e, em última instância, que proporciona a possibilidade de transformação social, numa tentativa pelos sujeitos de superação ou conciliação de redes de sentidos antagônicas” (SOMBRA, 2015c, pp. 65- 66).

Toda a dimensão valorativa da existência humana, doravante, não pode mais ser compreendida meramente pela sua atividade material de transformação sem a consideração dos significados possibilitados pela vida transformada e aumentada em complexidade no contexto do animal linguístico que somos. Foi a essa ambiência ampliada pela linguagem, que inclui uma configuração profunda na nossa capacidade de ação e significação, um modo de hierarquização e articulação de valores e significados antecedendo nossas operações particulares, que dei o nome de rede de sentidos (SOMBRA, 2020).

Esta perspectiva é muito útil, por um lado, para pensar o Direito, este pedaço da nossa sociabilidade que se situa tanto “no universo do discurso e da ação, somente existindo enquanto discurso e comunicação, linguagem, processo, fazer, operar” (CALMON DE PASSOS, 1999, p. 22) 34, quanto se mostra imbricado com a materialidade histórica dos homens em seus modos de reproduzir a vida. Ela ajuda a pensar o Direito como um (entre outros) espaço de disputa por sentidos, pelo preenchimento significativo de nomes que acompanham as sociedades humanas no seu exercício de se manter reproduzindo a vida, seja no que diz respeito ao modo como se repartem os papeis sociais e suas funções (como justiça, necessidade, interesse, poder, lei, dever, punição...), seja no que toca às identidades que se formulam a partir deles (homem, mulher, branco/a, negro/a, dono/a, chefe/a, súdito/a, trabalhador/a...). Nestes nomes sempre há um resto disponível a ser completado, uma promessa de sentido a ser concretizada a partir das disputas que se estabelecem no exercício de nomeação. O sentido que se hegemoniza em determinado espaço e tempo histórico nunca está salvo: mesmo para a versão do Direito que, sob os signos da razão e da certeza, integra a rede de sentidos do capitalismo, a disputa permanece em jogo e as definições nunca estão totalmente sob o controle de apenas alguns. Este passo torna possível, ainda, na crise das condições materiais que subjazem à formação da

rede de sentidos que se hegemonizou a partir do século XVI, vislumbrar o agora como um

momento histórico privilegiado para os os/as subalternizados/as, já que a sua crescente incapacidade de representar as práticas e intencionalidades dos sujeitos catalisa relações antagônicas que podem conduzir a novas (e, quiçá, mais equânimes) formas de distribuição de poder e recursos.

Foi através das leituras e reflexões no grupo “Rede de Sentidos” que me aproximei de uma outra ferramenta conceitual chave para esta pesquisa: colonialidade do poder. Tanto quanto a primeira, colonialidade do poder me auxilia a enfrentar o dilema economia versus

34 O jurista baiano José Joaquim Calmon de Passos (1920-2008) foi muito importante na minha formação intelectual no campo do Direito. Fui sua aluna, entre 1998 e 1999, no Curso de Especialização em Direito Processual que coordenava em Salvador-BA, e seu pensamento influenciou minha carreira acadêmica e minha forma de pensar o Direito em sua relação com a vida social.

cultura35 (ou, no léxico valorizado pelas versões mais esquemáticas e estruturalistas do marxismo, base versus superestrutura36), inescapável para a tarefa de entender o papel que pode ocupar o Direito na materialidade das lutas dos/as subalternizados/as. Ela foi cunhada originalmente pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (1992) que, ao lado de nomes como Enrique Dussel, Edgardo Lander, Catherine Walsh, Ramon Grosfoguel, Nelson Maldonado, Santiago Castro-Gómez, integra o que foi chamado de “programa de investigación de

modernidad/colonialidad latinoamericano” (ESCOBAR, 2003)37. Alguns de seus pontos de partida são especialmente eloquentes para esta pesquisa:

i) as origens da modernidade são antecipadas para o momento de início do processo colonizatório americano, no final do século XV (“primeira modernidade”, onde têm papel central Portugal e Espanha), ressaltando-se a importância do processo de controle do Atlântico e da exploração das Américas para o conjunto de mudanças culturais e econômicas que chegarão, no século XVIII, ao auge da revolução científica e do Iluminismo; em suma, não há modernidade sem colonialidade;

ii) a centralidade da noção de dominação do outro não-europeu, e a subalternização de seu conhecimento e formas culturais, para a construção da ideia de modernidade; para isto, o

35 Nas palavras de Ramón Grosfoguel, “o trabalho de Quijano oferece uma nova forma de pensar sobre este dilema, a qual ultrapassa os limites tanto da análise pós-colonial como da análise do sistema-mundo. [...]. Em muitos aspectos, a análise dos dependentistas e a análise do sistema-mundo reproduziram parte do reducionismo econômico das abordagens marxistas ortodoxas. Isto causou dois problemas: em primeiro lugar, um subestimar das hierarquias coloniais/raciais; e, em segundo lugar, um empobrecimento analítico que se revelou incapaz de explicar as complexidades dos processos político-econômicos heterárquicos globais” (2008, p. 21).

36 Não obstante as versões mais simplistas desta relação já tenham sido de certa forma superadas, inclusive a partir de uma leitura mais atenta e refinada na própria obra marxiana, ela ainda garante discussões e divergências, que acabam por se conectar a outros debates que estão longe de ser ultrapassados e que se situam, no fundo, na busca (que foi também a do próprio Marx e de seu materialismo histórico-dialético) pelo ponto ótimo entre o materialismo empiricista e o racionalismo idealista: teoria versus prática; estrutura versus ação; reforma versus revolução; as críticas marxistas ao pós-modernistas e culturalistas. Especificamente sobre base e estrutura na teoria cultural marxista, vide Raymond Williams (2005).

37 O texto do antropólogo colombiano Arturo Escobar corresponde à conferência Mundos y conocimientos de outro

modo, apresentada em Amsterdã, em 2002, no Congresso do Conselho Europeu de Pesquisas Sociais da América Latina – CEISAL. Ele é apontado por Santiago Castro-Gómez (2005b), assim como a coletânea Pensar (en) los interstícios. Teoría y práctica de la crítica poscolonial (1999), como marcos de divulgação dos trabalhos do grupo Modernidade/Colonialidade.

Arturo Escobar sintetiza o conjunto de elementos e influências que marcam o grupo de pensadores/as latino- americanos: a Teologia da Libertação dos anos 1960 e 1970; os debates em torno da Filosofia da Libertação e a ideia de autonomia das ciências sociais latino-americanas, envolvendo nomes como Enrique Dussel, Rodolfo Kusch, Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro; a Teoria da Dependência; os debates sobre modernidade e pós-modernidade dos anos 1980 ; os trabalhos de Michel Foucault e Pierre Bourdieu; nos Estados Unidos, o grupo latino-americano de Estudos Subalternos. Além das publicações e conceitos em comum – que demonstram sua coesão e caráter programático –, aponta-se como “principal força orientadora” do grupo “uma reflexão continuada sobre a realidade cultural e política latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado de grupos explorados e oprimidos” (ESCOBAR, 2003, p. 53, tradução nossa) (“[...]principal fuerza orientadora”, “una reflexión continuada sobre la realidad cultural y política latinoamericana, incluyendo el conocimiento subalternizado de los grupos explotados y oprimidos”).

ponto de partida (a Europa38) é deliberadamente naturalizado na construção de uma suposta universalidade abstrata, plasmada no ideal de desenvolvimento que tem como ponto de chegada a civilização europeia – a hibrys del punto cero, no dizer de Santiago Castro-Gómez (2005a)39.

Quijano, em particular, ressalta como o processo de colonização mostrou-se essencial à própria construção da ideia de “europeu”, que se formula em simultâneo ao processo de exacerbação, hierarquização e naturalização das diferenças, enquanto vias de dominação: “somente a cultura europeia é racional, pode conter ‘sujeitos’”; as outras culturas, assim, somente “podem ser ‘objetos’ de conhecimento ou de práticas de dominação” (1992, p. 443).

Considerando a tarefa de compreender a realidade de trabalhadores/as da Bahia, o estado mais negro do Brasil, o pensamento de Aníbal Quijano interessa a esta pesquisa, em especial,

38Sendo que o que se constituiu inicialmente como “Europa” ganhou um âmbito maior que incluiu os Estados Unidos, por exemplo. Isto parece explicar porque a ideia vaga de “ocidente” e “ocidentalismo” foi aos poucos assumindo um sentido substitutivo do signo “Europa”. A palavra ocidente, neste contexto, extravasa o sentido da geografia física. Ela abarca a ideia de Europa, mas também guarda nítida relação com a cor da pele. Neste sentido, Estados Unidos e Canadá, por exemplo, são ocidente, na mesma medida que o Brasil não é. Um site conservador norte-americano, coordenado pelo falecido ensaísta Lawrence Auster, propôs a seguinte questão: seriam os hispânicos ocidentais? Em resposta, o advogado conservador Howard Shuterland diz que, tendo vivido no México por um tempo e por isso conhecendo-o bem, “certamente poderíamos considerar como ocidentais Borges, Villa- Lobos ou Octavio Paz. Mas o mesmo não se pode dizer das ‘dezenas de milhões de mestiços e indígenas que invadem os Estados Unidos’”. Explica que “eles são descendentes dos escravos indígenas pré-colombianos, não da Espanha ou de qualquer parte da Europa. Sua cristandade [...] é um verniz sobre uma antiga e, francamente, sombria herança indígena”. Também suspeita que o mesmo ocorra no resto da América Latina “exceto, talvez, Argentina, Uruguai e – em alguma medida – o Chile”, da mesma forma que se mostra “totalmente diferente de Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia” (SOMBRA, 2017, p. 195).

Quijano, por sua vez, revela, assim, como o processo de colonização mostrou-se essencial à própria construção da