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1.2 PESQUISA PARTICIPANTE? O QUE É? COMO FAZEMOS?

1.2.1 A pesquisa participante em ação nas nossas práticas

1.2.2.3 Como superar a disciplinaridade?

O pôr em questão a divisão disciplinar do conhecimento é outro signo marcante da pesquisa participante em geral, e do que fazemos na Incubadora, em particular. O pesquisador “no decorrer de sua prática às vezes é sociólogo, ou psicossociólogo, ou filósofo, ou psicólogo, ou historiador, ou economista, ou inventor, ou militante, etc. Ele descobre as áreas do conhecimento de um pensamento galileano aceito em sua plenitude significante” (BARBIER, 2007, p. 18). A questão do fracionamento disciplinar do conhecimento tem, por certo, ainda outra consequência: o fracionamento do próprio sujeito pesquisador, que torna por si desafiante

mesma de uma comunidade entra absolutamente em questão; é o tempo da possibilidade efetiva do aniquilamento, da destruição da identidade do grupo ou é também o tempo da plenitude, isto é, o tempo da realização paradisíaca, em que as metas e os ideais da comunidade podem cumprir-se” (ECHEVERRÍA, 2010, p. 3, tradução nossa). (“La historicidad debe dar sentido a la temporalidad dentro de lo que podríamos llamar una tensión bipolar. El ser humano entiende su propia existencia como una transcurrir que se encuentra, tensado como la cuerda de un arco, entre lo que sería el tiempo cotidiano y lo que sería el tiempo de los momentos extraordinarios; entre el tiempo de una existencia conservadora, que enfrenta las alteraciones introducidas por el flujo temporal mediante una acción que restaura y repite las formas que han venido haciéndola posible, y el tiempo de una existencia innovadora, que enfrenta esas alteraciones mediante la invención de nuevas formas para sí misma, que vienen a sustituir a las tradicionales. Si no hubiera esta polaridad, contraposición y tensión, no existiría la temporalidad humana. El tiempo extraordinario ya sea como tiempo del momento de la catástrofe o del de la plenitud, es el tiempo en el que la identidad o la existencia misma de una comunidad entra absolutamente en cuestión; es el tiempo de la posibilidad efectiva del aniquilamiento, de la destrucción de la identidad del grupo o es también el tiempo de la plenitud, es decir, el tiempo de la realización paradisíaca, en el que las metas y los ideales de la comunidad pueden cumplirse”).

Sobre os diversos e potentes sentidos que as festas assumem na experiência brasileira, ver, também, Léa Freitas Perez, Leila Amaral e Wania Mesquita (2012).

103 No Anexo G reuni fotografias dos Novembros Negros da Lagoa Grande. Sobre a experiência específica do Novembro Negro de 2018, enquanto “encontro entre a universidade e outros modos de conhecer, remeto a (PITA, 2019a).

contrapor a pesquisa coletiva ao individualismo solitário que de regra caracteriza o fazer científico.

A equipe da IEPS-UEFS tem contado ao longo de sua existência com professores, técnicos e estudantes de diversas áreas: Economia, Direito, História, Filosofia, Administração, Ciências Contábeis, Engenharia Agronômica e de Alimentos, Pedagogia, Psicologia, Geografia e Educação Física. Isto não tem acontecido em razão de uma decisão artificiosa, mas é fruto, em primeiro lugar, da demanda da própria realidade, cuja complexidade tem exigido as diversas perspectivas que se aliam nas atividades desenvolvidas. A economia popular e solidária e a própria categoria trabalho conformam campos interdisciplinares por excelência: pensar sobre as formas pelas quais os seres humanos reproduzem sua existência materialmente (levando em consideração as condições ecológicas e geográficas e o estágio de desenvolvimento tecnológico das forças produtivas) exige pensar por igual sobre como idealmente se configuram, (considerando aspectos como gênero, raça, psicologia, dinâmicas regionais, políticas, históricas etc.) as relações sociais necessárias para isto,

quer dizer, as relações entre os homens [e mulheres], quaisquer que sejam, que assumem a tríplice função de determinar a forma social do acesso aos recursos e o controle dos meios de produção; de redistribuir a força de trabalho dos membros da sociedades nos distintos processos laborais e organizar o desenvolvimento destes últimos; e de determinar a forma social da circulação e a redistribuição dos produtos do trabalho individual ou coletivo (GODELIER, 1989, p. 158, tradução nossa).

Em segundo lugar, as escolhas epistemológicas e metodológicas que já evidenciei também apontam para a superação da disciplinaridade, como decorrência lógica da aposta na intencionalidade transformadora e na prioridade da humanidade como motivadora da produção de conhecimento – humanidade no sentido apontado por Marx nos Manuscritos de Paris, do “mundo dos homens”, que se desvaloriza diante da valorização do “mundo das coisas”104, em

processo que é parte da “[...] interconexão essencial entre a propriedade privada, a ganância, a separação do trabalho, capital e propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e desvalorização do homem, de monopólio e concorrência etc., de todo este estranhamento (Entfremdung) com o sistema do dinheiro (2010, p. 80).

A separação disciplinar do conhecimento, quando posta como um valor em si, parece- me compactuar com o “mundo das coisas”, assim como a própria ciência, quando se fecha em

104 “O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt)” (MARX, 2010, p. 80) (grifos do autor).

si, se basta em um espaço apartado da vida dos homens e mulheres: “o mundo acadêmico”, a linguagem acadêmica, o diálogo entre “pares”. O signo decolonial da proposta de sincera centralidade do ser humano como motivador da produção de conhecimento contrapõe-se, desta forma, às disputas pela fala mais autorizada, por certezas e verdades, pela hierarquização das áreas e, consequentemente, pelo loteamento do poder que reside no ato de escolher as palavras e o modo de descrever a realidade.

Não tem sido fácil, por certo, reunir professores/as e estudantes de áreas de conhecimento diferentes da UEFS. A compartimentação do conhecimento impõe uma compartimentação das relações estabelecidas na comunidade universitária, nada fácil de ser dissolvida. A universidade é um ambiente onde as relações implicam no exercício de poderes que não se explicitam claramente, tanto quanto a ciência não se explicita claramente como poder: ela permanece atada à figura do “indivíduo burguês europeu, simultaneamente inocente e imperial, professando uma benigna visão hegemônica que não instauraria qualquer aparato de dominação” (PRATT, 1999, p. 69)105. Neste contexto, vaidade e prepotência, assim como

insegurança e desconfiança, são elementos que parecem sempre presentes, contribuindo para o afastamento entre as áreas e, mesmo dentro das mesmas áreas, para apartar os/as professores/as e estudantes.

A disciplinaridade da Universidade nos limita e nos instiga ao mesmo tempo. Há alguns anos a IEPS tem repetido uma estratégia que vem funcionado bem – pelo menos no que diz respeito à atração dos estudantes. A cada semestre, geralmente respeitando-se o calendário dos editais de bolsas para iniciação científica e extensão, realizamos o que temos chamado “Seminários para elaboração de planos de trabalho”. Divulgamos a atividade pelas redes sociais e no boca-a-boca. Nela, em um turno, apresentamos os projetos em andamento e a metodologia de pesquisa e extensão do Programa. No outro, discutimos as principais demandas dos grupos e estimulamos os/as participantes a proporem temas de pesquisa e extensão, a partir de suas áreas de estudo, de modo a construirmos coletivamente novos planos de trabalho relacionados aos projetos em andamento. Com esta atividade, temos conseguido um número muito

105 Já desde o século XV o mapeamento cartográfico e os projetos europeus de circunavegação apontavam para a formulação de um “sujeito europeu mundial ou planetário” (PRATT, 1999, p. 64), colocado no topo de um universo totalizador e hierárquico. Inaugurava-se, assim, um projeto de sistematização da natureza, de nomeação privilegiada do mundo, que representava “não apenas um discurso sobre mundos não europeus” [...], mas um discurso urbano sobre mundos não urbanos, um discurso burguês e letrado sobre mundos não letrados e rurais” (PRATT, 1999, p. 72). Tratava-se de projeto de dominação que fazia da ciência sua face palatável, produtor de “uma imagem utópica do indivíduo burguês europeu, simultaneamente inocente e imperial, professando uma benigna visão hegemônica que não instauraria qualquer aparato de dominação” (PRATT, 1999, 69), mas apenas “progresso”, “luz”, “verdade”, “razão” para os que submetia.

representativo de inscrições nos processos seletivos para bolsas de extensão e pesquisa (o programa tem se destacado como um dos maiores destinatários das bolsas de iniciação científica e extensão da UEFS). Por outro lado, os novos bolsistas são, em si, veículos de divulgação do trabalho do Programa, a atuar como atração de novos professores.

Para ilustrar este processo, no quadro abaixo listo os títulos dos planos de trabalho extensão e iniciação científica aprovados106 no período entre 2019 e 2020:

Quadro 2 – Planos de Trabalho de Extensão (EXT) e Iniciação Científica (IC) da IEPS-UEFS – 2019-2020

Projeto Planos de Trabalho

Cantinas Solidárias

III e IV

IC.1 Boas práticas de fabricação e economia popular e solidária: o caso das cantinas solidárias da UEFS

IC.2 Educação Financeira Doméstica Como Forma de Tecnologia Social

IC.3 Economia, racismo e feminismo negro: estratégias de sobrevivências das mulheres negras na historiografia econômica.

IC.4 Trabalho, renda e juventude: como compreender essa relação dentro das perspectivas da Economia Popular e Solidária na comunidade

IC.5 As relações solidárias diante das dinâmicas mercadológicas: sustentabilidade e transformação social no contexto de luta contra-hegemônica das iniciativas de Economia Popular e Solidária.

IC.6 Levantamento e caracterização das sementes crioulas existentes em comunidade atendida pela Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária – IEPS-UEFS

IC.7 Identificação e catalogação de espécies de plantas medicinais presentes nas comunidades atendidas pela Incubadora de Iniciativas de Economia Solidária da Universidade Estadual de Feira de Santana (IEPS/ UEFS).

IC.8 Estudo e caracterização com enfoque etnobotânico dos usos e diversidade de plantas medicinais na comunidade Quilombola Lagoa Grande

EXT.1 A Elaboração de Regras de Convivência no Contexto do Trabalho Associado

EXT.2 O papel da mediação de conflitos para boa convivência do grupo de Economia Popular e Solidária.

EXT.3 A comunidade quilombola da Lagoa Grande e os principais impasses para regularização de seu território tradicional

EXT.4 Desenvolvimento Local, Renda e Autonomia: a força da Mandioca no Circuito Econômico de Lagoa Grande.

Feira de Saberes e Sabores

IC.9As tecnologias sociais e o núcleo de inovações tecnológicas da UEFS: um estudo sobre limites e possibilidades para registro

Projeto Plantas Ornamentais

EXT. 5 Formação de Rede Produtiva na reprodução de plantas do bioma caatinga para ornamentação

Comércio Ambulante em Feira de Santana

IC.10 O Comércio Informal na Cidade de Feira de Santana – Bahia e Transformações na Paisagem Urbana

IC.11 As Ações do Poder Público Municipal e a Configuração do Comércio Popular Fonte: Elaborado pela autora (2020)

A partir do quadro, é possível destacar:

- a tênue fronteira entre as atividades de extensão e de pesquisa, que se retroalimentam de maneira interdependente;

- a pluralidade de temas e áreas do conhecimento que são explorados de forma simultânea, a partir das demandas dos grupos envolvidos em cada projeto;

106 O plano EXT.3 foi aprovado em cadastro de reserva (para efeito de concessão das bolsas à estudante) e não chegou a ser executado. A execução do plano IC.10 não foi concluída por desistência do estudante.

- o modo como os diferentes projetos se comunicam também entre si: o grupo envolvido no Projeto Plantas Ornamentais participa da Feira de Saberes e Sabores; as atividades envolvendo plantas medicinais e mandioca, realizadas na comunidade de Lagoa Grande, impactam sobre a Feira e sobre a própria dinâmica comunitária (muito além, portanto, do Grupo Sabores do Quilombo); o Projeto Comércio Ambulante em Feira de Santana tem uma interface com a Feira de Saberes e Sabores, assim como a aproximação com as comunidades rurais de Feira de Santana (possível em razão dos Projetos Cantinas Solidárias) é fundamental para a compreensão da dinâmica campo-cidade que alimenta o comércio informal das ruas do centro urbano (onde muitos/as ambulantes e camelôs/as também vendem sua produção doméstica – frutas, verduras, derivados da mandioca, plantas medicinais).

Estas correlações tornam-se possíveis tão somente sob a perspectiva da pesquisa participante. Nas reuniões semanais da equipe as diferentes perspectivas se encontram e dialogam. O acervo de dados, informações e impressões produzidas nas atividades dos diferentes planos (entrevistas, questionários, rodas de conversa, atividades formativas, documentos) é coletivizado e escrutinado por olhares provenientes de diferentes áreas do conhecimento, enriquecendo-se a leitura da realidade em toda a sua complexidade.

Apesar dos avanços, no entanto, a interdisciplinaridade continua, por certo, a ser um desafio. A simples reunião física de professores/as e estudantes de diferentes áreas do conhecimento não significa que estamos conseguindo, de fato, atuar de forma interdisciplinar. O paradigma científico da modernidade, com suas raízes no racionalismo cartesiano, é marcado pela disciplinaridade. Toda nossa formação é construída a partir dessa tradição. O conhecimento é produzido sobre cânones epistemológicos rígidos, que têm entre suas funções a de distinguir aquele saber de outros saberes, sob uma racionalidade particular e esquemática, que valoriza a forma, a medida, a compartimentação do conhecimento, de modo a atingir a maior especificidade, profundidade e particularidade possíveis107.

À época das discussões que antecederam a elaboração da Carta de Princípios da IEPS tenho registros de uma longa reunião, realizada em 12.08.2010, que resultaram na seguinte oração: “constitui-se em um programa interdisciplinar de caráter permanente”. O debate girou em torno da opção entre interdisciplinar e transdisciplinar108. Decidimos que, diante dos

107 Edgar Morin sintetiza este modo de apreender a realidade por meio dos princípios da ordem, da separação, da redução e da razão centrada na lógica formal, caracterizado como um processo indutivo-dedutivo-identitário (2000, p. 48-61; 95-103).

108 O tema da interdisciplinaridade integra o panorama de crítica do modelo científico tradicional. A genealogia do termo aponta um momento seminal, o I Seminário Internacional sobre Pluri e Interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice, em setembro de 1970, quando, pela primeira vez, alinharam-se os termos

diferentes graus de utopia que estavam representados pelas duas palavras, “transdisciplinaridade” era muito pretensioso para nossas limitações. Mas apostamos na interdisciplinaridade, conscientes de que a inclusão da palavra representava não uma realidade já alcançada, mas uma proposta a ser construída.

Neste sentido, e também porque desenvolvida perante um Programa de Pós-graduação interdisciplinar, esta pesquisa propõe-se a exercitar a interdisciplinaridade, mesmo que reconhecendo a permanência dos limites disciplinares – tendo em conta seus métodos, conteúdos e linguagens singulares – , mas que podem ser combinados na prática da produção do conhecimento, não simplesmente no sentido de “aplicação” concomitante, mas no de retroalimentação, de reciprocidade, de modo que os referidos limites sejam móveis, tênues, apenas operativos. Penso, assim, que os diferentes métodos e posturas epistemológicas próprios a cada disciplina devem ser considerados e valorizados, na medida que contribuam para enriquecer os olhares possíveis sobre a realidade investigada. Podem igualmente ser menosprezados, quando criam obstáculos à criatividade, à capacidade de dialogar com o conhecimento não científico, à amplitude da observação da realidade e quando se impõem por mero dogma, desrespeitando o “mundo dos seres humanos”, ao qual devem servir.

Parece importante destacar o quão desafiador tem sido, em especial, pensar em interdisciplinaridade no âmbito do Direito. Pois o Direito, este que conhecemos enquanto produto do Estado, é fruto, em si, de um processo autonomizador: foi ao tornar-se uma esfera diferente dos outros âmbitos de sociabilidade (economia, política, moral...) que o Direito dito moderno tornou-se o que hoje ganha este nome. Assim, fazer “ciência do Direito” tornou-se sinônimo de enquadrar os fenômenos sociais em um esquema lógico muito específico, que parte de um sistema abstrato de regras e corresponde a “interpretar” estas regras-normas “jurídicas” de acordo com princípios e regras que se voltam para dentro deste mesmo sistema (é o que se denomina de dogmática jurídica): que leis tratam do assunto? Como essas leis se ajustam no todo de um ordenamento jurídico específico (que é encimado por uma “lei das leis”, isto é, a constituição)? Como os tribunais interpretam estas leis? No máximo, quando se assume uma perspectiva mais pragmática, estas leis são “eficazes” (leia-se: elas são cumpridas? Elas têm se

multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, “a representar um novo horizonte de possibilidades para o tratamento diferenciado de problemas complexos e de busca de superação dos limites do conhecimento centrado, de maneira exclusiva, no paradigma unidisciplinar” (ALVARENGA et al., 2010, p. 32). Entre as diversas contribuições do evento, salienta-se a de Jean Piaget (1973), que escalona, nesta ordem, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade como graus crescentes de interação disciplinar para a compreensão da realidade, indo da colaboração mútua de disciplinas ainda diferentes (multidisciplinaridade) à dissolução prática das barreiras disciplinares, integradas sob um único sistema total (transdisciplinaridade), cuja exequibilidade ainda é utópica.

mostrado capazes de “evitar” ou “pacificar” conflitos humanos?). Ou ainda: que ordenamentos melhor conseguem esta desejada eficácia (partindo-se, assim, para uma análise comparativa de regras produzidas por Estados diferentes)? É isso que, de regra, se espera de uma pesquisa “jurídica”.

Ao pensar em des-disciplinar o Direito – ou indiscipliná-lo? – corre-se sempre o risco, aos olhos do mainstream, da expulsão: o que se estaria a fazer não pode ser chamado de “ciência do Direito”. Sociologia do Direito, “no máximo”, para os menos ortodoxos. Por isso tudo, enfim, quebrar as barreiras da disciplinaridade no Direito é libertá-lo da grade teórica que insiste em descrevê-lo como algo que paira acima da vida – o que implica, como propôs Bernard Edelman, situar-se no “terreno da luta teórica”:

É o próprio terreno que me é imposto por aquilo de que eu falo mesmo que aquilo de que falo (o direito), deva ignorar que esse é o seu terreno. Quero dizer que esse é justamente aquele terreno que o direito circunscreve e que as fronteiras que ele se esforça por traçar são as ‘verdadeiras’ fronteiras da sua ideologia (EDELMAN, 1976, p. 16).

Des-disciplinar o Direito é, talvez, ainda, flertar com a possibilidade de um outro

Direito.

Esta pesquisa é, por fim, também o resultado do desafio da pesquisa coletiva, um aprendizado árduo, pleno de obstáculos109, mas muito prazeroso e rico, que tem nos acompanhando ao longo do tempo. Não apenas do ponto de vista da multiplicação dos recursos empíricos (já que todo um acervo de entrevistas, diários de campo, registros de atividades, produzidos coletiva ou individualmente, refletindo diferentes pontos de vista pessoais e disciplinares, estão a disposição de todos/as), a pesquisa coletiva proporciona um espaço de discussão compartilhado onde se confrontam impressões e interpretações, multilateralizam-se perspectivas individuais, produzem-se os insights de que são feitas as “descobertas”. Estes espaços foram muito importantes para meu trajeto pessoal enquanto pesquisadora e para esta Tese em especial e são um aspecto da metodologia da pesquisa participante ao qual nem sempre

109 As regras limitativas do número de autores/as nos trabalhos científicos (em eventos acadêmicos e publicações) são um bom exemplo deles. Temos lutado na Incubadora por relativizá-las, em prol do reconhecimento da pesquisa coletiva. Nos I e II Congressos Internacionais de Economia Popular e Solidária e Desenvolvimento Local que organizamos (2016 e 2018), esta era a tônica do edital de chamada de trabalhos:

“É sabido que os organismos de avaliação costumam ter entre seus critérios de categorização dos veículos científicos a limitação do número de coautores (é usual o limite de cinco coautores), o que poderia impactar sobre a futura classificação dos Anais do evento. De todo modo, ao mesmo tempo, e sobretudo, acreditamos no trabalho coletivo, e entendemos que a limitação não deixa de ser contraditória com este princípio.

Compreendemos, ainda, que a limitação do número de coautores provavelmente intenta barrar possíveis fraudes (motivadas pela inescapável corrida em torno do “Lattes”...), mas acabamos, por enquanto, preferindo correr o risco e acreditar no bom senso e ética dos participantes. [...]. Enfim, não estabelecemos limites de coautores por trabalho (IEPS-UEFS, 2016).

se concede a importância fundamental que entendo ter: o afeto dos encontros e da partilha é um dos “temperos” principais da produção de uma outra ciência110.