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Na segunda metade do século XX, a América Latina representou um importante campo de teste das primeiras experiências econômicas mais radicalmente neoliberais – como o “regime terrorista de Estado” (ANTUNES, 2011) do Chile de Pinochet, que serviu de laboratório aos economistas da Escola de Chicago114 –, vivenciando uma correspondente e precoce onda de espoliação e pobreza, que se espalhou pelo continente (citem-se nomes como os de Fernando Collor no Brasil, Carlos Salinas de Gortari no México, Carlos Menem na Argentina e Carlos Andres Pérez, na Venezuela). A crise do capital exige a abertura de novas fronteiras de acumulação, traduzida não só nos novos “cercamentos” sobre as riquezas naturais ainda preservadas da lógica capitalista de exploração (no que a América Latina é particularmente rica), mas igualmente sobre os corpos e subjetividades da classe trabalhadora. É o que Virgínia Fontes (2012) associa à expansão da base social do capital: uma inédita expansão da disponibilidade da força de trabalho ao capital, associada a expropriações primárias e secundárias, traduzidas no desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas, dilapidação do patrimônio público pela privatização crescente e apropriação privada de bens comunais (terras, águas, subsolo, espaço, ar, conhecimento...).

As violentas investidas neoliberais tiveram como resposta uma onda de levantes populares, reativos à agressiva onda de despojos múltiples115 e reveladores da potência política

113 Em sua tese sobre o “mundo da Economia Solidária”, Eugênia Motta se dá conta do especial desafio que representa definir algo que, ao mesmo tempo, “é considerada como uma forma concreta de prática econômica e também um projeto de transformação social e por isso uma causa” (2010, p. 7).

114 No que Naomi Klein descreve como o “nascimento sangrento” da “doutrina de choque” da atual fase do capitalismo (2007).

115 A categoria formulada por Mina Navarro (que pode ser traduzida como “expropriações múltiplas”), tenta abarcar as formas variadas que adota o capital em um mesmo processo para expropriar as diversas formas que assume o comum”, incluindo não só “a separação forçada e violenta das pessoas de seus meios de subsistência”, mas também “a reiteração da acumulação originária e a consubstancial separação das pessoas de sua capacidade de fazer, sob as regras naturalizadas do mercado”, assim como, “a expropriação do político”, isto é, da “da capacidade de autodeterminação social” (NAVARRO, 2002, p. 151) (“las formas variadas que adopta el capital

popular de movimentos de autonomia e reconhecimento (indígena, negro, quilombola, de mulheres, de luta pela terra)116. O caracazo venezuelano (em 1989), o levante Zapatista (em 1994) e a Guerra da Água de Cochabamba (em 2000) são apenas os exemplos mais conhecidos de dezenas de levantes e mobilizações populares que tomaram o continente, contribuindo, de forma direta ou indireta, para a queda de diversos governantes sul-americanos (ZIBECHI; MACHADO, 2017)117.

É nesse contexto, no influxo da potência das lutas populares para desvelar a crise ética e ambiental do mundo capitalista e a necessidade de descentramento do modelo moderno- ocidental de progresso e desenvolvimento, que vão se formulando novas leituras do mundo das lutas e do trabalho populares pelas ciências sociais e humanas.

Desse conjunto de perspectivas entendo fazer parte a que no Brasil e na América Latina foi predominantemente chamada de Economia Solidária (sem que chegue a haver uma síntese acabada ou unanimidade terminológica). Hudson Silva dos Santos, companheiro da IEPS- UEFS, cataloga em sua dissertação ao menos 14 outras expressões participantes do mesmo universo semântico: “Economia Solidária, Economia Popular (e) Solidária, Empreendedorismo Social, Economia da Dádiva, Socialismo Autogestionário, Economia Criativa, Economia Plural, Autogestão, Economia do Trabalho, Terceiro Setor, Cooperativismo Popular, Socioeconomia (Solidária), Economia dos Setores Populares, Economia de Comunhão etc.” (2017, p. 28).

Segundo Ethan Miller (2010), um dos registros mais antigos da expressão “Economia Solidária” data já de 1937, “quando Felipe Alaiz advogou a construção de uma economia solidária entre coletivos de trabalho em áreas urbanas e rurais durante a Guerra Civil Espanhola, em uma publicação da Confederación Nacional del Trabajo-CNT e da Federação Anarquista Ibérica-FAI (1937). Já o uso contemporâneo do termo parece ter emergido simultaneamente

en um mismo proceso para expropiar las diversas formas que adquiere lo común” [...] “la separación forzada y violenta de las personas de sus medios de subsistencia” [...] “la reiteración de la acumulación originaria y la consustancial separación de las personas de du capacidad de hacer bajo las reglas naturalizadas del mercado” […] a “el despojo de lo político” […] “capacidad de autoderminación social”).

116 Um panorama alargado desses movimentos é proporcionado pelos três volumes de “Movimiento indígena em

América Latina”, organizados por Raquel Gutiérrez e Fabiola Escárzaga, entre outros autores/as (2005) (2006) (2014).

117 “[...] três presidentes derrotados no Equador (Abdalá Bucaram em 1997, Jamil Mahuad em 2000 e Lúcio Gutiérrez em 2005); dois na Argentina (Fernando de la Rúa e Adolfo Rodríguez Saá em 2001); um no Paraguai (Raul Cubas em 1999); um no Peru (Alberto Fujmori em 2000); um no Brasil (Fernando Collor de Mello em 1993) e um na Venezuela (Carlos Andrés Pérez em 1993)” (ZIBECHI; MACHADO, 2017, p. 12).

nos anos 1980 na França e na América do Sul – especialmente na Colômbia118 e no Chile, neste último com os trabalhos de Luis Razeto, que se referia a um “setor” transversal da economia que tem em comum uma “racionalidade econômica” de cooperação e solidariedade (1984).

A partir da Europa (especialmente da França119), o conceito estabelece relação – mas não se confunde – com o conceito de “economia social”, que remonta ao século XIX e nomeia uma difusa tradição composta de elementos como a solidariedade tradicional das corporações de ofício, experiências comunais do meio rural e confrarias religiosas, que se contrapunha como alternativa ao capitalismo industrial e ao trabalho assalariado que já ali mostrava seus efeitos perversos. André Gueslin (1998), em uma detalhado apanhado histórico da categoria na França, relaciona-a em especial à tradição do cooperativismo e do socialismo associacionista, que agrega, entre outras, as contribuições de Saint-Simon (1760-1825), Robert Owen (1771-1858), Charles Fourier (1772-1837), do mutualismo proudhoniano (1809-1865) e do Cristianismo Social (é de 1830 o Nouveau Traité d’économie sociale de Charles Dunoyer e em, 1854, Le Play funda a Société des Pratiques international e des études d’économie sociale). Associações de produtores individuais, cooperativas de produção, de crédito e de consumo, sociedades de socorro mútuo foram formas pensadas e experimentadas por trabalhadores e intelectuais tanto para amenizar a pobreza e exploração crescente dos trabalhadores – que, subsumidos ao capital, perdiam a possibilidade de reprodução de sua existência por outras formas que não assalariamento – quanto para, já aí, imaginar formas de suplantar o modo de produção que se consolidava (GUESLIN, 1998).

118 Yvon Poirier faz menção ao Manuel de Proyectos para uma economía solidaria, de 1981, de Jorge Schoster, “aparentemente associado ao movimento cooperativo em Colômbia e funcionário de uma agência governamental à época” (2014, tradução nossa).

119 Sendo evidente a circulação das ideias entre França e a Economia Solidária no Brasil, sobretudo a partir de diálogos de cientistas sociais brasileiros (a exemplo de Antonio David Cattani, Luiz Inácio Gaiger, Genauto França Filho) com o sociólogo e economista Jean-Louis Laville. A menção a Laville, por sua vez, ligado ao Karl Polanyi Institute e ao M.A.U.S.S.- Mouvement Anti-utilitariste dans le Sciences Sociaes, enseja pontuar também a influência sobre a produção teórica em torno da Economia Solidária da antropologia econômica substantivista de Polanyi e da economia da dádiva do sociólogo francês Marcel Mauss, ele próprio à sua época envolvido politicamente com a luta pelo cooperativismo “rouges” (vermelho, em oposição ao “jaune”, amarelo), no que considerava um “socialisme pratique” (socialismo prático) (1997) .

É revelador, neste ponto, o que relata o professor Paul Singer, na entrevista concedida a Isabel Loureiro:

“Ao entrar nessa que é minha principal atividade intelectual e política nos últimos doze anos – foi em 1996, vai fazer doze anos agora em julho – aparece Karl Polanyi. Eu sabia que ele existia, sabia do livro dele, mas ficou naquela lista das coisas que não deu tempo para ler. Acontece que Polanyi é o grande inspirador da economia solidária, vamos dizer, não-marxista; os seus principais ressuscitadores são franceses, Jean-Louis Laville e Alain Caillé, da revista MAUSS. Enfim, essa escola se baseia muito em Polanyi e foi por causa dela que eu passei a lê- lo também. Ele é muito interessante. É uma visão diferente de Marx, evidentemente, mas muito crítica do capitalismo liberal, do capitalismo que ressurge com enorme força agora, no neoliberalismo. Polanyi torna-se inclusive atualíssimo hoje em dia em função do que aconteceu a partir dos anos 1980” (2009, p. 22).

Vale pontuar que a leitura das lutas dos trabalhadores europeus no século XIX é marcada pelas divergências que dividiram socialistas científicos e utópicos, reformistas e revolucionários, anarquistas e comunistas120, assim como produziram debates em torno do papel que o cooperativismo poderia assumir nas lutas contra o capitalismo121. Elas fazem parte do complexo percurso da formação da classe trabalhadora, que, no rastro de E. P. Thompson, não pode ser lido com maniqueísmos, mas atentando para a complexidade que caracteriza a produção histórica das ideias. Retomando a história de Roberto Owen, Thompson acentua como, ao mesmo tempo em que as propostas owenistas deixam entrever características como paternalismo, um sentido de “adestramento” utilitarista dos operários, correspondente a um planejamento da sociedade ao estilo de um “gigantesco panóptico industrial”, também é certo que serviram de amparo a diferentes lutas de contestação ao capital, que aconteciam a despeito e para além do owenismo:

Muito longe de ter uma perspectiva retrógrada, o owenismo foi a primeira das grandes doutrinas sociais a prender a imaginação das massas naquele período, que começava com a aceitação dos poderes produtivos ampliados da energia a vapor e da fábrica. O que estava em questão não era tanto a máquina, e sim a motivação do lucro; não as dimensões da empresa industrial, mas o controle do capital social por detrás. Os pequenos mestres-de-obras e operários de

120 Marcello Musto, recuperando a história da Internacional, identifica na sua formação inicial, entre 1864 e 1866, uma pluralidade de organizações operárias. Seu núcleo central seria o sindicalismo inglês – “seus dirigentes, quase todos reformistas, interessavam-se sobretudo por questões de caráter econômico”, como a melhoria das condições dos trabalhadores, “sem, contudo, colocar o capitalismo em discussão” (2014, p. 21). Outra frente significativa, os mutualistas, de origem francófona (França, Bélgica, Suíça francesa), girava em torno da influência de Proudhon (que faleceria já em 1865, deixando seguidores como Tolain e Ernest Édouard Fribourg) e se opunha ao envolvimento político dos trabalhadores, defendendo o cooperativismo sob uma base federalista, com ênfase no acesso igualitário ao crédito. Um terceiro grupo eram os comunistas, com Marx na dianteira – “anticapitalistas, [...] se opunham ao sistema de produção existente, reivindicando a necessidade da ação política para a sua derrubada” (2014, p. 22). Além destes grupos mais claramente definidos, ainda outros integrantes isolados tornar “ainda mais complexo o equilíbrio de forças”, a exemplos de “vários grupos de trabalhadores franceses, belgas, e suíços, que aderiram à Internacional trazendo consigo as teorias mais diversas e confusas, entre as quais algumas inspiradas no utopismo” (2014, p. 22). Ao longo dos anos, as divisões vivenciaram muitos embates e também presenciaram o talento político de Marx, de quem foi, segundo Musto, “a tarefa política de fazer conviver todos esses ânimos na mesma organização e, além disso, com um programa tão distante dos princípios de cada um deles” (2014, p. 23). É a este talento que Musto também atribui em parte a derrota dos mutualistas (2014, pp. 38-43) e do anarquismo autonomista de Bakunin no seio da Internacional.

Musto esclarece que “embora Bakunin tivesse em comum com Proudhon uma oposição intransigente a qualquer forma de autoridade política, especialmente na forma direta do Estado”, os mutualistas “exercitavam seu abstencionismo de modo passivo, renunciando de fato a toda atividade política”, enquanto os autonomistas “eram defensores de uma certa política, de revolução social, da destruição da política burguesa e do Estado” (2014, p. 72). Ao Estado proletário da fase de transição para o comunismo, defendido por Marx, Bakunin contrapunha a abolição imediata de toda a figura estatal (adiantando-se em prever, aliás, a sombra do burocratismo e autoritarismo que se concretizariam mais tarde nas chamadas experiências do socialismo real).

121 Remeto, neste ponto, por exemplo, às divergências de Rosa de Luxemburgo às estratégias do Partido Social- Democrata alemão, em sua resposta a Eduard Bernstein, eternizadas em seu Reforma ou Revolução? (2015); ou às discussões travadas no âmbito da Associação Internacional dos Trabalhadores, cuja mensagem inaugural, escrita por Marx, dialeticamente louva o cooperativismo como “vitória [...] da economia política do trabalho sobre a economia política da propriedade”, mas coloca em questão o seu papel transformador sem a correlata luta política (2014, p. 97-98).

construção, que se indignavam com o repasse do controle e da maior parcela dos lucros para os construtores e empreiteiros, não julgava que a solução fosse uma multidão de pequenos empresários. Antes queriam que a cooperação das especialidades na construção civil se refletisse num controle social cooperativo (2002, p. 408).

A história das divergências entre “socialistas utópicos” e “científicos” pode ser ilustrada em especial pela conflituosa relação entre Marx e Pierre-Joseph Proudhon. Após um período de aproximação inicial e de influência mútua122, o desentendimento entre eles inicia-se com a recusa de Proudhon ao convite de Marx para integrar uma rede de correspondência comunista (a carta é de 17 de maio de 1846) (MARX, 2008, p. 43-44). A este episódio segue-se a publicação, em outubro de 1846, do Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da

Miséria, de Proudhon, e a ácida resposta de Marx, em julho de 1847, com sua Miséria da Filosofia – cuja inversão do título já antecipa a dura e irônica crítica. Em 1848, Marx e Engels,

em seu Manifesto Comunista, ensaiam a conhecida divisão entre socialistas “utópicos” e “científicos”123, que também reflete a acirrada batalha política no seio do próprio movimento

operário e nas lutas anticapitalistas. Ancorando o Comunismo à centralidade do projeto revolucionário “contra a ordem social e política existentes”, contrapõem-no ao “socialismo e

comunismo crítico-utópicos” (como denominam “os sistemas socialistas e comunistas

propriamente ditos, os de Saint-Simon, Fourier, Owen etc.”, que “aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia” [2007a, p. 66]), ao “socialismo reacionário” (em que reúnem os socialismos feudal, pequeno-burguês e a “ciência alemã do socialismo”) e, finalmente, ao “socialismo conservador ou burguês”, do que escolhem como exemplo a

Filosofia da Miséria de Proudhon, ao lado do que:

[...] enfileiram-se os economistas, os filantropos, os humanitários, os que se ocupam em melhorar a sorte da classe operária, os organizadores de beneficências, os protetores dos animais, os fundadores das sociedades anti- alcoólicas, enfim os reformadores de gabinete de toda categoria. Esse socialismo burguês chegou a ser elaborado em sistemas completos (MARX; ENGELS, 2007a, p. 65).

122 Do que são mais do que um mero indício as elogiosas palavras de Marx na Sagrada Família (de 1945, escrito com Engels), onde se diz ser a obra de Proudhon “um manifesto científico do proletariado francês” (2011, p. 55): “Proudhon, de sua parte, submete a base da economia política, a propriedade privada, a uma análise crítica e, seja dito, à primeira análise decisiva de verdade, implacável e ao mesmo tempo científica. Esse é, aliás, o grande progresso científico feito por Proudhon, um processo que revolucionou a economia política e tornou possível uma verdade ciências da economia política. O escrito de Proudhon “Qu’est-ce que la proprieté” tem o mesmo significado para a economia política moderna que o escrito de Sieyès “Qu’est-ce que le tiers État?” tem para a política moderna” (MARX; ENGELS, 2011, pp. 43-44).

123 Que receberia sua versão acabada com Engels, no seu Anti-Dühring de 1878, e, de forma ainda mais específica, em “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, de 1880 (edição especial de três capítulos do Anti-Dühring, organizados por Paul Lafargue para uma edição em francês, com grande sucesso editorial) (HARVEY, 2013).

A ideia que marca a Miséria da filosofia (MARX, 2008), assim como a crítica à proposta do proudhoniano Alfred Darimon a respeito do sistema bancário, presente no “Capítulo do Dinheiro” do Grundrisse (2011a), é a da disputa do caminho para a luta contra um inimigo comum, o capitalismo. Aos olhos de Marx, faltaria a Proudhon a compreensão da historicidade das categorias econômicas que constituem o cerne do capitalismo (como a mercadoria e o valor de troca), compreensão que revelaria a impossibilidade de um projeto que as mantivesse operantes, ainda que parcialmente124. Para Marx, um projeto de fato radical de transformação da sociedade capitalista dependia necessariamente de uma revolução política – ideia com que, aliás, arremata o seu Miséria da Filosofia:

É apenas em uma ordem de coisas em que não haverá mais classes e antagonismo de classes que as revoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas. Até lá na véspera de cada remanejamento geral da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre: ‘O combate ou a morte: a luta sanguinária ou nada. É assim que a questão está invencivelmente posta’ (MARX, 2008, p. 192)125.

Se a dura divergência ficou marcada na história, e foi seguida pela disputa entre Anarquistas e Marxistas no controle do movimento operário ao longo das décadas seguintes, miradas mais distanciadas têm permitido perceber também as aproximações e influências mútuas entre Marx e Proudhon:

Pode-se dizer [...] que a Comuna havia espontaneamente reencontrado os princípios do proudhonismo: comunalismo, federalismo, autogestão, a tal ponto que Marx, aprovando em A Guerra Civil na França (1871) essa organização e percebendo o que tinha ela de necessário aos olhos do movimento operário, estava de fato de acordo com Proudhon. Isso comprova a ambiguidade que reinava nas relações entre o pensamento de Marx, até mesmo entre o marxismo e o anarquismo. Bebendo de uma fonte comum, a crítica do capitalismo e a denúncia da exploração do homem pelo homem, pode-se bem afirmar, igualmente com Malatesta, que ‘toda literatura anarquista do século XIX está impregnada de marxismo’, e mostrar a parte essencial desempenhada por Proudhon no pensamento de Marx (KESSLER, 2008, p. 26)126.

124 Marx, assim, “procura mostrar que, sob a aparência de uma proposta socialista, o que existe de fato é uma teoria positiva das relações sociais postas pelo capital. Em lugar de transformação radical da realidade, nas obras de inspiração proudhoniana o que se tem são propostas para reformar as estruturas existentes” (DUAYER, 2011, p. 19).

125 A frase final é do escritor George Sand, retirada do romance Jean Ziska: episódio da guerra dos hussitas, de 1843.

126 No mesmo sentido, Pierre Dardot e Christian Laval, na obra que produzem conjuntamente em torno das potencialidades políticas do conceito da Comum para a construção de um “além do capitalismo” (2017, p. 11), atribuem a Proudhon o lugar de “um dos primeiros teóricos da instituição do comum”, afirmando que, “sua influência sobre o pensamento de Marx e sua marca no socialismo e no sindicalismo foram muito subestimadas. [...] Após a morte de Marx, a hegemonia do marxismo no movimento operário teve grande peso no desaparecimento de Proudhon da história socialista, a ponto de se deixar de reconhecer o papel que suas ideias tiveram na Comuna ou no sindicalismo revolucionário, ao menos até 1914” (2017, p. 393).

Para David Harvey, a economia política clássica, a filosofia (dos gregos à tradição crítico-filosófica alemã) e o socialismo utópico conformam as “três grandes estruturas conceituais convergentes n’O Capital” (2013, n. p.). Para o historiador inglês, “Marx estava bem familiarizado com essa tradição, ou mesmo imerso nela, especialmente em Paris, antes de ser expulso em 1844, e acredito que extraiu dela mais do que admitia” (2013, n. p.). É nas poucas vezes que, n’O Capital, Marx se volta para a construção futura de uma sociedade comunista (já que, a sua preocupação central na obra é a compreensão científica do capitalismo), que parece ficar mais evidente, para Harvey, a influência dos socialistas utópicos em seu pensamento.

Por isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção” (151). Podemos até imaginar as relações sociais organizadas como “uma associação de homens livres”, isto é, um mundo socialista no qual “as relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos do trabalho permanecem [...] transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição” (153). Ao falar da ideia de associação, Marx ecoa muito do pensamento socialista utópico francês dos anos 1830 e 1840 (em particular Proudhon, embora Marx não reconheça isso). Sua esperança é que possamos ir além do fetichismo das mercadorias e tentar estabelecer, por meio de formas associativas, um modo de relação diferente. Se isso é viável ou não é uma questão fundamental que qualquer leitor de Marx tem de considerar; mas esse é um dos raros momentos n’O capital em que temos um vislumbre da visão de Marx de um futuro socialista (2013, n. p.). 127

Estamos diante certamente, no entanto, de narrativas e lutas que são inscritas na história