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1.2 PESQUISA PARTICIPANTE? O QUE É? COMO FAZEMOS?

1.2.1 A pesquisa participante em ação nas nossas práticas

1.2.2.2 Comunicação e sensibilidade

Outro aprendizado que se renova a cada dia diz respeito ao cuidado com o modo como nos comunicamos, atentando para o fato de que isto acontece não apenas com palavras: o tom com o qual falamos, o cuidado com a repartição dos tempos de fala e de escuta, a parafernália

94 Vejo no problema do planejamento uma analogia possível com a crítica que Marx fazia à prematuridade do Programa de Gotha (em carta de Marx a Bracke, que introduz o manuscrito da Crítica), cuja elaboração, sob sua ótica, deveria ter sido postergada “até que tal programa possa ser preparado por uma longa atividade comum” – pois, afinal, “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas”. Tanto lá quanto cá se está diante de uma tarefa rodeada de “inimigos”, onde “os programas de princípios [...] acabam servindo para “fornecer ao mundo [dos inimigos] as balizas que servirão para medir o avanço do movimento” (2012, p. 20-21).

tecnológica que nos acompanha, o modo como nos vestimos, o espaço escolhido para as atividades (universidade/comunidades), a forma como ocupamos e nos movimentamos (ou não) pelo espaço, a forma como propomos a disposição física das pessoas e móveis durante as atividades (dispor cadeiras em círculo, dispensar as cadeiras e usar esteiras no chão, reunir-se sob a sombra de uma árvore ou numa varanda), o cuidado com a alimentação, com a duração das atividades – nada disso é um mero detalhe mas, ao contrário, são preocupações centrais no processo de aproximação e conquista da confiança que torna o diálogo possível, a despeito da

suspeita. Também aqui não há uma fórmula: muitas vezes, por exemplo, as trabalhadoras dos

grupos das cantinas pedem que a reunião aconteça na Incubadora, onde dispomos de mesas e cadeiras (especialmente se é necessário fazer anotações, usar o projetor etc.); em outras, as atividades acontecem no quintal de uma das trabalhadoras, com direito a milho assado e suco de frutas “colhidas do pé”.

É importante sopesar com cuidado, por exemplo, o uso do gravador ou se vale a pena separar pessoas por uma folha de questionário. Mais uma vez, não se pode ter uma régua única para enfrentar tais questões: a resposta para cada caso deve, sim, ser buscada aguçando-se a

sensibilidade para o detalhe, olhares, o não-dito, as dinâmicas relacionais dos grupos. Em

algumas situações vale a pena abrir mão do gravador, fazendo notas rápidas que serão rememoradas e registradas no final do dia. “Hoje quem vai fazer o ‘registro fotográfico’ sou eu” (Naiara Almeida de Souza, do Grupo Sabores do Quilombo, em reunião realizada em 09.11.2019)95: em outras, a naturalidade com estes recursos deriva da aproximação afetuosa entre as pessoas e, a partir delas, com as técnicas de registro e coleta de informações da academia, que se tornam comuns e justificáveis para todos/as envolvidos/as.

Nas fotografias da Figura 3 estão reunidas diferentes disposições espaciais de momentos formativos da IEPS. Os encontros podem se dar na comunidade (como no caso da fotografia da primeira fileira, à esquerda e a segunda, de baixo para cima, ambas realizadas na Comunidade de Lagoa Grande96) ou no salão da Incubadora (que pode ser adaptado com mesas, ou com as cadeiras em círculo, a depender da necessidade, como se vê na segunda fotografia de cima para

95 Como toda escolha, ela tem seu preço: é muito comum que não se disponha da transcrição de falas mais longa ou que tenha de reproduzir falas anotadas em meu caderno de campo sem a indicação precisa da sua autoria. 96 Realizadas em 9.11.2018 e 21.02.2020, respectivamente, ambas com o grupo Sabores do Quilombo.

baixo, à direita e na que está na base da imagem97). Na fotografia da fileira superior, à esquerda, uma atividade realizada no espaço central da Feira de Saberes e Sabores98.

Figura 3 – Atividades da IEPS em suas diferentes configurações espaciais

Fonte: Acervo IEPS-UEFS (2017) (2018) (2020)

97 Realizadas em 21.12.2017 e 07.12.2017, respectivamente. Na primeira, uma reunião com o grupo Sabores do Quilombo, em que discutíamos suas regras de convivência. Na segunda, uma reunião ordinária do coletivo de feirantes da Feira de Saberes e Sabores.

98 Realizada em 07.12.2017. Tratava-se de um encontro do GEPOSDEL – Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre Economia Popular e Solidária e Desenvolvimento Local Solidário, em que se discutiu o tema “o que é fascismo”.

Aguçar a sensibilidade significa, também, explorar os limites entre razão científica e

outros modos de captar as mensagens dos ambientes compartilhados na pesquisa, que chegam por diferentes linguagens – a arte, os estímulos que podem ser percebidos pelo olhar, mas também pelo tato, pelo olfato, pelos sentimentos, pelo paladar. É do que nos alerta do historiador italiano Carlos Ginzburg (e seu método indiciário), quando atenta para a importância da mobilização de esferas não racionais do/a pesquisador/a, para a sensibilidade de identificar sinais, pistas, indícios que se escondem nas frestas dos documentos, da arte, da comida, das imagens, nas micro-histórias individuais e atos-falhos, que podem se converter

[...] num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social como a do capitalismo maduro.

Se as pretensões de conhecimento sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la (GINZBURG, 1989, p. 177).

A inspiração neste mesmo sentido vem das apostas metodológicas do Observatório Fundiário Fluminense da Universidade Federal Fluminense – OBFF-UFF (do qual passei a fazer parte com o meu ingresso no PPGSD-UFF), sintetizadas pela Profa. Ana Maria Mota Ribeiro como Sociologia Viva, uma “Sociologia desde abajo” (MOTTA RIBEIRO, 2019). A partir do materialismo histórico dialético, de sua atualização pelos Historiadores Marxistas Britânicos (sobre tudo E. P. Thompson), da rica produção da sociologia crítica brasileira e latino-americana e do aprendizado coletivo proporcionado pelas pesquisas que têm seu olhar sobre o “fazer da classe em luta”, a Sociologia Viva do OBFF chama atenção para o fato de que “as novas formas de resistência na prática da luta de enfrentamento ou na narrativa a contrapelo entre os agentes em contradição” (MOTTA RIBEIRO, 2019, p. 21) materializam-se sob as mais diferentes linguagens, cuja captura exige uma específica sensibilidade dos/as pesquisadores, favorece-se pela investigação coletiva, pela criatividade na busca de ferramentas de observação (que se vale do “uso consciente dos cinco sentidos na relação entre observador e observado” (MOTTA RIBEIRO, 2019, p. 2199) e pelo trabalho empírico interdisciplinar, conjunto encimado pelas “chaves éticas” do respeito e, sobretudo, do afeto:

99 Essa atenção multissensorial ajuda a “superar o fato de que os segmentos populares dispõem de pequenas e raras formas de registro, quando a criatividade deve se impor e todas as linguagens possíveis do plano simbólico devem ser buscadas e planejadas para utilização, tais como cartas pessoais, músicas, lendas, mitos, imagens, desenhos, documentos, notícias desde o movimento social ou da própria mídia oficial (hoje valeria incluir as redes sociais que facilitam inclusive a comunicação entre os de menor instrução, que têm a seu favor as mensagens de voz), novelas e programas de TV e rádio (sobretudo dos chamados programas “populares” e mesmo das mídias

[...] importância do respeito e reconhecimento qualificado a ser oferecido pelos pesquisadores ao chamado “lugar de fala” de cada agente social investigado e de cada falante ouvido e registrado. E o afeto, consequente e comprometido, vai aparecer então como necessário e parte do empreendimento de conhecer o mundo do outro pela ciência a que nos propomos, e por isso não poderá ser visto como uma escolha eventual quando se pretende entrar de modo tão radical e sem cerimônia na vida de grupos sociais, em sua história, em seus sentimentos, suas dores e derrotas e, enfim, em sua energia para não desistir de lutar (MOTTA RIBEIRO, 2019, p. 24)100. Considerando que a pesquisa se volta para o contexto de pessoas subalternizadas, onde a realidade é ainda mais “opaca”, porque esquecida pelos relatos da história dos “vencedores”, está-se em busca de um contradiscurso (CHAUÍ, 1981), do contrapelo da história de que falava Walter Benjamin (2005, p. 70), a fim de entender como o discurso jurídico burguês se irradia sobre a vida dessas pessoas, como elas resistem a ele, como suas lutas são minadas por ele ou incluem recursos para dele se desviar.

É seguindo no mesmo sentido que, ainda, destaco a importância que a festa e a arte assumem neste processo, não só no sentido de horizontalizar as diferenças entre os de “dentro” e os de “fora”, fissurando as barreiras que nos afastam, mas em especial como ricos espaços pedagógicos coletivos em que a pretensão de coexistência do ensinar e do aprender pode, de fato, se tornar realidade. A comemoração de um aniversário, um almoço coletivo, o samba de roda, a dança, a poesia101 são todos momentos que representam uma cisão da rotina, que nos tiram dos esquemas corporais e sensoriais que nos moldam a partir dos papeis sociais que desempenhamos, abrindo espaço para as fissuras, para o novo, para a mudança – o “tempo extraordinário”, de que fala Bolívar Echeverría, que se põe em tensão com o tempo cotidiano para dar sentido à própria historicidade humana (2010)102. As experiências da Incubadora na

religiosas) e até fofocas, enfim. Todo planejamento prévio da pesquisa, no entanto, não exclui a possibilidade da emergência de informação em momentos relacionais nada típicos, como, por exemplo, uma possível descarga motivacional, reveladora, que pode acontecer inesperadamente durante uma audiência pública, por exemplo” (MOTTA RIBEIRO, 2019, p. 22).

100 Sobre o OBFF e a Sociologia Viva, ver ainda Ana Maria Motta Ribeiro, Hugo Belarmino de Morais, Maria José Andrade de Souza e Emmanuel Oguri Freitas (2018).

101 “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir esta distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens” (BARTHES, 2013, p. 19).

102 “A historicidade deve dar sentido à temporalidade dentro do que poderíamos chamar uma tensão bipolar. O ser humano entende sua própria existência como um transcorrer que se encontra, tensionado como a corda de um arco, entre o que seria o tempo cotidiano e o que seria o tempo dos momentos extraordinários; entre o tempo de uma existência conservadora, que enfrenta as alterações introduzidas pelo fluxo temporal mediante uma ação que restaura e repete as formas que a têm feito possível, e o tempo de uma existência inovadora, que enfrenta essas alterações mediante a invenção de novas formas para si mesma, que vêm a substituir as tradicionais. Se não houvesse essa polaridade, contraposição e tensão, não existiria a temporalidade humana. O tempo extraordinário, seja como o tempo do momento da catástrofe ou o da plenitude, é o tempo em que a identidade ou a existência

organização e festejo coletivo do Novembro Negro da Lagoa Grande têm sido para nós, por exemplo, um momento significativo neste processo de conquista do diálogo efetivo, da construção de pontes para a compreensão mútua. Têm sido também um espaço privilegiado de avivamento da identidade quilombola e do sentido de comunidade: os dois dias anuais do evento, a meu ver, reverberam seus efeitos no tempo, amplificando ideias, atividades e ânimo para a luta103.

Toda essa dinâmica, que se pretende contínua e viva, exige, por certo, uma ética do envolvimento afetivo e político dos/as pesquisadores, que se relaciona com o próprio objetivo transformador da pesquisa participante: ele resta subtendido, sempre, no horizonte do que se faz e se planeja, ela explica a própria vontade de fazer, o compromisso com o fluxo circular do conhecimento que se produz e se aprende, a luta para superar as limitações e exigências que este tipo de pesquisa apresenta a todos/as nós.