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Alguns aspectos materiais do Inquérito e a questão das propagandas

2. O SACY-PERÊRÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO (1918)

2.3. Alguns aspectos materiais do Inquérito e a questão das propagandas

Materialmente falando, a versão fac-similar, publicada em 1998, de O Sacy-Perêrê: resultado de um inquérito (1918) é um volume grande, de 291 páginas de um papel espesso, de capa vermelho-escura, com o desenho de um saci e uma paisagem ao fundo.

O desenho, de J. W. Rodrigues, retrata o saci bem preto, lustroso, com dentes pontiagudos, um porrete na mão direita e um cachimbo fumegante na esquerda. Traz ainda uma carapuça vermelha, da mesma cor da capa do livro, e um par de chifres, um voltado para cima, e o outro encurvado para baixo, fazendo um meio caracol, como de certa raça de carneiros. Curiosamente, apesar do aspecto ameaçador, o duende tem olhos contemplativos, absortos, não ameaçadores, se bem que vermelhos. Vermelhos também são os lábios do saci, bem como suas duas cavidades nasais. Está envolto em folhas e vento, num quase redemoinho. O corpo, os braços e a perna única são humanos. Tem o pé com dedos muito abertos e pontiagudos, lembrando o pé de um animal. Ao fundo, alguns morros tracejados, dando a impressão de estarem arados e prontos para o plantio, e, encimando estes morros, ao que parece, uma palmeira e um coqueiro, símbolos da flora brasileira.

Acerca do saci de Rodrigues, observamos apenas que o artista retratou o mito com algumas características que não são tão mencionadas ao longo dos relatos. Ou seja, o artista privilegiou alguns aspectos do saci que não são recorrentes nos depoimentos, tais como o par de chifres com que Rodrigues orna o duende. Só há uma referência no Inquérito ao saci ter chifres, ainda assim, são chifres compridos, e não encurvados. O porrete que o saci traz na mão também não é ponto pacífico entre os depoentes, sendo mencionado poucas vezes. O saci trazendo um cachimbo aceso na mão esquerda é mencionado apenas uma vez no

Inquérito, se bem que o hábito de fumar mantido pelo duende seja mencionado com

freqüência. Assim, a influência e/ou interferência da iniciativa de Lobato sobre a concepção que, a partir do Inquérito, se teria sobre o mito do saci, começa pela capa, que retrata um saci um tanto diverso daquele que os depoimentos contidos na obra revelariam.

por Voltolino e com o argumento, muito provavelmente, de Lobato. O primeiro informe vende as máquinas de escrever Remington.

O segundo anúncio vende os chocolates Lacta:

Aqui o diabinho se apresenta mais benfazejo, declama um versinho e parece estar agradando à fina senhora. Acerca deste anúncio, observa Blonski:

Para fazer a propaganda do Chocolate Lacta o Saci vira poeta, declarando uma quadra com versos heptassílabos e rima perfeita alternada, no esquema abab. Note-se que este tipo de composição poética é muito utilizado pelo povo, sendo de fácil aceitação e memorização, de natureza concisa, e do agrado popular. O convite ao consumo do chocolate destaca, ainda, a presença da mulata, não apenas um dos produtos da miscigenação das raças, mas de cor semelhante à do chocolate (BLONSKI, 2003, p. 59).

Contudo, escapou à análise da pesquisadora que o desenho da mulher, que deixa o colo à mostra, de maneira insinuante, não está de acordo com os versos. A mulher desenhada por Voltolino, além da cor branca, tem outros traços característicos dos brancos, como lábios finos, nariz afilado e cabelos lisos. Enfim, é uma mulher branca e não a mulata da quadrinha.

O terceiro produto a ser anunciado são os cigarros Castellões:

Em uma época em que não conheciam todos os males ocasionados pelo fumo, esta propaganda parece se adiantar no tempo e fazer uma campanha contra o tabagismo. A cena

é toda envolta em fumaça, causando uma sensação claustrofóbica. Além disso, o saci, de cima das muralhas de um castelo – uma referência à marca dos cigarros anunciados – puxa violentamente os cabelos arrepiados de um fumante, dando a impressão de que lhe pretende arrebatar o cigarro: “Por estes abandono eu o meu pitinho!”. Os leitores do

Inquérito devem ter pensado duas vezes antes de se resolverem a fumar os cigarros

Por fim, encerrando os anúncios que antecedem a obra, uma propaganda de uma loja de material fotográfico.

Continuando, o primeiro dentre os três anúncios que encerram o Inquérito é de uma loja de louças – alvo de algumas das traquinagens do saci ao longo dos relatos – e objetos de arte.

Como vemos, trata-se do saci em meio a objetos finos, frágeis, que, entretanto, permanecem intactos. Não conseguimos apreender com facilidade, neste caso, qual seria o

argumento, a estratégia empregada para promoção da Casa São Bento. Talvez o respeito do saci aos objetos da loja, demonstrado pelo fato de o duende não quebrá-los, evidencie a qualidade dos mesmos, como aponta Blonski:

Quanto às louças e objetos de arte da “Casa Freire”, nem ele, que gosta de quebrar esses objetos para irritar seus proprietários, o fará, pois os admira (BLONSKI, p. 59).

Enfim, talvez apenas a presença dessa figurinha, à época, tão insólita, ao lado do nome da loja já bastasse para fazer o apelo comercial.

A penúltima propaganda é mais uma propaganda de chocolate, o que acaba promovendo uma incomum concorrência de empresas do mesmo segmento em um mesmo espaço publicitário. Seria algo como se, na final do Campeonato Brasileiro de Futebol, a Rede Globo anunciasse Brahma no primeiro tempo e Schinchariol no segundo.

Mais uma vez o saci amedronta os possíveis consumidores dos produtos anunciados, como no caso dos cigarros Castellões. Aqui são as crianças as vítimas do duende, que, tentado pelos chocolates Falchi, avança em um redemoinho sobre as crianças, com o claro objetivo de lhes arrebatar a guloseima. Mas afinal, o saci gosta dos chocolates da Lacta, da Falchi, ou ele é guloso mesmo e come o que aparecer pela frente?

Por fim, o anúncio de uma farmácia, indicada pelo saci a uma dama elegantemente trajada. Como vemos, o saci cochicha ao ouvido da mulher, com uma expressão marota, algo referente à drogaria e perfumaria Braulio.

Contudo, para além da eficácia ou ineficácia das propagandas que financiaram parte dos custos de edição do Inquérito, a professora Marisa Lajolo chama a atenção para a aguda consciência da dimensão comercial do objeto livro demonstrada por Monteiro Lobato já quando de sua primeira experiência editorial. Com relação aos anúncios que trazem como garoto-propaganda o saci, observa Lajolo:

Embora na dedicatória das epopéias a tradição clássica reserve o espaço para os rapapés aos Mecenas (que ao tempo da leitura restrita à elite aristocrática viabilizavam a produção de livros), ainda hoje é inusitado (e o era muito mais nas vésperas dos anos 20 do século passado) uma explicitação tão clara da dimensão comercial de livros e de leitura (LAJOLO, 2002, p. 174).

E, com relação à grande contradição que tais anúncios encerrariam, sobretudo no que respeita aos artigos fotográficos e às máquinas de escrever Remington, observa a pesquisadora paulista:

A figura do saci, em tantos depoimentos estigmatizada pelo provincianismo que a marca, mas ainda assim proposta como alternativa brasileira à mitologia européia, quando vende a máquina de escrever e o material fotográfico vende uma tecnologia que, além de emblema de modernidade, representa uma modernidade tão importada e tão estrangeira quanto os pobres anõezinhos de jardim que deram origem a toda a história, acusados de serem anõezinhos fora do lugar... (LAJOLO, 2002, p. 175-176).

Assim, neste seu primeiro empreendimento editorial, já estavam presentes algumas marcas que acompanhariam Monteiro Lobato por toda a sua trajetória, como a modernidade de sua concepção de livros e de leitura – característica que distinguiria sobretudo sua

atividade editorial, que, com Inquérito dava seu primeiro passo – e o caráter contraditório que regeria suas relações com a influência estrangeira.

Outro aspecto a ser observado com relação às propagandas é o caráter zombeteiro e até agressivo que o saci preserva em alguns dos anúncios, que, considerados em conjunto, formam um grupo heterogêneo com relação à representação do saci. No primeiro anúncio, temos o saci com um porrete enorme ameaçando destruir outras três máquinas de escrever que tiveram a ousadia de não ser da marca Remington. No segundo, o saci abandona seus traços incivilizados e recita, como aponta Blonski, “uma quadra com versos heptassílabos e rima perfeita alternada, no esquema abab”, agradando à mulata branca de Voltolino. Em seguida, o diabinho volta à carga, puxando violentamente os cabelos de um fumante, com o intuito de arrebatar-lhe o cigarro. Na seqüência, o saci aparece em meio a um redemoinho de artigos fotográficos, o que causa certa tensão, já que tais objetos são, em geral, frágeis, e correm o risco de se desarranjarem com as estripulias do duende. Encerrando a obra, após os relatos e as considerações finais de Lobato, existem, como vimos, mais três anúncios. No primeiro deles, o saci aparece em meio a objetos de louça amontoados em certa desordem. Apesar de estarem todos intactos, a cena desperta certa apreensão, já que o saci pode, a qualquer momento, transformar tudo em cacos. Em seguida vem o comercial dos chocolates Falchi, em que o saci retoma seu aspecto agressivo e ameaçador, assustando crianças para tomar-lhes o gostoso doce. O último anúncio traz o saci com um ar maroto, falando ao ouvido de uma dama elegante sobre a drogaria e perfumaria Bráulio.

Como se observa, apenas na propaganda da Lacta o saci se apresenta completamente destituído de seu caráter agressivo e zombeteiro. Nas propagandas das máquinas de escrever Ramington, vendidas pela Casa Pratt, dos cigarros Castellões e dos chocolates

Falchi, o duende é representado de maneira bastante semelhante aos relatos do Inquérito, preservando seus traços incivilizados e perturbando as pessoas. Nos anúncios restantes, a representação do saci é um tanto dúbia, com o negrinho perneta comportando-se bem, mas deixando a impressão de que, a qualquer momento, pode retomar suas peripécias. Ainda a se observar, com relação ao anúncio da drogaria e perfumaria que encerra os informes publicitários do Inquérito, a elegante dama à qual o saci fala ao pé do ouvido tem uma atitude corporal de quem se afasta do saci, como se tivesse medo do duende. Percebam que a mulher não olha para o saci, e parece querer afastar sua cabeça e sua orelha do diabinho. Pensando por este prisma, o sorriso da dama soa falso, amarelo; ela sorri para não despertar a ira do saci. O medo sentido por esta mulher é o mesmo medo que nós, partidários da esfera da ordem, sentimos ao ver o saci em meio às louças finas da casa São Bento e aos modernos artigos fotográficos da casa Stolzi.

Com o passar dos anos, o saci teria sua participação no universo publicitário bastante ampliada, na mesma medida que algumas de suas características originais, como seu aspecto ameaçador, sua agressividade, seu ar zombeteiro, foram atenuadas ou mesmo suprimidas.