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2. O SACY-PERÊRÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO (1918)

2.4. Participação de Lobato na obra: regência; adminículos; pastiche

2.4.1. Luigi Cappalunga: um Lobato macarrônico?

O septuagésimo depoimento de O Sacy-Perêrê: resultado de um inquérito, um dos últimos da obra, que conta com 73 relatos, diferencia-se dos demais por sua linguagem peculiar. O texto em questão, assinado por Luigi Cappalunga, é escrito em uma linguagem que, por conta da mescla paródica entre o português e o italiano, remete imediatamente a Juó Bananére. Além desta suposta “imitação”, o teor assumidamente brincalhão do depoimento fez com que Marisa Lajolo, em “Os anõezinhos fora do lugar”, suspeitasse que o próprio Lobato o tivesse, gaiatamente, escrito. No artigo em questão, sobre a variedade dos registros e a suspeita de pastiche, observa Lajolo:

Tem de tudo: artigos em prosa e em verso, alguns com nome e sobrenome de quem faz o depoimento, outros anônimos ou com pseudônimo, alguns crédulos e outros descrentes, muitos tratando o assunto com empáfia e arrogância; uns em tom de sinceridade e outros temperados com tais e tantos traços de ironia que a idéia de pastiche é quase irresistível, como por exemplo o depoimento de Luigi Cappalunga, cuja linguagem lembra muito o italiano macarrônico que Juó Bananere consagrara entre 1911 e 1915 nas páginas de O

Pirralho (LAJOLO, 2002, p. 169).

Nosso propósito é, detectando os traços comuns e mesmo as divergências entre o texto de Luigi Cappalunga e o de Juó Bananére, argumentar acerca da plausibilidade dessa suspeita, que também é nossa, e especular um pouco sobre os motivos que teriam levado Lobato a lançar mão de tal artifício.

Juó Bananére

Juó Bananére, pseudônimo literário do engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), é mais conhecido por conta de suas paródias poéticas escritas em uma linguagem bastante peculiar, que misturava, satiricamente, o português ao italiano. Esta linguagem acabou se tornando a principal característica de Bananére, que parodiou, com formidável êxito junto aos leitores, uma série de poemas muito famosos à época, de escritores consagrados como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Olavo Bilac.15 Entretanto, a obra do engenheiro-escritor não se resume apenas a estas paródias. Bananére publicou, também com muito sucesso, entre 1911 e 1917, no periódico O Pirralho, uma quantidade considerável de crônicas, em geral de sátira política e social, sempre escritas na linguagem macarrônica que o caracterizava.

Origem Gráfica

Para nos remetermos ao surgimento de Juó Bananére, primeiro como caricatura gráfica (1910) e, posteriormente (1911), como pseudônimo literário adotado pelo então estudante de engenharia Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, torna-se necessário mencionar a participação direta de Oswald de Andrade e de seu periódico, O Pirralho, bem como a de Voltolino, primeiro ilustrador da produção infantil de Monteiro Lobato. Para esclarecer estas questões, seria bastante oportuno nos reportarmos a um trecho do prefácio de As Cartas d’Abax’o Pigues, reunião das crônicas de Bananére, cuja edição, precedida de valioso estudo crítico, constitui a tese de doutoramento do professor Benedito Antunes,

publicada pela Editora Unesp.16 Vejamos o que diz Sylvia Helena Telarolli, na introdução da obra do professor Antunes, sobre a origem do célebre “barbiere”, “giurnaliste” e “gandidato a gademia baolista de letras”:

Juó Bananére foi uma figura muito popular na cidade de São Paulo, entre 1910 e 1920. De início aparece como caricatura gráfica, em charges assinadas por Voltolino, encarnando cômica ou melancolicamente a imagem do ítalo-paulista (Telarolli apud ANTUNES, 1998, p. 21).

Sobre a origem do Bananére escritor, temos:

Juó Bananére, como escritor, teve um nascimento relativamente casual. Surgiu no periódico O Pirralho, graças a Oswald de Andrade, que, sob o pseudônimo Annibale Scipione, começou a desenvolver o macarrônico ítalo-paulista, imitando comicamente a fala dos imigrantes italianos que viviam nos bairros operários de São Paulo. Em 1912, ao viajar para a Europa, Oswald de Andrade deixou em seu lugar o estudante Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, que adotou o mesmo procedimento do antecessor, criando a figura de Juó Bananére, concretizada visualmente pelo traço do caricaturista Voltolino, para continuar a escrever, em língua macarrônica, a coluna As cartas d’Abax’o Piques (Telarolli apud ANTUNES, 1998, p. 21).

O estudo do professor Antunes, que introduz e acompanha os textos de Bananére, traz um precioso panorama crítico a respeito do autor, em um tópico cujo título, “Uma crítica incipiente”, permite que se tenha uma boa noção da aridez da fortuna crítica bananeriana. Contudo, apesar do número reduzido de estudos sobre a produção literária do engenheiro

16 Juo Bananere: as Cartas d’Abax’o Pigues. Organização e estudo de Benedito Antunes. São Paulo:

paulista, alguns especialistas no período tendem a ver em Bananére – a exemplo do que tem acontecido com Lobato – um precursor do Modernismo. Segundo estes estudiosos, Bananére teria ajudado a preparar o terreno para as rupturas que caracterizariam o movimento de vanguarda deflagrado em 1922. Brito Broca, ao comentar a importância do periódico O Pirralho no período, afirma que “só a presença de Juó Bananére nas suas páginas, constituía uma nota viva de irreverência e demolição” (Broca apud ANTUNES, 1998, p. 21). Ainda segundo Broca, as crônicas de Bananére “prepararam terreno para o Modernismo, ridicularizando muitos dos valores formais, em que repousava então nossa literatura” (Broca apud ANTUNES, 1998, p. 21). Este, evidentemente, não é o único prisma pelo qual se aborda a obra de Juó Bananére, persona literária que tem o valor de sua obra questionado desde a época em que esta era publicada e que, ainda hoje, é posto em xeque por críticos de prestígio, como José Paulo Paes. O próprio professor Antunes aponta outras três linhas de abordagem para a obra de Bananére que, ao longo dos anos, foram se desenvolvendo. Mas, por conta da contigüidade entre Lobato e Bananére no que se refere, principalmente, à implementação de procedimentos lingüísticos que viriam a apontar caminhos para o Modernismo, torna-se mais producente, para nossas pretensões, trabalhar com um recorte parecido com o adotado por Brito Broca.

Juó Bananére e Luigi Cappalunga: comparações plausíveis

A questão da linguagem

A linguagem utilizada por Luigi Cappalunga em seu depoimento sobre o saci, pela mistura paródica entre o italiano e o português, é o primeiro e fundamental fator que remete

diretamente a Juó Bananére. Cappalunga, entretanto, não teria sido o primeiro a tentar glosar o estilo de Bananére. Como relata o professor Antunes, ao longo dos anos em que manteve suas colunas na revista O Pirralho, Juó Bananére, por algumas ocasiões, por motivos que não cabe aqui mencionar, se ausentou, para grande pesar dos leitores. Nessas ocasiões, várias tentativas foram feitas no sentido de se recriar a linguagem do barbeiro histrião17, porém, sem sucesso. Os leitores logo percebiam a diferença e, saudosos da fina ironia que caracterizava o cronista, recebiam Bananére com grande entusiasmo a cada vez que ele retornava à ativa. O professor Antunes elabora um mapeamento detalhado dos procedimentos lingüísticos de que Bananére lançava mão para atingir os efeitos que desejava. De qualquer maneira, esta dissecação lingüística não é o objetivo de nosso estudo. Nos limitamos a dizer que, se os textos de Bananére são, ainda hoje, textos de fácil compreensão, o mesmo não se pode dizer do de Luigi Cappalunga. A fusão entre o português e o italiano e os resultados humorísticos daí advindos está mais bem resolvida nas crônicas de Bananére.

No texto assinado por Luigi Cappalunga, apesar da declarada opção pela oralidade – uma das características lobatianas a apontar para a modernidade –, o excesso de termos grafados em italiano dificulta a leitura para quem não tem certo conhecimento básico sobre a língua. Neste sentido, foi muito valiosa a ajuda do professor Antunes para nossa compreensão de alguns trechos do depoimento. Para o pesquisador assisense, a dificuldade em se ler o texto acontece porque quem o escreveu utilizou muitas palavras da língua italiana que não apresentam cognatos na língua portuguesa. Ainda, se nos textos de Bananére a maior ocorrência é de termos grafados em português, no assinado por

17 A figura de Juó Bananére, desde seu surgimento “gráfico”, com Voltolino, tinha a profissão de barbeiro.

Cappalunga ocorre exatamente o contrário: há uma predominância de vocábulos grafados em italiano.

Procedimentos narrativos

Luigi Cappalunga adota vários procedimentos narrativos similares aos de Juó Bananére. O primeiro deles é o próprio ato de escrever o depoimento, dando sua opinião a respeito de um assunto que estava, como se diz, na boca do povo. Bananére não perdia oportunidade de se pronunciar, sempre ironicamente, com certo tom de superioridade malandra, a respeito do que quer que estivesse sendo debatido no momento. Apesar de o depoimento, em tese, ser sobre o saci, o peraltinha divide o foco das atenções com algumas personagens que remetem ao universo ficcional de Juó Bananére. Cappalunga beira o humor negro quando fala da morte da esposa por conta de um aborto que teve durante um parto. Fala também de seu filho Beppino – mesmo nome do primogênito de Bananére – e da febre pneumática que o acometeu certa vez, além de mencionar as macarronadas que comeu com Dom Pedro Segundo, com quem, segundo relata, mantinha uma relação de camaradagem. Fala, enfim, de 1857, ano em que chegou a Santos, quando ainda “s’amarava i gachorini c’as linghiza”, tempos em que os sacis andavam a solta por toda São Paulo.

O universo ficcional criado por Cappalunga ao mencionar membros da família é, sem sombra de dúvida, calcado no universo ficcional que Juó Bananére, ao longo dos anos, foi criando. Outro procedimento “bananeriano” de que Cappalunga lança mão é a inclusão, em seu texto, de figuras ilustres, no caso, Dom Pedro Segundo. Nas crônicas de Bananére isto era uma constante: políticos, artistas, pessoas importantes ou famosos de qualquer ordem,

enfim, quem quer que estivesse sob os holofotes por algum motivo, estava sujeito a aparecer em uma das crônicas do barbeiro (mais ou menos como acontece, entre tantos outros exemplos possíveis, no desenho animado norte-americano Simpsons, em que, em um lance de marketing muito bem elaborado, celebridades de toda ordem – musical, cinematográfica, esportiva, etc. – fazem pontas, ou mesmo estrelam alguns episódios, alavancando a audiência do programa com sua popularidade e vice-versa). O curioso é que, a exemplo do que acontece entre Luigi Cappalunga e Pedro Segundo, Bananére, em suas crônicas, sempre interagia com grande naturalidade com estas personalidades importantes da vida real, mantendo com elas uma relação de igualdade ou até de irônica superioridade. Por conta desta mistura entre realidade e ficção, alguns críticos definem a obra do nosso “João Bananeiro” como uma literatura de fronteira, que ficaria a meio caminho entre a fantasia e a referência histórica.

Outro traço marcante nas crônicas de Juó Bananére é o narrador sempre em primeira pessoa, mesmo quando o que se conta não foi vivido pelo próprio narrador. Muito da graça e do humor dos textos de Bananére tem origem nas ambigüidades que tal opção narrativa acarreta. Além disso, outra constante é a referência direta ao leitor, através de vocativos como “magine o signore”. Tal procedimento cria certa cumplicidade entre quem lê o texto e o cronista, que acaba, propositadamente, seqüestrando o leitor para seu universo ficcional e ideológico, transformando-o, assim, de certa maneira, em um refém de sua visão de mundo. Tal opção narrativa, em primeira pessoa, se observa também no depoimento de Luigi Cappalunga, bem como a menção direta ao leitor. Como exemplo, podemos transcrever um trecho em que o narrador, duvidando das histórias que vinham sendo publicadas no

Estadinho, dispara: “U zignore quereva gonta pr’a’mi?! Io sono Vecchio amico di Zazi

Observações finais

O depoimento de Luigi Cappalunga teria mesmo sido escrito por Lobato? É uma pergunta difícil de se responder categoricamente. O texto é tão bem engendrado que a estudiosa Míriam Stella Blonski, provavelmente por não ter tido acesso ao estudo da professora Marisa Lajolo, em sua dissertação de mestrado A representação do saci na

cultura popular e em Monteiro Lobato (2003) toma o relato como remetido realmente por

um imigrante italiano.

Uma narrativa muito interessante, do Sr. Luigi Cappalunga, italiano que chegou ao porto de Santos, em São Paulo, no ano de 1857, ressalta ter visto o Saci (ZAZI), naquela época, andando pelas ruas da cidade, sem preocupação de ser reconhecido. Ao escrever a carta, já em 1917, observa que ele estava se tornando arisco, e explica que esse comportamento é devido à diminuição do número de pretos (BLONSKI, 2003, p. 65).

Continuando seu raciocínio, conclui Blonski:

A correspondência do Sr. Luigi Cappalunga foi escrita num misto de italiano com português, onde se observa a predominância do primeiro idioma. Isso pode ser explicado tanto pela hipótese de que ele era um imigrante recém-chegado, com pouco tempo de permanência no Brasil, como pela conservação da língua natal, com a qual os estrangeiros geralmente se comunicam em família (BLONSKI, 2003, p. 65-66).

De qualquer maneira, levando em consideração a pista oferecida por Lajolo e os indícios levantados por nosso estudo, acreditamos que o texto tenha mesmo sido escrito pelo criador do Sítio do Picapau Amarelo. Lobato e Bananére viveram em São Paulo

durante o mesmo período, escreveram para o mesmo periódico, O Pirralho – Lobato com menos regularidade, é verdade –, e tinham muitos amigos em comum. É bastante provável até que Lobato conhecesse Alexandre Marcondes, e, com certeza, conhecia as crônicas e paródias poéticas de Juó Bananére, que tanto sucesso faziam. Talvez tenha sido justamente a notoriedade das crônicas de Bananére que tenha levado Lobato a glosar um texto em linguagem parecida, com o intuito de tornar mais atraente, de promover seu debate sobre o saci. A facilidade no emprego da linguagem oral que Cappalunga demonstra é outro fator que remete a Lobato, bem como o tom irônico e debochado, características facilmente encontráveis nos textos do escritor, presentes também no texto macarrônico. Em dado momento, Cappalunga se diz velho amigo do saci, e chega a afirmar que o saci “teneva due perne solamende”. Tal passagem remete a um outro texto de O Sacy-Perêrê: resultado de um inquérito, assinado pelo próprio saci (?!), em que este se diz bípede e de pés virados ao contrário, em clara referência à lenda do curupira. São os únicos dois depoimentos onde o saci é descrito como bípede, e, pelo tom de galhofa, desconfia-se que tenham sido ambos escritos pelo próprio Lobato, que se comprazia em contrariar, em criar polêmicas com os paredros de plantão. Acerca da suspeita de o depoimento do próprio saci também constituir um pastiche lobatiano, observa Lajolo:

À galeria não falta nem mesmo o depoimento do próprio saci, provavelmente da autoria de Monteiro Lobato (LAJOLO, 2002, p. 172).

De fato, tanto Lobato quanto Bananére, seja pela postura irreverente e desassombrada que sempre adotaram ou pelas renovações lingüísticas que implementaram na literatura que

produziram, não tiveram ainda seu valor devidamente reconhecido. Como observa o professor Antunes, ao se debruçar sobre as relações entre a obra de Bananére e o Modernismo, talvez toda criação estética do período pré-modernista tenha ficado obscurecida por conta do marketing da vanguarda modernista. Cumpre desobscurecer.