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2. O SACY-PERÊRÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO (1918)

2.6. Notas de crítica ao Inquérito

Passaremos agora a uma breve apreciação crítica de parte dos depoimentos contidos no Inquérito. Limitamo-nos apenas a fazer algumas observações sobre os primeiros relatos, a partir dos quais pudemos detectar algumas características gerais, que marcarão também os depoimentos subseqüentes. Tentamos, assim, nesta parte de nosso estudo, colocar o leitor de nosso trabalho em contato com os depoimentos do Inquérito, apresentando-lhe os textos e algumas informações que conseguimos reunir com o estudo que viemos empreendendo acerca de Monteiro Lobato e desta obra em especial.

Antes, porém, de passarmos aos relatos, gostaríamos de nos reportar a algumas considerações críticas acerca das posturas narrativas com que são construídos os depoimentos e da participação de Lobato como organizador e comentador do volume. Marisa Lajolo, em “Os anõezinhos fora do lugar”, acerca da preponderância do ponto de vista lobatiano, observa:

Antecede os depoimentos uma breve apresentação [de] seus autores. Da lavra de Lobato, algumas destas apresentações em estilo irônico e bem-humorado vão sugerindo ao leitor o ponto de vista do organizador do livro (LAJOLO, 2002, p. 169).

A respeito da ancestralidade do primeiro empreendimento editorial de Monteiro Lobato em relação a Macunaíma, e da importância do escritor taubateano – regente das diversas vozes que se fazem ouvir nos relatos – para a organicidade do Inquérito, Lajolo pondera:

Com capa assinada por J. Wash Rodrigues, O Sacy-Pererê pode ser lido na chave do

primitivismo que, mais tarde, gera tanto o Macunaíma de Mário de Andrade quanto, no

além-mar europeu, as máscaras africanas de Picasso. Descosidos, os depoimentos são colcha de retalhos na qual se alinhavam frouxamente opiniões relativas ao mundo sobrenatural, dissertações sobre o folclore brasileiro e manifestações menos ou mais veladas de menosprezo pela cultura popular (LAJOLO, 2002, p. 171).

Em uma sucinta mas penetrante análise das estratégias narrativas empregadas nos depoimentos, obtempera a pesquisadora paulista:

Como se vê, o registro dos depoimentos oscila entre o descuido intencional (e provocativo) no uso da norma padrão e diferentes graus de respeito a ela. Já no plano dos efeitos de sentido, faz-se presente, na maioria dos depoimentos, o distanciamento entre

quem relata e a matéria relatada: é como se o saci só chegasse à vida dos leitores de O Estado De S. Paulo mediado por pretas velhas, pelo mundo rural, pela boca de caboclos

ditos crédulos.

Em conseqüência, as informações que Monteiro Lobato recebe colocam seus informantes a cavaleiro daquilo que relatam, construindo para si patamar de superioridade que lhes permite rirem-se da credulidade alheia ou, então – também de forma superior e esclarecida – elucidarem a controvérsia (LAJOLO, 2002, p. 173, grifos da autora).

Passemos agora aos relatos, que, como veremos, em muitos pontos, confirmam as observações de Lajolo.

O primeiro depoimento, intitulado por Lobato simplesmente “O primeiro depoimento”, é precedido de uma breve introdução do escritor, prática que se repetiria em quase todos os relatos. Escreve Lobato:

Mandou-o uma senhora de 25 lindas primaveras, a qual, após os cumprimentos do estilo falou assim: [...] (LOBATO, 1998, p.23)

Percebe-se, neste breve trecho, a orientação seguida por boa parte das introduções aos relatos feitas pelo escritor: busca de concisão. Em um número considerável de vezes, a impressão que tais trechos deixam é a de que o organizador do volume estava atento à questão do espaço, cortando trechos quiçá longos e desinteressantes e substituindo-os por breves introduções. Sempre no campo da hipótese, já que não tivemos acesso às versões originais dos relatos assim como os enviaram seus remetentes, acreditamos que Lobato tenha procedido de maneira a suprimir ou substituir – por estas introduções concisas cuja transcrição acima constitui bom exemplo – trechos que não considerasse pertinentes ao inquérito, como apresentações, cumprimentos, divagações etc.25 Em alguns casos, o relato inteiro foi substituído por uma recriação sucinta de Lobato, como veremos no momento oportuno. Interessante observar que, a despeito desta hipotética preocupação com espaço,

25 Se bem que, em alguns momentos, Lobato permita que seus depoentes discorram com certa folga sobre

temas não diretamente relacionados às três questões propostas pelo escritor quando da elaboração do inquérito.

dos cortes nos relatos publicados, dos relatos substituídos por sucintas recriações do escritor vale-paraibano, e mesmo dos relatos que Lobato talvez tenha omitido, o Inquérito resultou numa obra de quase 300 páginas.

Como afirma Renato da Silva Queiroz em seu estudo antropológico sobre o saci, a maioria dos relatos contidos no Inquérito tem origem em setores das ditas “elites” da sociedade da época. Este primeiro depoimento, entretanto, subverte um pouco esta lógica, já que a informante, apesar de não fazer qualquer referência à sua condição social atual, afirma ser filha de “criados”. Aliás, como a maioria dos depoentes, a jovem afirma ter travado conhecimento com o saci quando criança, no seu caso, por meio das histórias contadas por sua mãe às crianças da casa em que trabalhava. Segundo informa, o saci era o melhor remédio para a inquietação e as manhas das crianças quando a patroa tinha de se ausentar.

Foi nesses sertões [sic]26 inesquecíveis que ouvi mil vezes a descrição do saci-

pererê, que era o calmante ministrado por mamãe às crianças quando à saída da senhora eles se punham a choramingar (LOBATO, 1998, p. 24).

Neste mesmo trecho do relato, a depoente descreve o saci como o recebera de sua mãe na infância:

26 Provavelmente a autora do relato tenha pretendido dizer “serões”, já que, momentos antes, faz referência às

E dizia-nos então a doce criatura que o saci era um diabinho muito peludo, muito vivo, e travesso; andava sempre de camisa vermelha e tinha uma perna só. A sua profissão era carregar para uma mata muito distante as crianças desobedientes e manhosas (LOBATO, 1998, p. 24).

Curioso observar que a depoente, além de descrever o saci como sendo “muito peludo”, não faz qualquer menção, ao longo de todo o relato, com relação à cor do saci. Tal omissão se repetirá em alguns relatos, inclusive em um balanço feito por Lobato após o décimo sexto relato. Contudo, acreditamos que tais omissões constituam apenas lapsos dos depoentes, que, de tão acostumados à cor negra do duende, esquecem-se de referi-la. O trecho acima transcrito evidencia, além das características físicas do mito, uma outra característica muito comum aos entes fantásticos, em especial os de natureza assustadora: o seu emprego para amedrontar as crianças e fazê-las mais obedientes e cordatas. Tal emprego do mito do saci se repetiria muitas vezes ao longo dos depoimentos, havendo casos como o de um menino, avesso aos estudos e amigo de fazer traquinagens, que, de medo do saci, acabou por se tornar bom aluno, “pela assiduidade” (LOBATO, 1998, p. 32). Tal tradição narrativa oral, cujos relatos se valem do caráter assustador de algumas entidades mitológicas para acalmar as crianças, fazê-las dormir etc., são muito comuns nas mais variadas culturas, estando bastante presentes, também, em canções de ninar, como, no caso do Brasil, nas que envolvem a cuca ou o bicho papão. Voltando ao caso específico das narrativas orais que se valem de tal estratégia, observamos que, na esfera da recepção, ou, de outra maneira, do ponto de vista da criança, elas teriam uma natureza ambígua: se por um lado amedrontam, teoricamente forçando a criança a uma atitude mais comedida, por outro a atraem, entre outros fatores, por conta do caráter lúdico que envolve as narrativas

orais, ainda mais quando as histórias, como é o caso das que se contam sobre o saci, são repletas de suspense, aventura, lances movimentados e até mesmo certo humor aziago.

Neste primeiro depoimento, a informante menciona algumas peraltices típicas do saci e aponta que não era só sua mãe que lhe contava histórias do diabinho perneta. Conta passagem do pai em Minas, quando um bando de sacis bebeu todo o refresco de uns barris e depois “lá depuseram o que haviam bebido...” (LOBATO, 1998, p. 25). Raymundo, tio da depoente, proprietário, à época, de uma “fazendola” em Rio Claro, contava que os sacis roubavam e destruíam os pés de milho no período da colheita.27 Além disso, os diabinhos pernetas montavam a cavalo, deixando os animais exaustos, tamanha a correria que com eles aprontavam. Porém, neste relato, não há referência alguma quanto ao caráter hematófago do saci, que sugaria, principalmente, o sangue dos cavalos, cravando-lhe os dentes pontiagudos nas generosas veias que estes animais trazem no pescoço. Tal particularidade do mito encontra-se muito presente no conjunto dos relatos do Inquérito, e alguns depoentes chegam mesmo a afirmar que o sangue eqüino seria alimento preferido do saci.28

O segundo depoimento, intitulado por Lobato como “Depoimento número dois”, traz à baila mais um depoente que ouviu histórias do saci quando criança; segundo informa, há mais de 40 anos. O informante vem de uma tradição narrativa oral familiar mantida por mulheres, fato evidenciado quando afirma que quem lhe contava as histórias do saci, além

27 Muitas das intervenções do saci, como esta de justamente no momento da colheita roubar espigas de milho

e destruir parte da plantação, poderiam ser creditadas a pessoas normais. Como os relatos remontam ao período em que vigorava a escravidão, talvez muitas das peripécias de escravos famintos querendo aplacar a fome tenham sido creditadas ao saci.

28 Estudo breve e interessante sobre a atração do saci por cavalos encontra-se em Um mito bem brasileiro:

de sua mãe, eram “a Vuvô da Chácara, Tia Marinha, Tia Chica, [...] a velha Teodora...” (LOBATO, 1998, p. 27). A descrição que o informante faz do saci difere em alguns aspectos da descrição presente no primeiro relato, fato que se repetirá a cada novo depoimento.

Ele era um negrinho muito magro, muito esperto, de uma perna só, do tamanho de um menino de 12 anos, muito feio, banguela, olhos vivos, rindo sempre um riso velhaco de corretor de praça, carapinha grande, a saltar e a saltar e a fazer peraltagens ruins (LOBATO, 1998, p. 27).

Além de algumas novas características físicas, o segundo depoimento acrescenta ao rol de travessuras do duende brejeiro algumas peripécias que se revelariam uma constante ao longo dos relatos, como gorar ninhadas, queimar balões e comer o piruá da pipoca. Além disso, segundo o depoente, o saci subia, à meia noite, na garupa do cavalo de quem viajasse em noite de sexta-feira, e “o punga lerdo virava um passarinheiro dos diabos” (LOBATO, 1998, p. 27). O saci também embaraçava a crina e a cauda dos cavalos, além de emperrar as porteiras, obrigando quem quisesse se livrar do diabinho a furar uma cruz no mourão. Ainda segundo o relato, o saci andava só de noite, mas de dia mostrava-se no rodamoinho de vento.

Com relação ao emprego de práticas cristãs ou que lembrem o cristianismo, como furar uma cruz no mourão, adiantamos que esta será uma constante ao longo dos depoimentos. Como teremos a oportunidade de observar, os meios empregados para evitar

as visitas do saci, enxotá-lo ou até mesmo capturá-lo têm relação direta com os costumes e usos de um “catolicismo rústico”.29

Neste depoimento, outro aspecto que nos chamou a atenção é a metamorfose por que pode passar o saci, transformando-se em pássaro. Como vimos no tópico anterior, antes de ter sido assimilado, pasteurizado e, por fim, explorado pela indústria cultural, o saci moleque, negrinho de uma perna só, não era conhecido na região norte do país, onde o saci é um mito ornitológico. Da mesma maneira, o mito ornitológico do saci, ou o saci pássaro, era muito pouco conhecido, como o concebiam no Norte, nas regiões Sul e Sudeste. Assim, torna-se interessante esta mistura, esse amálgama de características concernentes ao saci moleque e ao saci ave em uma só criatura.30

Também virava, quando estava triste, num passarinho, muito triste também, que canta no fundo das capoeiras escuras, com o sol quente, uma cantiga nostálgica, repetida de cinco em cinco minutos:

‘Sa...ci!’ (LOBATO, 1998, p.28).

A referência a pássaros e a cantos de pássaros misteriosos como sendo o saci transformado em ave tem uma certa recorrência ao longo dos depoimentos, como poderemos acompanhar. Neste mesmo relato, o depoente faz referência a uma habilidade mágica do saci quando transformado em pássaro:

29 A expressão foi cunhada, acreditamos, por Queiroz (1987), em seu estudo antropológico sobre o saci. Ela se

refere a um catolicismo bastante peculiar praticado pelos habitantes do interior, sobretudo no Estado de São Paulo. Segundo o estudioso, o catolicismo dos habitantes do interior teria se distanciado do praticado nos grandes centros, tendo se constituído numa espécie de catolicismo caipira, com suas práticas e costumes característicos.

30 Lembremo-nos de que Cascudo, como mencionamos no tópico anterior, não admitia, em seu estudo, esta

Passarinho que caboclo não atira porque a pica-pau fica espalhadeira [...] (LOBATO, 1998, p. 28). 31

Deste modo, transformado em pássaro, o saci ganha o poder de voar, ficando imune, porém, aos perigos por que pode passar uma ave, como o de ser morta a tiros de espingarda por algum caipira desavisado. Outro aspecto recorrente acerca do saci expresso neste relato é a mescla de medo e atração que sua figura exerce. Tal ambigüidade aparece em diversos relatos ao longo do Inquérito e também na narrativa infantil lobatiana sobre o saci, onde Pedrinho, a despeito de toda a sua valentia e coragem, tinha esta sensação ambivalente com relação ao saci: medo e curiosidade, temor e atração.

Neste segundo depoimento, acerca desta dualidade, temos:

Não me metia medo, não.

Até parece que o mesmo desejo que eu tinha de fazer camaradagem com os meninos dos cavalinhos, tinha também de... que digo! De ver o saci, falar com ele e até colaborar com ele, quebrando, a pedradas, as vidraças do coronel José Ignácio, ao lado do beco.

Não, não tinha medo do saci (LOBATO, 1998, p. 28).

Apesar de não temer o duende perneta, o informante faz referência a um velho mulato, oficial de justiça, chamado Zé Camillo, de quem ouvia, na venda onde ia comprar “um cobre” de cocada, histórias de “sombração”. Estas histórias, que narravam as peripécias de mulas-sem-cabeça, lobisomens e sacis, sim, conseguiam amedrontar o

31 Pica-pau era um tipo de espingarda, muito comum entre os caipiras, de se carregar pela boca, com chumbo

e pólvora. Daí o depoente dizer que a espingarda fica espalhadeira, ou seja, o chumbo, ao sair do cano da arma, se espalha, não acertando o alvo.

depoente, que chegava em casa apavorado, “premeditando insônias e fantásticas dores de dentes, para poder chamar minha mãe, quando o pavor chegava ao auge, às tantas da noite” (LOBATO, 1998, p. 28). Como podemos perceber, muitas vezes, o saber contar uma história, quando se trata de narrativas orais, é mais importante do que a própria matéria narrada. Tal constatação nos remete à introdução de nosso estudo, quando nos referimos à Dona Maria. O que acontecia conosco era praticamente a mesma coisa: enquanto estávamos ouvindo as histórias de terror da velha senhora ou ainda sob influência direta das narrativas, como, por exemplo, na hora de voltar para casa, sentíamos um imenso temor. Porém, com a luz do dia e o distanciamento temporal da narrativa, o medo se esvaía, e conseguíamos até zombar das histórias que até há pouco nos amedrontavam.

Ainda segundo o depoente, o saci só andava em noites de sexta-feira, impossibilitando que algumas tarefas fossem realizadas neste dia.

[...] era por isso que não se faziam rosca doce, biscoitos e furrundum32, de sexta para

sábado, que a rosca azedava, o biscoito não crescia e o furrundum não tomava ponto... intervenções do peste do saci (LOBATO, 1998, p. 29).

Com relação ao estágio atual do mito, o depoente, que reside em São Paulo, informa que, pelo menos na capital paulista, o saci é ignorado. Segundo ele, os paulistanos, sejam eles adultos ou crianças, não sabem do que se trata. Assim, o inquérito lobatiano vai cumprindo uma de suas funções: aferir o estágio atual do mito nas regiões de onde

32 Segundo a versão eletrônica do Dicionário Aurélio – Século XXI, furrundum é um: “Doce feito de cidra

chegavam os relatos. Como teremos a oportunidade de observar, a ausência do saci na cidade de São Paulo será uma constante ao longo dos depoimentos.

O relato seguinte, “Depoimento do sr. Plinio Santos, de Ribeirão Preto”, é o depoimento ao qual nos referimos há pouco, em que o medo do saci fez o informante virar bom aluno. Quando tinha por volta de sete anos, o depoente se viu obrigado a freqüentar as aulas de um “tio velho”, irmão de seu pai, que contratara o professor para ensinar as primeiras letras ao menino, seu irmão e dois ou três primos. Como gostava muito de gastar seu tempo com brincadeiras e estripulias, como é comum às crianças de sua idade, fugia da escola como podia, matando aulas constantemente. Até que um dia...

O professor, um dia, logo que me levantei, chamou-me para dar um passeio com ele e os meus companheiros de infância. Ao transpormos uma porteira, logo à saída do curral grande, vimos quatro ou cinco animais, dentre os quais um estava com uma trança na crina, em forma de estribo, e com uma ferida no pescoço vertendo sangue. Intrigado com isso, pedi explicação ao professor:

– Foi o Sacy-Pêrêrê... Nunca o viu?... Pois, ele é um diabinho de teu tamanho, esperto como azougue, pretinho como o Theotonio (o Theotonio era um moleque meu companheiro de travessuras), que anda sempre vestido de vermelho e tem uma perna só e um rabinho muito fino... (LOBATO, 1998, p. 31-32)

O professor disse ainda que o sangue era o alimento favorito do saci, e que este perseguia crianças, principalmente nos dias de vento, “quando aparece envolvido nos ‘rodamoinhos’ de poeira...” (LOBATO, 1998, p. 32). O relato do professor deixou o menino muito assustado, de maneira que, no dia seguinte, ao contrário do que vinha

fazendo, de medo do saci, não matou aula. E, diz o depoente: “De então em diante fui bom aluno... pela assiduidade.” (LOBATO, 1998, p. 32).

Neste depoimento ocorre ainda a primeira referência sobre como se captura um saci. A técnica ensinada neste relato, a do rosário, é simples: espera-se um dia de vento, atira-se um rosário bento sobre um rodamoinho e pronto: o saci está preso. No relato de que temos tratado a tentativa falha; porém, como só depois se descobriria, o rosário não era “benzido”, era “pagão”, o que explica o fracasso da captura. Tal estratégia discursiva – que, para explicar alguma falha no edifício ritualístico do mito, como a falha na captura do saci referida pelo depoimento em questão, coloca a culpa na não observação de alguma das exigências ritualísticas, como, no caso, o fato de o rosário não haver sido benzido – encontrará alguma recorrência ao longo do Inquérito. De qualquer maneira, a técnica do rosário não seria aproveitada na narrativa de Lobato sobre o duende brejeiro, na qual Pedrinho captura um saci, mas com a técnica da peneira, à qual nos referiremos em breve.

O próximo relato seria intitulado “Depoimento de Manoel da Barroca”. A introdução de Lobato a este depoimento é a que segue:

Este senhor, pelos modos, e apesar de assinar-se Mané, é homem da cidade, e escovadíssimo. Depõe em tom dialetal como quem o conhece a fundo. É dos tais que aumenta um ponto, quando conta um conto... (LOBATO, 1998, p. 35).

O depoimento é escrito em uma linguagem característica, que Lobato classifica como dialetal, em que o narrador reproduz graficamente, de maneira convincente, diga-se, a fala dos caipiras de sua região. Com isso, engendra um texto saboroso, ágil, marcado por um ritmo bem próximo ao da fala, transmitindo a sensação de que se “ouve” uma narrativa

oral, diretamente da boca de um caipira. Lobato, porém, ao introduzir o relato, como que frisando que não foi “enganado” por seu “tom dialetal”, alerta de que não se trata de um caipira autêntico, apenas de alguém que domina o código lingüístico dos habitantes do interior e, transpondo-o para a linguagem escrita, conseguiu criar um texto literariamente bem resolvido sobre a lenda. Daí Lobato apontar que se trata de alguém “escovadíssimo”.