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Inquérito: técnica inovadora, democrática e cômoda de coleta de dados

2. O SACY-PERÊRÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO (1918)

2.1. Inquérito: técnica inovadora, democrática e cômoda de coleta de dados

Como se observa, tanto nos autores dedicados ao estudo da obra de Monteiro Lobato que se debruçaram sobre o Inquérito quanto em pesquisadores especializados em folclore, a técnica do inquérito, ou, como prefere Marisa Lajolo (2002), atualizando o termo para os dias de hoje, da pesquisa de opinião, nunca havia sido utilizada anteriormente para sondagens dessa natureza no Brasil, o que levou os estudiosos da questão a unanimemente apontar o pioneirismo lobatiano. As vantagens do método de que o escritor taubateano lançou mão sobre a tradicional pesquisa de campo, feita de casa em casa, em uma determinada região, são evidentes: uma área de cobertura imensamente maior, já que equivaleria à área de cobertura do periódico O Estadinho; a variedade dos registros, já que qualquer um poderia colaborar, bastando para isto que se dispusesse a enviar algum relato sobre o saci; a comodidade de se não precisar sair a campo, de casa em casa, tendo que contar com a boa vontade dos informantes e gastando um tempo bem maior para, muitas

vezes, conseguir um número de relatos inferior ao que o alcance do inquérito acabou por propiciar; e, principalmente, pensamos, a grande publicidade que uma pesquisa dessa envergadura representaria para o mito do saci, trazido das profundezas do imaginário popular, sobretudo da população rural da região Sudeste, diretamente para os holofotes propiciados pelo Estadinho. Edgard Cavalheiro menciona Alceu Maynard de Araújo, um de nossos maiores folcloristas, ao abordar a pesquisa de Monteiro Lobato sobre o saci:

Alceu Maynard de Araújo acentua que bem antes das explorações metodizadas no campo do folclore, mesmo antes da Sociedade Demonológica preconizada por Amadeu Amaral, Monteiro Lobato, como autêntico pioneiro, utilizava uma técnica singular de pesquisa, o questionário, depois muito usada, particularmente nas pesquisas de ciências sociais (CAVALHEIRO, 1955, v. 1, p. 192).

Azevedo, Camargos e Sachetta, na obra Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, incidem na mesma tecla, a do ineditismo, ao se referirem à técnica do inquérito de que lança mão o escritor paulista em sua sondagem sobre o saci:

Preocupado em fixar as características, conteúdo lendário, variantes e todos os aspectos em torno do saci, Lobato aplica uma técnica de coleta de dados até então inédita entre os estudiosos do folclore. Pioneiramente, lança mão de questionário para investigar um fenômeno e, por meio dele, obter maiores informações a respeito da população (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1997, p. 68).

Como vimos, com relação ao pioneirismo que caracteriza a técnica do inquérito através da edição vespertina de O Estado de S. Paulo, O Estadinho, à comodidade e mesmo à grande divulgação propiciada pela mesma, não restam dúvidas. O único senão ocorre a propósito do caráter democrático que caracterizaria uma sondagem de tal natureza. A pesquisa de Monteiro Lobato sobre o saci abria, evidentemente, um leque mais abrangente com relação à variedade de seus colaboradores, não se restringindo apenas aos literatos e “experts” de plantão, como bem observam Azevedo, Camargos e Sacchetta em sua biografia sobre o escritor taubateano. Ao abordar o início das sondagens lobatianas sobre o saci através do Estadinho, os pesquisadores de Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia observam:

Concitando os leitores a contribuir com suas histórias, em um inquérito democrático no qual qualquer um participava – e não apenas os literatos, como Lobato faria questão de frisar –, o vespertino deu início à sondagem (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1997, p. 68).

Entretanto, ao mesmo tempo em que a pesquisa através do periódico paulistano aumentava a abrangência da sondagem e a diversidade dos virtuais colaboradores, ela restringia a colaboração à área de circulação do jornal e a um público letrado e que tivesse acesso à publicação. Assim, como aponta argutamente Renato da Silva Queiroz em seu estudo antropológico sobre o saci, os relatos obtidos por Lobato representariam, sobretudo, acerca do mito, a visão das classes dominantes da época, com todas as vicissitudes que as caracterizavam.

Considerando-se o tipo de público visado pelo jornal – pessoas alfabetizadas, com pleno domínio da leitura e da escrita e com poder aquisitivo para, na época, terem tido acesso a informações impressas – pode-se concluir, com certa margem de segurança, que os depoimentos assim obtidos traduzem concepções das camadas sociais dominantes por aquele tempo (QUEIROZ, 1987, p. 58).

Analisando os relatos contidos no Inquérito sob esta ótica, Queiroz elabora um capítulo revelador em seu estudo, intitulado “O saci enquanto representação de grupos sociais dominantes”, onde aponta uma série de preconceitos inadvertidamente expressos pelos colaboradores da pesquisa de Lobato sobre o duende brejeiro. Após o estudo dos relatos que compõem o Inquérito, Renato chega a algumas características recorrentes do mito segundo a visão dos colaboradores da pesquisa lobatiana: o saci, segundo os relatos, seria preto, perneta, demoníaco, malcheiroso e feiticeiro. A análise desses dados levou o antropólogo da USP a duas constatações:

Em primeiro lugar, as referências ao Saci e às suas ações reproduzem a maior parte dos estereótipos depreciativos com os quais são definidos os negros na sociedade brasileira. Em segundo lugar, o nosso personagem nada mais expressaria, segundo as mesmas fontes, senão a mentalidade supersticiosa e grosseira dos caipiras, aos quais se atribui a paternidade da “crendice” (QUEIROZ, 1987, p. 70).

Assim, conclui Queiroz,

[...] o nosso personagem se ajusta perfeitamente aos interesses ideológicos de setores da classe dirigente (ao menos no período aqui considerado) no sentido de discriminar simultaneamente negros e caipiras (QUEIROZ, 1987, p. 71).

Como termo de comparação, Queiroz empreendeu uma pesquisa de campo nas zonas rurais dos municípios paulistas de São Roque, Juquitiba e Ibiúna, e a caracterização do saci que os relatos encerram é um tanto diversa daquela que se encontra no Inquérito. Nos depoimentos coletados pelo cientista social nas zonas rurais das três cidades do interior paulista, o Saci continua preto, porém não apresenta as feições animalescas que costumava exibir nos relatos contidos na pesquisa lobatiana. No capítulo subseqüente àquele ao qual há pouco nos referimos, intitulado “O saci enquanto representação de grupos sociais subalternos”, Queiroz analisa os dados colhidos em sua pesquisa de campo e, entre outras observações, aponta que os relatos

[...] não contêm qualquer referência ao “fartum peculiar aos negros” e muito menos ao odor de enxofre, que tanto incomodavam os olfatos sensíveis dos informantes de Monteiro Lobato (QUEIROZ, 1987, p. 75).

Como se percebe, Queiroz, no afã de comprovar suas hipóteses, em muitos momentos bastante pertinentes, ignora, ao analisar sua pesquisa de campo empreendida nos anos 80, a

distância temporal em relação ao Inquérito, além de desprezar a influência da paulatina apropriação que o mito foi sofrendo pela indústria cultural, que ele mesmo denuncia em seu estudo.

De qualquer maneira, o que tentamos demonstrar aqui, de maneira sucinta, com base nos estudos de Renato da Silva Queiroz, é que não existiria apenas um saci, mas sim uma variedade de registros que variam de acordo com as circunstâncias e do grupo social onde se originam e a partir do qual se propagam estas narrativas. Nas palavras do cientista social,

[...] as representações coletivas acabam sendo apropriadas, redefinidas e utilizadas de acordo com interesses de grupos, classes e etnias (QUEIROZ, 1987, p. 92).

Assim, o saci teria servido, em diversas situações, no mais das vezes concomitantemente, tanto à classe dominante, que utilizava as lendas acerca do duende perneta com o propósito de discriminar tanto caipiras quanto negros, quanto aos caipiras e mesmo aos negros, como se lê mais detalhadamente no estudo de Queiroz e de maneira resumida no trecho que segue:

É possível presumir, por exemplo, que os negros escravos tivessem grande interesse em manipular a figura do moleque travesso, atribuindo às suas peraltagens uma série de ocorrências – pequenos furtos, quebra de utensílios etc. – pelas quais, não fosse o Saci, acabariam sendo mais seriamente responsabilizados e punidos. Sabe-se que os senhores temiam a feitiçaria (arma dos fracos) e as divindades do escravo, e que este último fazia uso desse temor como estratégia de sobrevivência.

Em segundo lugar, e agora já não se trata de mera suposição, [...] o Saci dos senhores e de seus descendentes integrava muito bem os interesses ideológicos de desqualificar, de uma só vez, os negros e os caipiras. Mas o moleque colabora também com estes últimos, zombando dos poderosos, auxiliando o caipira a reconhecer, por confronto, os limites e os fundamentos de sua cultura e de sua identidade (QUEIROZ, 1987, p. 92-93).

Deste modo, conclui Renato que,

Visto por este prisma, o saci é um mediador, errante e solitário, que transita pelas fronteiras das classes e etnias. A sua perna única poderia traduzir justamente esta impossibilidade de se fixar no interior de qualquer um desses grupos (QUEIROZ, 1987, p. 93).

Portanto, se levarmos em consideração o que foi arrolado anteriormente, o Inquérito de Monteiro Lobato sobre o saci não seria assim tão democrático, mas expressaria sobretudo o ponto de vista das classes dominantes do período em que foi realizado acerca do mito. Contudo, tal fato não diminui o valor da iniciativa de Monteiro Lobato, que, para bem e para mal, alterou a trajetória do mito de maneira irreversível: primeiro, colocando o saci sob os holofotes durante praticamente um ano em um diário filiado a um dos jornais de maior circulação no país; posteriormente, fixando a figura do duende perneta no universo das artes plásticas, através do, como veremos, malogrado, concurso ao qual nos referimos anteriormente; por fim, trazendo para a perenidade do livro essa figura que, com o avanço inexorável da cultura letrada e o refluxo paulatino, que então se começava a verificar, da cultura popular, ia, aos poucos, ficando relegada ao esquecimento.

2.2. Anita Malfatti e o saci: acerca da exposição sobre o duende genuinamente