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Como pudemos observar, Monteiro Lobato atuou em diversas frentes, tendo contribuído de maneira substancial para o desenvolvimento de uma consciência um pouco mais crítica acerca dos problemas e das possibilidades do país. Mesmo em sua malograda

campanha pelo petróleo e ferro nacionais, Lobato logrou despertar entre a população, e mesmo entre as classes dirigentes, discussões um pouco mais realistas a respeito do assunto, que acabou por se tornar uma das grandes questões nacionais nos anos subseqüentes. Assim foi também com relação à sua participação na campanha pelo saneamento, que, como tivemos a oportunidade de observar, obteve resultados práticos muito importantes para a saúde pública brasileira. Da mesma maneira, mesmo que seu objetivo direto não fosse contribuir para o desenvolvimento do campo editorial e, conseqüentemente, intelectual brasileiro, e sim dar vazão às “ediçõezinhas” que vinha publicando, o escritor acabou por revolucionar, como têm apontado unanimemente os estudiosos que se debruçam sobre a questão editorial brasileira, o fabrico e a distribuição de livros no país.

Contudo, conquanto as inegáveis contribuições do escritor para o desenvolvimento intelectual e material do país, seu caráter contraditório, como apontamos no começo deste capítulo, esteve sempre permeando suas ações. Analisando os empreendimentos de Lobato, pudemos constatar que um dos focos geradores de atitudes controversas do escritor é a sua relação com as influências estrangeiras. Como sabemos, Lobato sempre se recusou a aceitar a importação pura e simples, na sua opinião, irrefletida, de conceitos estéticos europeus, desenvolvidos em resposta a um universo cultural bastante diverso do nosso. Sua ojeriza às vanguardas européias resultou, como sabemos, na pecha de conservador que lhe imputaram os modernistas e que, com o passar dos anos, se amalgamou à sua figura. Porém, como afirma Enio Passiani na obra já mencionada, esta mesma atitude “conservadora” de Lobato

[...] remete-nos para uma posição moderna (e modernista) acerca das artes, a saber, o respeito pelas “coisas da terra”, a busca de uma arte genuinamente nacional, que agregue

elementos de nossa cultura, de nossa gente e de nossa natureza; a defesa da individualidade artística, que somente se manifestará se o artista reconhecer a individualidade étnica e cultural do país (PASSIANI, 2003, p. 53).

Para tornar um pouco mais intrincadas estas questões, Lobato foi um dos primeiros a valorizar a arte de Vitor Brecheret, um dos ícones do movimento modernista brasileiro deflagrado na Semana de 22. Como se pode verificar, principalmente nas críticas de arte pictórica escritas por Lobato, o autor nutria um forte apego a uma concepção naturalista de arte, segundo a qual o artista deveria retratar com fidelidade o mundo que o circunda, lançando mão, porém, de sua sensibilidade estética, de seu “temperamento”. As esculturas de Brecheret, como é notório, não primam pela fidelidade ao real, daí certa surpresa na valorização sistemática da obra do escultor empreendida por Lobato.22 Contudo, como aponta Chiarelli (1995), a produção inicial do escultor teria sido marcada por uma estética mais convencional. Assim, o que teria agradado a Lobato nas obras de Brecheret seria

Sem dúvida, o caráter estruturalmente conservador que as obras de Brecheret possuíam na época, apesar de uma sutil estilização de superfície. Portanto, não foi Lobato que se modernizou após a mostra de dezembro de 1917, a produção de Brecheret é que possuía certas qualidades ainda presas às convenções mais arraigadas da escultura tradicional, que seduziram o crítico (CHIARELLI, 1995, p. 35).

Desse modo, pelo menos com relação à arte de Brecheret, Lobato não teria sido assim tão contraditório, já que o escultor, pelo menos em sua produção inicial, manteve certa

22Em Idéias de Jeca Tatu encontra-se um artigo de Lobato sobre o escultor, intitulado “As quatro asneiras de

Brecheret”, que patenteia o apreço do taubateano pelas esculturas do ícone modernista. LOBATO, 1957b, p. 187-9.

fidelidade a alguns princípios caros ao então crítico de arte taubateano. Outro dado curioso da relação de Lobato com a arte moderna é, mesmo após o grande mal entendido provocado pelo artigo do escritor sobre a exposição de arte moderna de Anita Malfatti, o fato de a própria Anita e pintores como Di Cavalcanti, figuras exponenciais do movimento modernista, ilustrarem diversas capas de obras editadas por Monteiro Lobato. Lobato, fiel a seus princípios, turrão, manteria sua aversão à arte moderna até o final da vida. Contudo, por influência da revista The Studio, de Londres, da qual foi assinante, Lobato acabou por contrair algumas das contradições da publicação, dedicada à arquitetura, ao design e às artes plásticas. Como aponta Chiarelli, a revista em questão, nos setores da pintura e da escultura, valorizava artistas mais convencionais, ao passo que no campo da arquitetura, do

design e da ilustração, caracterizava-se por ser difusora de artistas de ponta. Assim,

No terreno da ilustração, seu contato com obras de Beardsley, Valloton e outros artistas, por intermédio da The Studio, ampliou sua percepção nesse campo, fazendo com que aceitasse as novas formulações propostas para as artes gráficas. Seu contato com essas produções explicam Lobato ter publicado (já como editor) em 1922 o livro de desenhos de Di Cavalcanti, Os fantoches da meia-noite [...] (CHIARELLI, 1995, p. 113).

Assim, a liberdade expressiva criticada por Lobato quando o assunto era pintura e escultura, tidas por ele como “grande arte”, era aceita de maneira natural quando se tratava das “artes aplicadas”, como exemplificam as ilustrações de diversas capas de livros editados pelo escritor taubateano.

Outra contradição lobatiana se encontra na apologia ao american way of life que empreende sistematicamente em Jeca Tatuzinho. Para quem desejava que a França fosse

tragada por um maremoto, para quem demonstrava tanta ojeriza à invasão cultural e lingüística, para quem se revoltava com o modo de civilização à francesa que se vinha instaurando, para quem denunciava nossa covardia estética e cultural e desejava que cada vez mais nos nacionalizássemos, surpreende a defesa rasgada ao modo de vida americano que ocorre em Jeca Tatuzinho, obra em que o Jeca, após importar vários apetrechos tecnológicos americanos, toma um professor de inglês:

Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.

– Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu professor dizia:

– O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha; é hen... 23

Monteiro Lobato era radicalmente contra a importação de conceitos estéticos, porém, no que se refere aos meios de produção e à tecnologia, sua atitude era completamente oposta. O caso do ferro é exemplar com relação a esta questão. Lobato defendia que somente quando tivéssemos ferro poderíamos “maquinizar” o país, porém o escritor não aborda a questão tecnológica que envolveria esta maquinização. De onde viria, e a que preço, a tecnologia para transformarmos esse ferro em máquinas que multiplicassem a eficiência do homem?

23 LOBATO, Monteiro. Jeca Tatuzinho. Disponível no endereço eletrônico:

A que conclusões poderíamos chegar a partir das considerações que viemos tecendo? Talvez a de que Monteiro Lobato sofra de uma contradição característica de nações periféricas que sofreram processo de colonização. Nesses países, as relações com a “metrópole”, com os países desenvolvidos e de maior tradição cultural, são sempre conturbadas, como bem expressa Antonio Candido quando se refere ao caráter pendular – local x universal, nacional x estrangeiro etc. – que regeria essas relações:

[...] se fosse possível estabelecer uma lei de evolução de nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo (CANDIDO, 1959, p. 129).

Ainda a contribuir para o caráter contraditório do escritor, está o fato de ele ter sido um homem típico de um período de transição, o que permitiu que aceitasse alguns pressupostos da nova era que se avizinhava, como as experiências lingüísticas no sentido de uma aproximação e inclusão da linguagem oral, mas que o levou também a preservar e mesmo cultivar alguns preceitos caros ao período anterior, como o naturalismo – e, posteriormente, quando se fizeram sentir os primeiros influxos das vanguardas européias, uma “regressão” ao academicismo – que professava quando o assunto era pintura. Como vemos, ao analisar a trajetória de Monteiro Lobato, esse dualismo moderno/anti-moderno, nacional/estrangeiro, perpassa toda a sua vida, com reflexos, inclusive, em um dos objetos que compõem nosso corpus, O Sacy-Perêrê: resultado de um inquérito, obra em que o escritor, ao mesmo tempo em que resgata um tema caro ao nosso folclore, por meio de uma importante investigação em que opõe à invasão cultural européia o estudo de um ente

mítico genuinamente nacional, se mostra, de certa maneira, refém do capital e do desenvolvimento tecnológico estrangeiro, já que, para financiar a edição do volume, coloca o próprio saci como garoto propaganda de produtos desenvolvidos no exterior, como as máquinas de escrever Remington.

Apenas uma observação final com relação ao nacionalismo de Monteiro Lobato. A despeito de sua infausta campanha pelo petróleo e ferro nacionais, lembramos que os esforços do notável escritor e homem de ação por um Brasil melhor, seja cultural ou economicamente, tem capítulos mais alegres. Voltemos alguns anos em sua trajetória, retrocedamos a 1917, ao momento em que ele vende a fazenda Buquira, que herdara do avô e onde estivera desde 1911, ao momento em que, cheio de sonhos e planos, chega a São Paulo para fazer a vida. Neste momento, como aponta Enio Passiani, Lobato já possuía um capital simbólico considerável, graças aos artigos “Velha praga” e “Urupês”, que o tornaram conhecido em 1914, e às colaborações constantes, entre outros órgãos de menor expressão, em periódicos como O Estado de S. Paulo e a Revista do Brasil. É quando Lobato traz à baila um ente mítico da tradição folclórica brasileira, o saci.