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2. O SACY-PERÊRÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO (1918)

2.2. Anita Malfatti e o saci: acerca da exposição sobre o duende

A trajetória de vida de Monteiro Lobato tem alguns eventos que, por suas conseqüências, muitas vezes não planejadas em toda sua dimensão, constituíram-se em fatores decisivos para que o escritor taubateano trilhasse os caminhos e descaminhos que trilhou. Como foi visto, o primeiro grande lance na carreira do escritor vale-paraibano foi a publicação de “Velha praga” e “Urupês”, em novembro e dezembro, respectivamente, de 1914, textos que alçariam o fazendeiro desconhecido à condição de articulista respeitado de um dos jornais mais influentes de São Paulo e do país, O Estado de S. Paulo. Outro grande marco foi a afortunada publicação, em junho de 1918, de seu primeiro livro assinado,

Urupês, concomitantemente ao início de sua também, a princípio, bem-sucedida carreira

editorial. Igualmente relevante, entre outros aspectos, pela importância que teve na origem e manutenção de uma concepção negativa sobre Monteiro Lobato, é o artigo do escritor acerca da “Exposição de Arte Moderna”, protagonizada, em dezembro de 1917, por Anita Malfatti, e publicado, a 20 do mesmo mês e ano, no jornal O Estado de S. Paulo.

O artigo, intitulado “A propósito da Exposição Malfatti”, depois rebatizado, quando de sua publicação em Idéias de Jeca Tatu, em 1919, como “Paranóia ou mistificação?”, foi muito mal recebido por aqueles que, cinco anos mais tarde, encabeçariam a Semana de Arte Moderna. Os baluartes do prestigioso movimento de vanguarda deflagrado em 1922, interessados na edificação de uma “História Ideal do Modernismo”, como têm apontado alguns estudiosos que se prestam a uma reavaliação do período10, reputam ao texto do

escritor paulista a responsabilidade pela capitulação de Anita com relação às propostas estéticas inovadoras, originadas no velho continente, cujos primeiros influxos há alguns anos vinham se fazendo sentir no ambiente artístico brasileiro.

Porém, como aponta Chiarelli (1995), em 1917, quando da exposição protagonizada por Anita, tida como nossa primeira pintora modernista, a artista já dava mostras de seu recuo, que se confirmaria nos anos posteriores, com relação ao emprego das concepções estéticas de vanguarda que empregara em sua produção inicial, realizada sob influência da escola expressionista da Alemanha, país onde a artista esteve a estudos de 1910 a 1914. Chiarelli, fazendo um minucioso levantamento dos estudos sobre a questão, aponta algumas hipóteses, que não somente o texto de Lobato, para o recuo da artista, como, por exemplo, o ambiente pouco receptivo à arte moderna na São Paulo de então, uma cidade impregnada por um clima nacionalista; o desejo de agradar ao público; pressões familiares; o movimento de refluxo experimentado pela arte moderna com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, conhecido como “Retorno à Ordem”, verificado a princípio na Europa, mas que teve reflexos também nos sistemas culturais periféricos, como o Brasil de Anita.

Assim, a despeito do que quiseram, muito a propósito, aferir os modernistas e a “crítica modernista”, Anita vinha pintando, antes do texto de Lobato, a quem coube a culpa pelo recuo da artista, telas segundo uma estética mais convencional. Contudo, não convinha ao grupo modernista, para a almejada obtenção e manutenção de uma posição hegemônica no sistema cultural paulista e brasileiro, que Anita Malfatti, considerada pelos próprios adeptos do movimento como a primeira pintora moderna do país, entrasse para a história como uma modernista arrependida. Era mais conveniente que ela fosse tida como a mártir do movimento, e Lobato, naturalmente, seu algoz.

Para os modernistas históricos [...] não seria interessante reconhecer que aquela que era considerada a primeira artista moderna brasileira já se desviara do caminho antes de protagonizar a mostra de 1917, optando por uma produção mais convencional (CHIARELLI, 1995, p. 27).

Monteiro Lobato, apesar de seu caráter inovador na cena cultural paulista e brasileira de então, sempre se mostrou refratário às propostas estéticas vanguardistas importadas da Europa, defendendo, no campo das artes plásticas, sobretudo na pintura, uma estética naturalista, que deveria se debruçar sobre a paisagem, o povo e as vicissitudes brasileiras. Não devemos nos esquecer, também, que Lobato era uma figura muito respeitada no ambiente artístico paulistano. Como observa Chiarelli, Lobato seria “não apenas o principal crítico nacionalista de São Paulo, como também a principal figura do sistema de arte paulistano, entre a década de 10 e a década de 20” (CHIARELLI, 1995, p. 141). Assim, esta “tendência” crítica acerca do caso Malfatti versus Lobato, que se empenha em retirar da pintora e reputar ao escritor a responsabilidade pelo recuo da artista com relação às propostas estéticas modernistas, teria duas funções: proteger a unidade do Movimento, vitimizando Anita e transformando-a em uma mártir, e atacar Lobato, que, tanto por conta de seu prestígio como escritor quanto pela verdadeira revolução editorial que empreenderia a partir de 1919, contava, então, com um capital simbólico considerável, constituindo, na concepção dos modernistas, um forte opositor a ser batido.

Tadeu Chiarelli empreende um estudo bastante pormenorizado sobre a atuação de Monteiro Lobato como crítico de arte e sobre as conseqüências de seu artigo sobre a exposição de arte moderna de Anita Malfatti. Segundo o estudioso, o primeiro a culpar Lobato pela capitulação de Malfatti seria Menotti del Picchia, que, em um artigo publicado

em 1920, “lança todas as expressões que depois seriam usadas por Mário de Andrade e outros historiadores do Modernismo para desautorizarem Lobato como crítico” (CHIARELLI, 1995, p. 25). No artigo em questão, Del Picchia se refere a Lobato como impiedoso, injusto, cruel, iconoclasta, “mau pintor”. O mesmo Del Picchia, dois meses antes da Semana de Arte Moderna, retomaria essas idéias em um artigo onde parece querer instar Lobato a rever suas posições sobre a arte moderna, para que, quem sabe, integrasse o grupo. Mário de Andrade seria o próximo a, em 1924, já fazendo a história do movimento, manifestar-se sobre a questão, em uma abordagem muito próxima à de Del Picchia. O autor de Macunaíma voltaria à carga em 1926, exprimindo novamente os conceitos que marcariam todas as suas declarações posteriores sobre o episódio Anita x Lobato, incluindo a conferência “O Movimento Modernista”, realizada no Rio de Janeiro em 1942, em que fez um balanço profundo do movimento.11 Mário da Silva Brito, com sua História do

Modernismo Brasileiro, consolidaria esta visão, retomando e aprofundando o processo de

desautorização da atuação de Monteiro Lobato como crítico de arte, atividade que desenvolveu com distinção no meio artístico paulistano de 1915 a 1919, como observa Chiarelli (1995). Assim, ainda com Chiarelli, o famigerado artigo de Lobato sobre a exposição de Anita apenas recentemente teria sido estudado de maneira mais franca. E estes estudos trouxeram à tona aspectos até então ignorados.

Contudo, pouco antes de seu artigo sobre a exposição de Anita, por ocasião da exposição que teve como tema o saci, Lobato já havia se referido de maneira irônica e desfavorável à arte produzida pela pintora. Como aponta Chiarelli, Lobato vinha, desde 1915, influindo no meio artístico paulistano, com artigos sobre arte publicados em O

11 Como observa Chiarelli (1995), era de se esperar que, passado o calor do momento, os fatos fossem

Estado de S. Paulo e na Revista do Brasil. Assim, o Inquérito teria sido “o primeiro projétil

mais objetivo lançado contra a invasão do “francesismo” e/ou do incaracterístico que invadia o cotidiano brasileiro por todos os lados” (CHIARELLI, 1995, p. 189).

O inquérito sobre o Saci vinha fazendo sucesso. Em outubro, a maioria dos depoimentos já haviam sido recolhidos e, devido ao interesse, foi proposta uma exposição para que os artistas pudessem dar suas contribuições sobre aquele mito brasileiro (CHIARELLI, 1995, p. 184).

Uma das características que diferenciavam a crítica produzida por Monteiro Lobato é a acessibilidade de sua linguagem ao tratar de assuntos de arte, tornando este um assunto ao alcance de todos. A esse respeito, diz Chiarelli:

No Brasil, não se conhece até Lobato um crítico que houvesse se relacionado dessa maneira com a estética, colocando-a como um assunto passível de ser discutido e vivenciado por todos. Assim sendo, para a situação artístico-cultural brasileira do início do século, a crítica militante de Lobato foi inovadora e moderna (CHIARELLI, 1995, p. 248).

Como mencionamos, Lobato já vinha escrevendo crítica de arte desde 1915, e sua intenção com a pesquisa sobre o saci era ampliar sua intervenção no cenário cultural de São Paulo. Apesar de o Inquérito em si ter constituído um empreendimento bem-sucedido, despertando as consciências para o rico folclore nacional, além de ter alcançando uma vendagem excepcional para o período, nem tudo correu tão bem. Como aponta Chiarelli, a exposição sobre o saci, realizada em outubro de 1917, não alcançou seus propósitos, já que

apenas três brasileiros comparecem com telas, entre eles, Anita, de certo modo “excluída” por Lobato do certame, por participar com uma pintura cuja linguagem Lobato desconhecia. Ao mencionar as telas dos artistas nacionais, Lobato dá mostras de não ter se empolgado com os trabalhos, já que se refere a eles de maneira bastante sucinta e fria, não se detendo nas especificidades de cada obra:

Nacionais compareceram em pintura apenas dois trabalhos, uma aquarela ligeira do Sr.Celso Mendes, bando de cavalos que o saci dispersa à noite, e o saci do Paraná do Sr. Joab de Castro, que é uma criança e pertence ao número dos “curiosos” (LOBATO,

Revista do Brasil, novembro de 1917).

Como se vê, Lobato considera apenas as duas obras mencionadas acima – que aparentemente não o agradaram – como “nacionais”, o que demonstra o incômodo de Lobato com relação às propostas estéticas de vanguarda. Este incômodo se faz sentir de maneira mais clara quando Lobato se refere à tela de Anita. As considerações do crítico sobre a tela de Malfatti ocupa uma parte considerável de seu artigo sobre a exposição, merecendo mais atenção, conquanto o viés negativo, do que o ganhador do certame, Roberto Cipicchia.

A sra. Malfatti também deu a sua contribuição em ismo. Um viandante e seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, degringola-se a cabeça do cavalo, tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do

Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está hors concours.

Não cabe à crítica falar dele porque o não entende: a crítica neste pormenor corre parelhas com o público que também não entende. É de crer que os artistas autores entendam-nos tanto quanto a crítica e o público. Em meio deste não entendimento geral é de bom aviso tirar o chapéu e passar adiante (LOBATO, Revista do Brasil, novembro de 1917).

O surpreendente na avaliação que o então crítico de arte faz da obra de Anita Malfatti sobre o saci é a sua franqueza. Lobato não hesita em confessar que não entende a linguagem pictórica com que se expressa a artista, duvidando de que ela própria a entenda. Lobato expressa, assim, muito provavelmente, a opinião que a maioria dos paulistanos expressaria caso, naquele contexto, tivessem ocasião de apreciar o trabalho sobre o saci da pintora. Ainda hoje, o grosso da população brasileira tem dificuldades na fruição de obras que rompam, de alguma maneira, com o figurativismo, com a representação do real.

Apesar da ironia mordaz, se comparado ao artigo de dezembro deste mesmo ano, o fragmento transcrito acima pode ser considerado como mais ameno. Tal fato se deveria a duas circunstâncias. A primeira é que não seria uma estratégia inteligente da parte de Lobato atacar frontalmente uma das únicas participantes brasileiras do concurso de artes plásticas sobre o saci, mesmo que a participação da artista tenha sido em uma linguagem alienígena ao repertório lobatiano e avessa ao naturalismo defendido pelo escritor. Assim, Lobato, como faria também em seu artigo sobre a exposição de arte moderna de Anita realizada dois meses depois da exposição do saci, ataca a arte moderna, poupando Anita de sua ironia mais aguda. A segunda circunstância é que o crítico de arte Lobato não estava ainda preocupado com uma possível adesão dos artistas brasileiros aos pressupostos de

vanguarda adotados pela pintora, fato que se consumaria poucos anos depois. Sua preocupação maior, no momento, era com o descaso dos artistas brasileiros com sua iniciativa de promover um concurso de artes plásticas sobre o saci. Assim, nos artigos que escreve no Estado e na Revista sobre a exposição do saci, Lobato se manifesta de maneira contundente e ressentida contra os artistas brasileiros que ele esperava tomassem parte de seu projeto. Como Lobato pôde, decepcionado, perceber, os brasileiros não estavam tão preocupados quanto ele em trazer para o mundo das artes o mito do folclore brasileiro com que vinha se ocupando há quase um ano.

Chiarelli aponta que o principal objetivo do Inquérito teria sido ampliar a intervenção de Lobato no sistema cultural paulista. Conquanto o malogro do concurso sobre o saci, Lobato atinge seu objetivo, conseguindo ainda, além dos dividendos de ordem simbólica, dividendos financeiros que o ajudam editar Urupês, seu primeiro livro assinado e que tantos caminhos abriu na vida do escritor. Porém, sua carreira como crítico de arte entraria em declínio após o insucesso da exposição sobre o saci e sobretudo após a visita do escritor à exposição de arte moderna de Anita, em dezembro de 1917, que teria abalado sua própria concepção de arte. Como observa Chiarelli, Lobato teria ficado perplexo diante de uma produção cujo repertório não dominava. Assim, a despeito do que ficou registrado pela crítica modernista, Lobato não teria sido o único responsável pelo recuo de Anita com relação às propostas estéticas de vanguarda surgidas na Europa. Além disso, o insucesso do concurso de artes plásticas sobre o saci, aliado à turbulência ocasionada pela exposição de Malfatti e, principalmente, pelo artigo de Lobato sobre a mostra de nossa primeira pintora moderna deram início ao declínio do escritor como crítico de arte, atividade que abandonaria por completo em 1922.