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2. O SACY-PERÊRÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO (1918)

2.5. O saci: algumas considerações sobre o mito

O objetivo de nosso trabalho, como temos referido, é um estudo um pouco mais aprofundado, do ponto de vista da História da Literatura e da Literatura Comparada, das duas obras de Monteiro Lobato que têm como tema o saci-pererê. Assim, julgamos que não seja imperativo um estudo tão rigoroso de aspectos da história do mito na sociedade brasileira, como o faz Luis da Câmara Cascudo (1898-1986), em sua Geografia dos mitos

brasileiros (1947), em que, dentre cerca de uma centena de outros mitos brasileiros,

descreve com acuidade a trajetória do saci-pererê na tradição folclórica brasileira, ou mesmo Renato da Silva Queiroz, em sua obra Um mito bem brasileiro: estudo antropológico sobre o saci (1987), em que empreende um estudo de caráter sócio- antropológico sobre o mito, buscando depreender, a partir da análise das tensões sociais brasileiras, elementos que justifiquem as características do duende. Para as pretensões de nossa pesquisa, conquanto saibamos da existência de alguns outros estudos que, de alguma maneira, abordam a figura do duende perneta, acreditamos que as informações obtidas a partir da leitura dos trabalhos destes dois conceituados estudiosos sejam o suficiente. Assim, nesta parte de nosso estudo, coligiremos as observações de Cascudo e Queiroz, com vistas apenas a apresentar alguns aspectos deste ramo de estudos sobre o saci, indicando,

para aqueles que queiram se aprofundar nos aspectos antropológicos, folclóricos e mesmo sociológicos do mito, a leitura das obras supramencionadas, tanto pela seriedade das mesmas quanto pelas importantes fontes de estudo que oferecem.

Saci ave

Luis da Câmara Cascudo, em sua obra já mencionada, ao tratar do saci, faz primeiro uma distinção entre o saci ave e o saci como o conhecemos atualmente, um negrinho de uma perna só, ágil e travesso. Segundo Cascudo, o saci ave abrangeria predominantemente a região Norte do país. O estudioso aponta que, no mundo amazônico, “o saci é mito ornitomórfico e não andromórfico” (CASCUDO, 1976, p. 102).18 Apesar de o folclorista mencionar – dando o nome científico e o popular – um número formidável de aves que seriam, segundo a concepção popular, o saci, a Tapera Naevia, conhecida popularmente, entre algumas outras denominações, como Peitica, Sem-fim, Fem-fem e Vem-vem, dependendo da região, parece ser o pássaro mais recorrentemente reconhecido como tal.

18 Lembremo-nos que Cascudo publicou seu estudo em 1947. Com a chegada e a popularização da TV à

região, chegando, como dizia nos anos 80 a letra de uma canção de Cazuza, à “taba de um índio”, é bem provável que o mundo amazônico tenha passado a conviver com as duas concepções do mito. As adaptações do “Sítio do Picapau Amarelo” para a televisão, que vêm, com alguns intervalos, desde 1954 até os dias atuais, popularizando a obra e as personagens lobatianas – entre elas, o saci –, foram o maior meio de divulgação encontrado pela produção infantil de Monteiro Lobato. Por mais que este processo de popularização da TV na região tenha sido retardado em relação ao resto do país, nos dias de hoje seria tolice imaginar que a população do norte do país desconheça o saci-moleque e até mesmo a obra de Monteiro Lobato. Muitas crianças nunca tiveram acesso a um livro de Monteiro Lobato, mas quase nenhuma desconhece a versão televisiva baseada na produção infantil do escritor. Do mesmo modo, muitas crianças têm dificuldades de acesso a livros infantis, que se agravam quando se fala de bons livros infantis, mas quase nenhuma deixa de ter acesso à TV.

Ainda de acordo com Cascudo, a principal característica do saci ave seria sua capacidade de enganar seus caçadores por meio de seu canto disperso e melancólico, que seria antes um elemento desnorteante que de direção segura.

[...] o que mais me tem admirado é como a gente se engana quanto ao lugar em que está pousada. Ouve-se de longe, durante horas, o mesmo assobio característico; mas, seguindo-se este som, fica-se, sempre, ou muito longe ou muito perto, ou muito para a direita ou muito para a esquerda; em suma, cem vezes está a ave em cima e longe, antes de podermos dar-lhe um tiro. Este modo de ser enigmático e juntamente o brado triste deram, talvez, aso [sic] a toda a coroa de fábulas, que nimbam o nome de saci (Goeldi apud CASCUDO, 1976, p. 101).

Além deste caráter desnorteante, o saci seria ainda uma ave agourenta. Cascudo lança mão de um trecho de Ermano de Stradelli (1852-1926) para apontar o caráter aziago do saci ave:

É pássaro agourante. Contam que é a alma de um pajé, que não satisfeito de fazer mal quando deste mundo, mudado em coruja vai à noite agourando aos que lhe caem em desagrado, e que anuncia desgraças a quantos o ouvem (Stradelli apud CASCUDO, 1976, p. 102).

Justamente por seu caráter agourento e por seu canto desnorteante, o saci ave é, muitas vezes, confundido com outro mito ornitológico do mundo amazônico: a matinta- pereira, ou mati-taperê. Algumas aves que são apontadas como sendo a matinta são também consideradas como sendo o saci, como a Tapera Naevia já mencionada ou a Cuculus

aves, como observam seus estudiosos, têm o curioso hábito de pousarem sobre uma só perna, dando a impressão de serem unípedes, aliás, como o saci moleque, tema de nosso trabalho.

Barbosa Rodrigues ensina que o mito do saci se confundiu com tantos outros, especialmente derredor de aves de canto disperso ou, como esse pássaro que tem o hábito de pousar numa só perna, dando a impressão de ser unípede. (CASCUDO, 1976, p. 105).

Como aponta Cascudo, as aves que determinaram o mito da matinta são, sem sombra de dúvida, as mesmas responsáveis pelo mito do saci. Observa ainda o estudioso que, ao contrário do que acontece atualmente com o mito da matinta, que, crêem os amazonenses e paraenses, são velhas que têm o condão de se transformar no pássaro aziago, o saci sulista, negrinho de uma perna só, de que trataremos a seguir, não tem o poder de se metamorfosear em ave. Para Cascudo, “saci é saci a vida inteira” (CASCUDO, 1976, p. 104).19

Com relação à abrangência do saci ave, importante frisar que ela não se restringe ao mundo amazônico, como observa Cascudo:

O saci estende, como um pássaro, suas lendas desde a Argentina até o México (CASCUDO, 1976, p. 101).

Assim, fugindo um pouco ao espectro de nosso trabalho, observamos que os estudos que visam à integração do continente americano, tão em voga atualmente, têm, nas questões

19 Como veremos ao nos debruçarmos sobre o Inquérito, alguns relatos vão contradizer esta afirmação de

Cascudo.

folclóricas, um rico campo de desenvolvimento, se atentarmos para o fato de que mitos como o do saci, seja em sua forma ornitológica, de que viemos tratando, seja em seu estado antropomórfico, a que passaremos a aludir, têm, conquanto as variações locais, um alcance muito amplo, abrangendo toda a América Latina.

O saci moleque

Com relação à origem do saci moleque, Cascudo assinala que o mito teria surgido no Brasil no final do século XVIII, a partir da região Sul, de marcada influência Tupi-Guarani, e teria, em sua viagem rumo ao Norte, adquirido várias características de outros mitos já existentes no país, como o curupira e a caipora.20 O estudioso norte-rio-grandense arrola

várias evidências da presença, em países da América do Sul, como Argentina, Paraguai e Uruguai, de uma entidade mitológica que, conquanto diversa fisicamente do saci como o conhecemos atualmente, possui várias características do duende perneta brasileiro. O yasy yateré, cujo nome lembra bastante o do nosso saci-pererê, em lugar da carapuça vermelha deste, fonte de seus poderes mágicos, teria uma varinha ou bastão encantado, de ouro ou prata, dependendo do relato, que, semelhantemente ao que ocorre com o saci, daria, a quem conseguisse destituí-lo ao duende, tudo quanto desejasse. Este bastão daria ainda ao yasy yateré a capacidade de se invisibilizar, como acontece também com o nosso saci.21 Acerca da origem Tupi-Guarani do mito, observa Cascudo:

20 Cascudo, ao falar do hábito de fumar do saci, chega a afirmar que o curupira seria o verdadeiro pai do saci-

pererê (CASCUDO, 1976, p. 113).

21 Para um estudo mais aprofundado do mito sul-americano, ancestral do saci, consulte-se a obra de Câmara

Cascudo, onde o autor apresenta informações mais detalhadas acerca da entidade, além de apontar algumas fontes de pesquisa sul-americanas.

O saci aparece em fins do século XVIII e tem sua vida desenvolvida durante o século XIX. Podemos, até prova em contrário, situar sua aparição há uns duzentos anos, vindo do sul, pelo Paraguai-Paraná, justamente a zona indicada como tendo sido o centro de dispersão dos Tupis-Guaranis.

Em sua subida para o Norte o saci foi assimilando os elementos que pertenciam ao curupira, ao caapora, confundindo-se com a mati-taperê (CASCUDO, 1976, p. 110).

Segundo o estudioso, o saci teria herdado do curupira uma característica comum também a alguns duendes europeus, qual seja, “o sestro de interromper a carreira para desmanchar nós e tecidos atirados pelo perseguido” (CASCUDO, 1976, p. 110).22 Afirma ainda Cascudo que o poder de desnortear o viajante, fazendo com que este se perca nas florestas, é mais um dos legados do curupira ao saci. Da caipora, o saci teria herdado o hábito de surrar cachorros, atrasar negócios e pedir fumo. Semelhantemente à caipora, o saci pode ainda proteger quem lhe apraz.

Após estes primeiros apontamentos sobre a origem do mito, Cascudo vai desfiando uma série de características do saci, tentando traçar sua genealogia da maneira mais completa possível. Neste ponto, as incertezas são proporcionais ao número de entidades mitológicas trazidas à baila pelo estudioso que poderiam ter originado certos aspectos do saci.

Como exemplo, poderíamos mencionar o fato de o saci, ao contrário do que se diz acerca de seu ancestral da tradição sul-americana, ser unípede. Cascudo aponta alguns entes de uma perna só que poderiam ter contribuído para que o saci tivesse essa característica, como o deus maia guatemalteco Hunrankan, ou Tezcatlipoca, venerado pelos antigos mexicanos. Observa ainda Cascudo que a perna única do saci poderia ser, também, “uma

recordação clássica do fabulário europeu, dos seres estranhos como os ciapodos, monocoles, trolls” (CASCUDO, 1976, p. 110). Outra característica do saci, a carapuça vermelha que lhe confere poderes mágicos, é bastante comum na tradição folclórica européia, como demonstram os inúmeros exemplos de que lança mão o estudioso potiguar. Uma das entidades mencionadas por Cascudo que parece ter tido uma influência considerável na constituição do mito do saci-pererê é o mito português conhecido como fradinho da mão furada ou pesadelo. Segundo Cascudo:

A influência portuguesa no mito do saci-pererê é maior que julgamos, especialmente como duende noturno. A mão furada, com que aparece em vários depoimentos paulistas no “inquérito” de 1917, é apenas uma reminiscência do “Pesadelo”, o fradinho da mão furada, que usa também carapuça escarlate (CASCUDO, 1976, p. 111).

Além do orifício na mão, que aparece em vários relatos do inquérito lobatiano, o fradinho da mão furada tem em comum com o saci o barrete vermelho, o poder de entrar pelas fechaduras das portas e a obrigação de dar riquezas ou prestar favores a quem, num golpe de sorte ou astúcia, arrebatar-lhe a carapuça.23

Outra característica marcante do nosso saci que, segundo Cascudo, distinguiria também um duende europeu, é o gosto por montar cavalos, embaraçando de maneira inextrincável a crina destes animais. Segundo o folclorista, na França existiria uma entidade conhecida como esprit fantastique, ou simplesmente como fantastique, que teria o mesmo

23 A título de comparação, Cascudo transcreve um trecho de um estudioso do folclore português e,

costume. Ainda a aproximá-lo do saci, está o fato de o fantastique não ser malvado, porém malicioso.

Outro hábito do saci abordado por Cascudo é o de fumar, mantido sempre à custa alheia. Observa o folclorista:

O uso do fumo é que julgo bem brasileiro. O yací yateré paraguaio, uruguaio, argentino, não pede fumo e sim fogo ou alimentos. No Brasil o indígena ensinou o colono a fumar (CASCUDO, 1976, p. 112).

Contudo, o duende de uma perna só não foi pioneiro no que se refere ao tabagismo. Teria herdado esse costume do curupira, mito mais antigo, presente entre os índios desde, pelo menos, 1560, como atesta uma carta de Anchieta datada deste ano, em que o missionário faz referência à presença do mito entre os aborígenes. O curupira, cuja principal característica física são os pés virados para trás, é o guardião das florestas e dos animais, o que leva os caçadores a ofertarem-lhe fumo, para que tenham boa caçada. A caipora é outra entidade, também mais antiga que o saci, que gosta muito de fumar, sendo que, ainda hoje, ouve-se dizer: “aquele fuma igual a uma caipora”.

Como se apreende das colocações que viemos, com base nos estudos de Luis da Câmara Cascudo, tecendo, o saci, conquanto seja, por sua caracterização única na tradição mítica universal, um duende genuinamente brasileiro, tem, em suas origens, a contribuição decisiva de alguns mitos estrangeiros, cujas características básicas parecem ser universais, se repetindo, com pequenas variações e as mais variadas combinações, em entidades mitológicas dos mais diversos países e culturas. O saci seria um amálgama de características de diferentes mitos com os quais a cultura popular brasileira tomou contato

ao longo dos anos. Seria mais ou menos como a própria formação do povo e cultura brasileiros, resultado do amálgama étnico e cultural que se observou desde a chegada dos portugueses, seu contato com os índios, a posterior chegada dos negros africanos e, por fim, os fluxos migratórios de italianos, japoneses, alemães, espanhóis etc.

Concluindo, observa o folclorista e historiador potiguar:

Mito de existência relativamente moderna, o saci-pererê substituiu na popularidade literária ao curupira, registrado pelo venerável Anchieta. É hoje o demônio inseparável das estórias, das anedotas, dos causos, das conversas matutas, caipiras e fazendeiras, vago, assombrador, inesperado, malicioso, humorista, atarantador, diluído na lembrança emocional dos que já não mais têm a idade espiritual para temer-lhe o espantoso encontro... (CASCUDO, 1976, p. 113).

Saci: um trickster 24 brasileiro

Ainda sobre aspectos antropológicos do saci, consideramos importante mencionar o estudo de Renato da Silva Queiroz. O antropólogo traz para a discussão a categoria do

trickster, de que o saci seria um representante nato. Observa o estudioso:

O termo trickster, empregado originalmente para nomear um restrito número de “heróis trapaceiros” presentes na tradição mítica de grupos indígenas norte-americanos,

24 No trabalho de Queiroz, com relação à origem do termo trickster, temos: “Segundo Balandier (1982, p. 25),

o trickster (embusteiro, trapaceiro, ardiloso, astuto, desonesto etc.) recebe esta designação anglo-saxônica em lembrança a uma antiga palavra francesa, triche (tricherie = trapaça, furto, engano, falcatrua, velhacaria). Por outro lado, Laura Makarius (1969, p. 2) observa que trickster significa jouer de tours (pregador de peças), mas como [sic] uma dose de malícia que a expressão francesa não consegue expressar.” (QUEIROZ, 1987, p. 27).

designa hoje um conjunto de personagens semelhantes, de que se tem notícia em diversas culturas.

De modo geral, ele é o “herói embusteiro”, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que podem estar situadas, dependendo das narrativas, num passado mítico ou no tempo presente. Sua trajetória é uma sucessão de boas ou más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por conseqüência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro (QUEIROZ, 1987, p. 27).

Ainda segundo Queiroz, o trickster, assim como o saci, tem um caráter ambíguo e contraditório, tendo suas aventuras marcadas pela malícia, pelo desafio à autoridade e por uma série de infrações às normas e aos costumes. O trickster é marcado ainda por possuir poderes mágicos, que são usados tanto de maneira destrutiva e perturbadora quanto para, eventualmente, ajudar os que se encontram em situação adversa. Ainda segundo Queiroz, que se baseia em um número considerável de autores que se debruçaram sobre a figura do

trickster ao redor do mundo, a entidade teria uma mentalidade aética, maliciosa e egoísta,

caracterizando-se ainda por seu procedimento agressivo, vingativo, errante, vaidoso, criativo, transgressor e glutão. O trickster, que, em tese, realizaria o que todos, secretamente, gostariam de fazer, é encontrado tanto em tribos aborígenes quanto em sociedades complexas, como China, Japão e Grécia. Como observa Queiroz, o trickster logra e é logrado, ignora tanto o bem como o mal, não tem valores morais ou sociais, estando sempre a mercê de suas paixões e de seus apetites. Ainda, suas ações são permeadas pelo riso, pelo humor e pela ironia, de maneira que, ao contrário do pícaro, não é dotado de pragmatismo, circunscrevendo-se à prática de aventuras marotas e descompromissadas, que não visam vantagens ou dividendos. É o truque pelo truque, pelo riso, pela brincadeira.

Deste modo, pelas evidentes semelhanças apontadas anteriormente, nos parece bastante pertinente que Queiroz filie o saci à casta universal dos tricksters, que passa a contar com um interessantíssimo exemplar brasileiro.