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Alguns dados da atualidade sobre o tráfico no mundo, no Brasil e em Portugal

CAPÍTULO 1. TRÁFICO DE PESSOAS: DESAFIOS CONCEITUAIS, PRINCIPAIS DADOS NO MUNDO, EM PORTUGAL E NO BRASIL

1.3 Alguns dados da atualidade sobre o tráfico no mundo, no Brasil e em Portugal

A pesquisa sobre o tráfico de pessoas se justificaria mesmo que houvesse apenas a suspeita da existência de tal aviltamento dos direitos humanos e este não é o caso, já que existemmuitos e diferentes dados. Diante da complexidade de análise dos dados presentes em diversas fontes de informações sobre o quadro quantitativo do tráfico, fazer a opção por este ou aquele dado já é, em si, uma decisão política. Neste caso, optou-se pelas fontes oficiais do Sistema ONU e dos países estudados – Brasil e Portugal.

Na contemporaneidade, está a cargo do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime – UNODC, a partir de 2010, compilar os dados sobre o tráfico de pessoas no mundo. Três relatórios mundiais foram realizados por essa organização, como segue:

a) Relatório 2009, referindo-se aos dados de 2003 a 2006, com o registro de 51.864 vítimas (UNODC, 2009);

57 registro de 43 mil vítimas (UNODC, 2012) e

c) Relatório 2014, referindo-se ao período de parte do ano de 2010 a 2012, com o registro de 40.177 vítimas (UNODC, 2014).

Como a própria UNODC constata, os dados foram coletados majoritariamente por organismos governamentais, variando o número de países como também quais enviaram, a cada período, os seus dados. Por isso, esses dados estão longe de espelhar fidedignamente a realidade do tráfico, mas se constituem em indicativos sobre os processos que estão ocorrendo em diferentes regiões do mundo e também sobre a realidade dos países, no que se refere ao registro de dados sobre o tráfico de pessoas.

A busca de compreensão da dinâmica do tráfico de pessoas no mundo levou à divisão dos dados por região, sendo: 1) América do Norte, Central e Caribe; 2) América do Sul; 3) Oeste e Europa Central; 4) Leste Europeu e Ásia Central; 5) Sul da Ásia; 6) Leste da Ásia e Pacífico; 7) Norte e Meio Leste da África e 8) África Subsaariana. O Relatório 2014 apresenta os dados referentes às ocorrências de tráfico registradas dentro das regiões, como também transpondo-as. A figura que se segue apresenta tanto a organização dos dados por região, como também a expressão dos dados referentes ao tipo de tráfico (regional ou transregional) que ocorre em cada uma delas.

Figura 1.1: Mapa da detecção de vítimas do tráfico por sub-região e transregional entre os anos de 2010-2012.

Fonte: UNODC, 2012.

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decisivo na forma de organização do tráfico. Segundo o Relatório de 2014, existem as pequenas operações locais, médias organizações regionais e grandes organizações transregionais. Dentre as características preponderantes nos três âmbitos de ocorrência do tráfico está o número de vítimas em cada operação e a quantidade de participantes delas. Agrega-se a esses dados o volume de financiamento necessário para responder aos níveis de complexidade que cada operação exige, sobretudo quando se inserem a falsificação de documentos e a travessia de fronteiras com fiscalização.

Os dados também apontam que o maior volume de tráfico ocorre internamente nas regiões e está diretamente ligado às possibilidades de trabalho entre países próximos. Outro dado que os Relatórios 2012 e 2014 trazem é que o tráfico de pessoas internamente em cada país existe e independe do tamanho geográfico do país. Pode ocorrer em lugares com grande extensão e população, como o Brasil e a Índia, mas também existe em países pequenos em extensão da Ásia e mesmo da Europa.

A re-colocação da discussão do tráfico de pessoas a partir dos territórios internos nos países, e, intrarregionalmente nos continentes, quebra um paradigma importante presente nos documentos existentes no histórico do enfrentamento ao tráfico de pessoas. O que significa que o tráfico não está fixado em “prostituí-las” no estrangeiro, na perspectiva de transpor

continentes ou fronteiras geográficas, como ocorria tanto nas legislações como nas finalidades até então discutidas.

A ideia predominante de que mulheres que eram traficadas da Europa para os outros continentes no final no século XIX e início do século XX e, posteriormente, a ida das mulheres da Ásia, América Latina e Central e África para a Europa, compõe uma das possibilidades de tráfico e não mais as únicas rotas de traficância.

Referente às finalidades para as quais se traficam pessoas, todos osRelatórios seguem uma linha bastante parecida e dividem, por exemplo, o ano de 2012, em três categorias:

(a) Exploiting the prostitution of others or other forms of sexual exploitation; (b) Forced labour or services, slavery or practices similar to slavery and servitude; (c) Removal of organs (UNODC, 2012: 34).

Nos dados de 2009, não aparece evidenciado o tráfico de órgãos dentre as finalidades do tráfico, e em todos não aparece a finalidade de adoção ilegal, como se pode observar no gráfico a seguir:

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Figura 2.1: Gráfico demonstrativo das finalidades para as quais se traficam pessoas no mundo, em porcentagem, nos períodos entre 2003-2012.

Fonte: UNODC, 2009; UNODC, 2012 e UNODC, 2014.

No que se refere à exploração sexual, no Relatório de 2012 foi explicitado o que ocorre tanto na exploração sexual forçada quanto na exploração sexual legal14. No entanto, não se evidencia, em nenhum Relatório, se a terminologia “exploração sexual” refere-se somente a crianças ou também a adultos. Tais dificuldades são expostas nos diferentes Relatórios, evidenciando que a coleta de dados é realizada a partir dos dados dos países. Ou seja, diversas formas de compreensão sobre as finalidades da exploração são registradas pelos Estados-parte, com possibilidades de concepções até mesmo antagônicas. No caso do que pode ocorrer no trabalho no mercado sexual, por exemplo, para alguns países o trabalho individual é legalizado e para outros é criminalizado, como também pode ser negada a sua existência. O fato é que, em todos os Relatórios, a nomenclatura utilizada é “exploração sexual”, o que pode denotar, a princípio, que embora possa haver distinção, no cômputo geral, a diferenciação não está posta.

Os dados dos três Relatórios evidenciam uma tendência de aumento no percentual de trabalho forçado, ou seja, há uma forte influência do tema tráfico para trabalho sendo considerado pelas políticas públicas e, com isso, realizando as notificações das situações de

14 Registre-se que no Relatório da UNODC (2012) não há distinção entre prostituição voluntária de adultas/os e exploração sexual de crianças, não sendo, portanto, possível compreender a complexidade apresentada pelos dados. Pela leitura contextual do texto, ou seja, tratar-se de diferentes países com diversidade de legislações, o que se denomina de exploração sexual legal refere-se às localidades em que a prostituição é regulamentada/legalizada.

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tráfico de pessoas. No entanto, há que também considerar que as situações de tráfico de pessoas para fins de exploração na prostituição ou mesmo exploração sexual de crianças e adolescentes não ocorre, geralmente, em cadeias produtivas legalizadas e isso dificulta a notificação, segundo os Relatórios da UNODC. Já o trabalho escravo ocorre majoritariamente em locais de trabalho lícito, o que facilita a fiscalização e a demanda de ações por parte das políticas públicas, especialmente aquelas ligadas ao trabalho.

Uma realidade brasileira que também pode se configurar em outros países é o que aparece no Atlas do Trabalho Escravo no Brasil (Théry et al, 2009), que indica que a presença de homens resgatados pode ser até 50% maior que a das mulheres. Se, de um lado, isso pode significar que não havia mulheres vítimas nas operações de resgate, por outro lado, também pode significar que as atuações de resgate somente são realizadas em locais de trabalho majoritariamente masculinos, desconsiderando-se as especificidades do mundo do trabalho em que as mulheres estão inseridas. Se tal configuração se confirmar, ter-se-ia a discriminação institucional de gênero.

De acordo com a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – CEDAW,

a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (CEDAW, 1979).

A não consideração da escravidão feminina em diferentes setores produtivos, inclusive no mercado sexual, além da discriminação de gênero e abandono das mulheres pela política pública, potencializa a visão do senso comum que considera que os “trabalhadores honestos” estão no trabalho escravo e, portanto, masculino. No tráfico de pessoas, estão as mulheres nas cadeias produtivas ilícitas ou moralmente condenáveis, portanto, trabalhadoras do desviante, do imoral. Quando também as mulheres estão inseridas em trabalhos domésticos e da esfera da reprodução, ou seja, fora do mercado formal masculino, há sua invisibilidade para a política pública e confirma-se, assim, o seu não direito.

Há possibilidade de que as mulheres também estejam inseridas nos dados referentes ao trabalho forçado, pois quando se analisam os dados referentes a “quem são as pessoas traficadas” nos Relatórios da UNODC, constata-se que o somatório de mulheres e meninas supera a finalidade da exploração sexual, como pode ser observado no gráfico a seguir:

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Figura 3.1: Gráfico demonstrativo de gênero e geração das pessoas traficadas no mundo segundo a UNODC.

Fonte: UNODC, 2009; UNODC, 2012 e UNODC, 2014.

Os dados do gráfico aqui apresentado se referem numericamente a valores diferentes e crescentes em cada Relatório, não podendo ainda caracterizar que o número de homens traficados foi mais notificado e aparecido em mais relatórios nos seus países. No entanto, uma tendência do registro da UNODC demonstra que há um aumento percentual de notificações de homens, meninos e meninas. Nos dados sobre as finalidades do tráfico, podem estar constando notificações mais evidenciadas no mundo do trabalho, além da caracterização maior de crianças e adolescentes. Segundo os Relatórios, tanto os casos de exploração sexual infanto-juvenil podem ter entrado no item trabalho forçado quanto na finalidade exploração sexual em si. Assim, também, a estratégia de casamento servil pode estar nos dois quesitos.

Outra fonte de dados sobre o tráfico de pessoas no mundo é a Organização Internacional do Trabalho. Essa Organização também faz parte do Sistema ONU, tem seus relatórios publicados regularmente e a temática aproximativa, por que não dizer, integrativa da discussão do tráfico de pessoas é o trabalho forçado. Conforme afirma em seu Relatório de 2013, a discussão entre o trabalho forçado e o tráfico de pessoas tem sido maximizada a partir do Protocolo de Palermo (UNODC, 2004), visando promover o encontro com a Convenção 29(OIT, 1932).

Via de regra, no encontro desses dois documentos internacionais – Protocolo de Palermo e Convenção 29 -, ratificados tanto pelo Brasil quanto por Portugal, a OIT (2014) indica que, embora alguns queiram configurar no mesmo crime, estes são relacionados, mas

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não idênticos. Assim, no tráfico de pessoas, além do trabalho forçado existe também o tráfico de órgãos, para casamento e o tráfico com a finalidade de adoção, muito embora se reconheça que, estes últimos, também possam ter a aparência de adoção ou casamento e a finalidade de exploração no trabalho.

Um dos questionamentos em pauta é a existência do trabalho forçado sem que tenha ocorrido o tráfico de pessoas. Assim, a própria OIT registra a necessidade de compreensão das diferentes realidades do trabalho, visando explicitar a vinculação ou não do trabalho forçado com o tráfico de pessoas. Por isso, as discussões sobre escravatura, trabalho forçado e tráfico de pessoas ainda são objetos de possibilidades de acordações internacionais, sendo necessário acelerar o processo, posto que “a maior parte do tráfico de pessoas resulta em trabalho forçado ou em exploração sexual” (OIT, 2014: 7).

Dentre as principais discussões que são colocadas pelo Relatório, o trabalho forçado pode ocorrer também mediante o contrabando de migrantes. Assim, as condições vulnerabilizantes na migração indicam que a sujeição ao trabalho forçado se torna exploração, mas o meio utilizado é o contrabando e não o tráfico de pessoas. As condições migratórias – regulares ou irregulares – com maior ou menor autonomia e acesso a direitos nos territórios por onde caminharam os migrantes serão importantes na forma de submissão, especialmente na migração irregular e no modo como os países atuarão na garantia de direitos ou na negação dos direitos dos trabalhadores.

Mesmo considerando que o trabalho forçado é uma infração grave em praticamente todos os países, a atuação dos Estados-nação também pode ter a compreensão de que a migração irregular é um delito individual e, portanto, passível de expulsão. Neste caso, o trabalho forçado é praticamente desconsiderado, em face das leis migratórias rígidas e∕ou restritivas. Por isso, ao apresentar os dados sobre trabalho forçado no mundo, a própria OIT registra que é preciso considerar as diferenças legislativas e culturais sobre o trabalho, migração e tráfico de pessoas. Mesmo assim, considerando que inicialmente as ações incidiram prioritariamente na finalidade de exploração sexual, “o tráfico para o trabalho forçado foi adquirindo cada vez mais relevância” (OIT, 2014: 6).

Nos Relatórios da OIT, percebe-se que não há distinção entre exploração sexual, prostituição forçada e prostituição voluntária, podendo ser indicadores de situações com a mesma nomenclatura. Um dos marcos também importantes deste Relatório é o que insere todos os tipos de trabalho forçado no conjunto de dados e apresenta como estimativa de trabalho forçado no mundo o total de 22 milhões e 900 mil pessoas, sendo assim distribuídos:

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Figura 4.1: Gráfico demonstrativo do número de pessoas em trabalho forçado no mundo, por região, no ano de 2012.

Fonte: Relatório da OIT, 2014.

Embora o Relatório não explicite o critério para a divisão das regiões visando estimar o trabalho forçado, percebe-se que há uma ideia básica sobre o que são as regiões políticas definidas em outros documentos da OIT. Esses dados podem parecer bastante diversos em termos regionais, mas, ao se considerar a prevalência, apresenta-se um dado mais interessante para compreender “onde” o trabalho forçado é mais notificado e∕ ou com maior ocorrência:

Figura 5.1: Prevalência de trabalho forçado por região, no mundo, em 2012 ∕1000 habitantes.

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A quantificação do tráfico de pessoas em cada região, país ou mesmo continente é sempre parcial e incompleta, pois se trata de crime. Mesmo ocorrendo em cadeias produtivas formais, lançar o olhar sobre ele implica compreender a cultura e as legislações locais. O tráfico de pessoas se transmuta de acordo com o contexto de inserção extensiva e intensiva dos territórios na acumulação mundial do capital, e seus impactos nem sempre são visíveis pelo conjunto da sociedade.

Dados da OIT e UNODC informam que o tráfico majoritariamente ocorre fora dos países do centro do poder econômico, ou seja, União Europeia e Estados Unidos. Esta violação de direitos humanos expressa as fraturas econômicas e sociais que ocorrem nos territórios, com base na divisão intra e internacional do trabalho.

Os territórios locais, regionais e mundiais tornam-se demonstrativos da concretude da intensificação dos processos de globalização e, por se constituírem em dimensão mais econômico-política do que física, não podem ser delimitados apenas pelo espaço, mas pela conjugação deste com o tempo histórico em que está se processando sua construção no campo das ideias e das relações sociais no mundo globalizado.

Os dados apresentados por essas duas organizações do Sistema ONU – UNODC e OIT - conjugam com a ideia sobre “[...] a desterritorialização e a reterritorialização das coisas, gentes e ideias” (IANNI, 2013: 19), mantendo e aprofundando a alienação sobre as raízes dos problemas e construindo fascínios e desejos em relação ao ‘mais civilizado’, com o exótico. Assim, sedimenta-se o imaginário do pertencimento ao desenvolvimento global, o que desvia o olhar do próprio viver local em face de desigualdades provocadas por esse mesmo modelo.

Significa que, ao se buscar os dados sobre o tráfico de pessoas no mundo, especialmente no que se refere a todas as formas de trabalho forçado, é preciso compreender como cada região está inserida no processo de globalização. Convém entender, sobretudo, como os países se organizam intranacionalmente e intrarregionalmente para cumprir as metas de inserção capitalista em tempos de mundialização do capital.

Tanto os relatórios sobre o tráfico de pessoas quanto os referentes ao trabalho forçado não informam quais são os setores econômicos que se beneficiam do tráfico de pessoas. Isto é, as análises dos dados estão focadas nos dados em si, e não nos processos produtivos que geraram a demanda e a oferta na traficância. As condições dos diferentes territórios não compõem as análises sobre as motivações socioeconômicas que provocam o tráfico, muito embora sinalizem que há um aumento desta violação de direitos no mundo.

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A Resolução 50/167 de 1994 da ONU (ONU, 1995), por exemplo, afirma que o tráfico de pessoas beneficia “proxenetas, traficantes e organizações criminosas, assim como outras atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, por exemplo, o trabalho doméstico forçado, os casamentos falsos, os empregos clandestinos e as adoções fraudulentas”. Tais afirmações oficiais dos documentos internacionais vão construindo uma ideia de que o lucro com a mercancia de pessoas está dado na própria rede traficante, desconsiderando as organizações capitalistas lícitas e ilícitas que também se beneficiam dele.

Os territórios locais, engendrados em uma teia global, implementam a desregulamentação das garantias do trabalho e configuram as políticas sociais sob a égide neoliberal, garantindo direitos sociais focais e sob a lógica dos mínimos sociais. Em outra ponta, o capitalismo, por meio de suas redes comunicacionais, incita a possibilidade de consumo igualitário, inclusive, pautando a ideia da migração como possibilidade de “vencer” a estagnação e a perspectiva de superação das realidades de não direitos em que vive grande parte da humanidade hoje.

É possível afirmar que, na divisão inter e intranacional do trabalho, o tráfico de pessoas se intensifica de acordo com a inserção dos territórios no processo produtivo capitalista e, assim, o tráfico se põe a serviço do capital transnacional. O poder econômico e o poder de decisão, assim como o trabalho com melhores condições, localizam-se nos países ricos, e o trabalho caracterizado pela menor proteção ocorre mais expressivamente nas regiões onde existe a precarização das condições e das relações de trabalho e o não respeito e/ou ausência de direitos sociais e econômicos.