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CAPÍTULO 2. BASES TEÓRICAS PARA A COMPREENSÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS E DE SEU ENFRENTAMENTO

2.2 Fundamentos sócio-históricos da Teoria Crítica

Dentre as funções da pesquisa, uma delas é a produção teórica, e esta resulta do que é apresentado pela empiria em comunicação com campos de conhecimento diversos e as teorias anteriormente afirmadas. A partir desses encontros contraditórios e diversos, temos a construção permanente do “acabado provisório e do inacabado permanente, [...] fazendo combinação particular entre teoria e dados, pensamento e ação” (Minayo, 2010: 47).

A teoria, no processo de construção histórica “propõe, então, categorias analíticas e um esquema explicativo das inter-relações dos fatos observados, além de permitir conceituar novamente o campo de investigação, deslocando as fronteiras do objeto” (Deslauriers e Kérisit, 2012: 144). A intencionalidade da teoria em seus compromissos com as realidades destitui a ciência da verdade absoluta, ou seja, evidencia verdades a partir de escolhas. Minayo (2010) afirma que são formas de conhecimento e ocultamento da verdade, na medida em que projetam determinadas faces da realidade e fazem sombra sobre outras. “Toda a teoria é um discurso científico que se constitui como uma grade através da qual o seu formulador

80 analisa a realidade” (Minayo, 2010: 175).

Corroborando com Minayo (2010),há inexistência de uma ciência geral, e as práticas científicas têm desenvolvimentos desiguais e estão intimamente ligadas às forças socioeconômicas existentes na realidade. A demanda de pesquisa, antes bastante pautada pelo Estado, inclusive como agente financiador, é utilizada também como porta voz das forças econômicas, na perspectiva de manutenção dos avanços do capital. No entanto, vêm sendo introduzidos novos demandatários e financiadores, como o empresariado e a sociedade civil, na perspectiva de que os cientistas estão também imersos em conflitos, tensionamentos e consensos sobre o quê, como e para que estão se realizando pesquisas. Os conhecimentos científicos são, assim, datados e têm comprometimento com a origem da demanda da pesquisa. As Universidades, que não são isoladas das contradições, pautam e alojam pesquisas e construções teóricas também comprometidas com segmentos da sociedade.

Sousa Santos (2010) afirma que, nos tempos atuais, com sombras do passado que ainda estão presentes e, mesmo com os avanços científicos estabelecidos de forma galopante, as problemáticas vividas e que necessitam de respostas da ciência guardam rastros de séculos. Com a incorporação das tecnologias – desenvolvidas pelas ciências –, dogmas eternizaram-se, como o determinismo, mudança mecânica e manutenção da ordem a serviço do capital, em face da barbárie das desigualdades que se aprofundaram. Reconhecer que a ciência é comprometida com as forças econômicas e sociais é levar em conta a falibilidade e vulnerabilidades, sobretudo é entender que está tomada pelas contradições também teóricas que estão em disputa.

A definição do que vai ser pesquisado é um caminho de decisões políticas permanentemente. O mundo em que o pesquisador está inserido, os exercícios de pensar a realidade, as aproximações entre a teoria que se lhe conforma o método, a crítica, a dúvida e as inquietações, ao mesmo tempo que lhes dão base para as escolhas também se confrontam com outras forças científicas e sociais que vão delineando o seu “objeto” (Prates e Prates, 2009; Minayo 2010; Deslauriers e Kérisit, 2012).

O que estamos afirmando é que as pesquisas, na sua função estratégica de conhecer, desvelar e propor novas formas de organização societária, podem participar, de forma utilitária, também para os capitalistas. Ou seja, colocam-se a serviço de um determinado tipo de sociedade que não enfrenta as raízes da questão social. Sousa Santos (2010), ao referir-se aos paradigmas que estão em emergência para as ciências, frisa que a revolução científica não pode ser somente do conhecimento prudente. Conforme o autor, do que se quer conhecer,

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sobretudo, é um paradigma social – aquele que responde à vida decente. As escolhas do pesquisador, todas políticas, podem, em nome da ciência, reificar e manter a realidade ou propor a sua compreensão com a finalidade de transformá-la. Isso significa o reconhecimento do comprometimento social da ciência.

A ciência, portanto, mesmo que queira distanciar-se, está localizada na base material da sociedade, sendo fruto da ação humana que produz os seus meios de subsistência. Os humanos, cujas relações estão ligadas à forma como produzem e o que produzem, são produtores e reprodutores de ideias. É a ação humana que conforma a base material. Nesta mesma base material, estão localizados os pesquisadores e sua fonte empírica. Marx (2001) afirma que emanam da atividade material as representações, o pensamento, a organização social, econômica e política. “O mesmo acontece com a produção intelectual, tal como se apresenta a linguagem da política, na das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo” (Marx, 2001: 18-19).

A base material que conforma a organização da sociedade ocorre pela formação social, ou seja, Minayo (2010) afirma que é o tema que Marx vincula ao modo de produção e às condições gerais de produção. São os movimentos concretos:

a)das forças produtivas e das relações sociais de produção; b) das classes sociais básicas e dos segmentos específicos em conflitos, convergências e contradições; c) da divisão do trabalho; d) das formas de produção, circulação e consumo de bens; e) da população e dos movimentos populacionais; f) do Estado; g) do desenvolvimento da sociedade civil; h) das relações nacionais e internacionais de comércio; i) das formas de consciência dos diferentes grupos sociais; j) e dos modos de vida (Minayo, 2010: 110).

A conjugação de forças existentes na sociedade é, em si, a base das contradições e estas não existem de per si, mas são engendradas na organização social que dá sedimentação ideológica para sua existência e, ao mesmo tempo, a reifica. Neste movimento de produzir e ser produzido pela ideologia que mantém a ordem social, “a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia” (Marx, 2001: 19).

Não sendo a teoria constituída de neutralidade, a ela deve-se a função de definir códigos, conceitos e evidências do que está subjacente à realidade. A teoria pode ser também instrumento de descolonização no caminho da emancipação epistêmica, sendo um processo permanente de tensionamento entre os conhecimentos dominantes e aqueles que hão de ser sistematizados também a partir dos saberes que vêm das lutas sociais, ou seja, “la emancipación teórica tiene que acompañar las emancipaciones de los pueblos” (CECEÑA,

82 2008: 13).

A análise da realidade a partir das formas de organização da produção (e, por conseguinte, da reprodução) tem como base a forma capitalista de produção em suas diferentes fases de desenvolvimento. Essa condição leva necessariamente a analisar as classes antagônicas que estão na base da produção, ou seja, a classe trabalhadora e os donos dos meios de produção. No entanto, não uma análise abstrata, mas engendrada em cada território que se vincula a diferentes formas de produção. Essa produção que é a empiria com que se conhece, de fato, as formas de exploração. Por isso, a condição de análise, a partir da singularidade de cada fato ou sujeito em fase de conhecimento, está diretamente configurada em particularidades que são de grupos ou de temáticas. É na particularidade que há a demonstração das singularidades e presença da totalidade.

Os âmbitos de compreensão de uma determinada questão social, quais sejam, a singularidade, particularidade e totalidade não são níveis de compreensão ou possibilidades de análise em separado. Pelo contrário, são categorias que se engendram no processo de compreensão da realidade, suas diversidades, formas de desigualdade e resistência que estão em curso. Em todos os âmbitos em observação, a empiria é demonstrativa das realidades que estão exercendo coesão e fratura no sistema capitalista, como também as formas de organização das diferentes frentes que estão em conflito no processo de aprofundamento ou equalização das desigualdades. A manutenção da crítica ao capitalismo e suas fraturas, o reconhecimento das relações de classe no enfrentamento das desigualdades e as mediações que estão estabelecidas entre a singularidade, particularidade e universalidade conformam as bases da Teoria Crítica que, como afirma Reis (1999: 01) tem o propósito sempre de “evidenciar as injustiças, voz aos silêncios e iluminar os conflitos”.

A Teoria Crítica reconhece que não há neutralidade nas suas análises. Pelo contrário, toma lado da classe trabalhadora e evidencia as desigualdades, não se conformando com o abstrato ou o senso comum fenomênico, mantendo a crítica sobre suas próprias descobertas no sentido de buscar, em cada realidade a ser conhecida, as relações que estabelece com a totalidade e, esta, como se relaciona com as localidades. No entanto, não se disponibiliza a somente evidenciar os conflitos e desigualdades, sobretudo, registra as formas de organização que estão sendo realizadas para enfrentar os problemas, ou seja, também evidencia as potencialidades que estão sendo vivenciadas.

Desafios diversos estão colocados para a Teoria Crítica e dentre eles está o desvelamento da realidade na perspectiva da construção de futuros, sendo que estes não são

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somente planejamentos para tempos vindouros, mas o próprio exercício do presente. A essa ideia Santos (2006) chama de exercícios de humanidades. Freire (1992), por sua vez, conclama à pedagogia da esperança e Sousa Santos (1999) denomina de promoção de subjectividades rebeldes23.

A construção teórica é, em si, intervenção na realidade, posto que passa a constituir-se como um conhecimento científico e, portanto, contém veracidades sobre a realidade. É a construção teórica, desta forma, uma ação pedagógica que necessita da discussão da relação educadora que está estabelecida em quaisquer situações de enfrentamento das dimensões da questão social, especialmente quando se refere à pesquisa. O processo de construção do saber/agir coletivo nega a falsa dicotomia do saber popular e do saber científico, do poder popular e do poder científico. Pelo contrário, é na práxis comprometida que se operarão as aproximações com a realidade de forma mais verdadeira. A rapidez com que os avanços tecnológicos e comunicacionais estão impondo avalanche de informações pode comprometer a busca da essência da questão social.

Desvelar a realidade sem deixar-se levar pelo imediatismo dos acontecimentos torna- se um desafio teórico tão importante quanto a construção de processos particulares de aprendizagens que revelem os meandros da dominação, como é proposto por Marcuse (1969). Há também na ciência uma possibilidade de acomodação a partir da absorção feita pelos detentores da dominação, de seus princípios, discursos e símbolos, trazendo aos cientistas a falsa ideia de incorporação real do que foi “desvelado”. O que de fato aconteceu foi somente a incorporação do discurso sem que em nada este tenha influenciado no modo de produção real de desigualdades. É comum aos cientistas se aquietarem, realizando seu trabalho conforme as leis e os métodos da legalidade democrática, equivalendo à aceitação da estrutura do poder dominante. Contudo, não tendo construído outros espaços de produção científica, “seria fatal abandonar a defesa dos direitos e liberdades civis dentro do quadro estabelecido” (Marcuse,

23 Os autores apresentados podem ser melhor compreendidos a partir da ideia: “não posso entender os homens e as mulheres, a não ser mais do que simplesmente vivendo, histórica, cultural e social- mente existindo, como seres fazedores de seu “caminho" que, ao fazê-lo, se expõem ou se entregam ao "caminho” que estão fazendo e que assim os refaz também” Freire (1992:50). A simplicidade com que os autores nominam os desafios do cotidiano, no entanto, não pode ser confundida com simplismo ou banalidade, mas como exercício verdadeiro e presencial da utopia, com experiências engendradas na atualidade dura e sofrida das recorrentes violações de direitos. Essa mesma realidade desafia os pequenos exercícios e profundas vivências de outros modos de vida que não sejam de dominação, mas de solidariedade e construtores de presentes-futuros.

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1969: 90), pois não há muitos outros espaços disponíveis para vivências de processos não alienantes.

O questionamento ao sistema do aprofundamento dos fossos de desigualdade tem significado jogar opositores à condição de malfeitores do bem-estar proporcionado pelo desenvolvimento tecnológico. Os poderes instituídos operam a partir de ganhos dirigidos a pequenos grupos, pois pequenos ganhos podem levar parcelas da população ao afastamento do desejo de mudar as estruturas, por isso, a necessidade de “contínuo esforço de persuasão, de reduzir, parcela por parcela, a maioria hostil”. Há que se considerar sempre que “o processo semidemocrático trabalha necessariamente contra a transformação radical, porque produz e sustenta uma maioria popular cuja opinião é produzida pelos interesses dominantes do status quo” (Marcuse, 1969: 90-91).

Para Sousa Santos (1999), há que se aprofundar a assimetria entre experiência e expectativa e como estas influenciaram o passado, nublam o presente e não possibilitam propor o futuro. Reconfigurar o consenso, transformado em resignação alienante, não nos permite considerar possibilidades diferentes daquelas do excesso de presente e nos torna indiferentes ao futuro. Na mesma linha de denúncia, é necessário questionar as teorias da sociedade do risco que cotidianamente caotiza o presente, impossibilita o futuro e nos coloca na condição de espera. O consenso alienante e a perspectiva da sociedade do risco não nos preparam para atuar diferentemente do que está posto e ainda nos impedem de construir a esperança ou campos de experimentação social.

A Teoria Crítica não está a serviço da teorização abstraída como que se deslocando do real. Pelo contrário, busca ler a realidade a partir de um campo de possibilidades que enfatiza o que se observa, sobretudo, busca compreender as contradições do real. “A análise crítica do que existe se assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da existência e que, portanto, há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe” (Sousa Santos, 1999: 197). O autor afirma ainda que é a indignação e o próprio desconforto teórico sobre o que está dado que impulsiona o pesquisador a construir novos pressupostos que comunguem com a superação.

Horkheimer (1972), a partir da Teoria Crítica, conclama à necessidade de enfrentar a irracionalidade da sociedade, posto que foi transformada como produto de uma vontade única – o capitalismo - e não uma vontade geral autoconsciente. Os problemas que surgem das próprias fraturas do sistema capitalista precisam ser enfrentados por uma teoria que não queira disciplinar princípios do que é bom, adequado, apropriado, valioso ou produtivo no

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sentido de manter a ordem estabelecida que serve a poucos.

A realidade que se nos apresenta está repleta de contradições existentes nos processos constitutivos do sistema capitalista e, por isso, somente a Teoria Crítica é capaz de, não se conformando com o que está posto, avançar em compreensão, investigar suas múltiplas categorias e o imbricamento entre elas. Sobretudo, com a Teoria Crítica, a partir dos problemas que “nos causam desconforto ou indignação é suficiente para nos interrogarmos criticamente sobre a natureza e a qualidade moral da nossa sociedade e a buscarmos alternativas teoricamente fundadas nas respostas que dermos a tais interrogações” (Sousa Santos, 1999: 199).

Esta tese comunga com a visão de Faleiros (1999) sobre a contribuição teórica do Serviço Social à Teoria Crítica, posto que a profissão, na pesquisa, objetiva evidenciar as relações entre atores sociais e estrutura, cujo histórico sempre ocorreu sob a ótica da dominação econômica. Para o Serviço Social, que se aproxima cotidianamente das realidades, torna-se do seu fazer profissional a compreensão das relações de poder social, cultural e político. Por sua vez, o Serviço Social também pode inscrever com maior rapidez as percepções do que está ocorrendo “na relação complexa de forças pela manutenção e pela transformação da ordem social” (Faleiros, 1999: 10).

A teoria que baliza esta tese, portanto, não apreende a realidade de forma total, mas a totalidade que está engendrada nas aproximações dialéticas que buscam o movimento contraditório e as relações que estão se configurando permanentemente. Esse processo de (re)construção estabelece conexões teóricas e realidades vivas, sem neutralidade e com profunda objetividade, evidenciando as expressões da questão social e as formas de seu enfrentamento.