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As fontes documentais da pesquisa sobre tráfico de pessoas na perspectiva de estudo internacional

CAPÍTULO 2. BASES TEÓRICAS PARA A COMPREENSÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS E DE SEU ENFRENTAMENTO

3.3 As fontes documentais da pesquisa sobre tráfico de pessoas na perspectiva de estudo internacional

A pesquisa qualitativa, cuja fonte de dados é documental difere das demais fontes vivas, na medida em que com os documentos não ocorrem processos de interação entre as partes. No entanto, os documentos são fontes vivas que podem evidenciar o contexto, sobretudo fazer emergir “formas de representação social, análise de fundamentos, conceitos e orientações constantes em legislações, entre outras finalidades” (Prates e Prates, 2009: 121).

Embora se reconheça que os documentos guardam característica de ser fonte de dados estáveis e que, portanto, corroboram com as considerações do pesquisador, podem esses ser olhados por diferentes ângulos. A fonte documental é estável na sua evidência e permite a compreensão em tempos históricos diferenciados, como também por pesquisadores com suas visões de mundo e processos sócio-históricos singulares. Assim, uma fonte inesgotável de análise e, ao documento, constituído de representações, é possível “acrescentar a dimensão do tempo à compreensão social” (Cellard, 2012: 295), ou seja, “possibilita ampliar o entendimento de objetos cuja compreensão necessita de contextualização histórica e sociocultural” (Sá-Silva; Almeida; Guindani, 2009: 02).

A pesquisa documental permite dois movimentos importantes: a) A partir de vários documentos traz em evidência os valores, os movimentos, ou seja, os processos sócio- históricos de uma época e, b) a partir do processo sócio-histórico, compreender o surgimento de um documento ou mais. Esses dois movimentos são complementares, retroalimentam-se, sobretudo, questionam-se de forma a constituir-se em um processo dialético de desvelamento do que não se revelou no olhar condicionado às evidencias rasas.

Entre os aspectos importantes sobre as fontes documentais é que eliminam eventualidades, ou mesmo reação do sujeito pesquisado, sobre o que se pretende compreender, mudando, por exemplo, comportamentos ou discursos, pela presença ou intervenção do pesquisador. “Embora tagarela, o documento permanece surdo, e o pesquisador não pode dele exigir precisões suplementares” (Cellard, 2012: 295).

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diante do objeto de pesquisa, os sítios eletrônicos tornaram-se fontes importantes para o acesso público. No entanto, mesmo com essa facilidade, ir às bibliotecas e livrarias visando consultar as publicações referentes ao tema ao tráfico torna-se um exercício interminável, posto que uma publicação tagarela sobre a outra. Nas pesquisas atuais, as publicações eletrônicas e as impressas convivem e nenhuma delas pode ser desmerecida.

Há um mundo documental diversificado: obras literárias, filmes de ficção e documentários, reportagens jornalísticas, músicas, como também os documentos oficiais públicos seja de organismos públicos governamentais como não governamentais. Nas organizações, os documentos têm os mais diferentes formatos como panfletos, vídeos, planos, pesquisas, relatórios, atas, etc. Esse universo documental é apoio fundamental para análise de contexto, posto que expressa as visões de mundo que estão presentes na temática do tráfico de pessoas que é a nossa pesquisa. É possível que, a partir de um documento, abra-se a possibilidade de compreender o outro.

Nesta pesquisa, as fontes de dados documentais que são o objeto de análise desta tese, são os Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas/Seres Humanos (Brasil, 2008; Portugal, 2007b). Foram decisivos, neste processo de compreensão dos documentos – objeto de pesquisa – conforme explicita Lucena (2010: 29-30), tanto a observação participante nos eventos e visitas técnicas, quanto a “leitura” de tudo que circundou a temática, em ambos os países. A construção permanente do conhecimento, conforme apreendido da autora, não ocorre na elaboração da tese, mas durante toda a pesquisa, na medida em que há a interação do pesquisador com a realidade, considerando a interdependência entre os níveis micro e macro, objetivo e subjetivo, sobretudo na dialeticidade permanente da ação pesquisadora. “A investigação processa-se por meio de aproximações sucessivas ao real, capturando, simultaneamente, a historicidade, as particularidades e singularidades” (Lucena, 2010: 31).

Percebe-se, desta forma, que o resultado da pesquisa não é resultado de uma construção linear. Pelo contrário, coloca-se em suspeição a todo momento, sobretudo, em crítica de um aprendizado novo sobre o que já se sabia anteriormente.

Gadamer (1999) afirma que o texto escrito tem a vantagem de o problema hermenêutico aparecer de forma pura, ou seja, não se modifica durante a pesquisa. No entanto, tem a debilidade da não interação visando à clarificação dos conceitos e situações presentes que, para o pesquisador, podem ser vitais para compreensão. Exige, neste sentido, do pesquisador, a humildade de reconhecer que “a tarefa do compreender se coloca com

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particular claridade quando se reconhece a debilidade de todo o escrito” Gadamer (1999: 572).

O rigor metodológico da dialética-hermenêutica implica alteridade para compreender os documentos. Isso se acentua de forma importante no estudo que quer se conhecer a partir dos dois países. A alteridade, portanto, exige a humildade epistêmica, ou seja, reconhecer que também o pesquisador poderá deixar-se fetichizar pelo aparente do texto e que é fundamental conhecer o caminho já percorrido por outros pesquisadores. Gadamer (1999: 366) alerta que ao pesquisador cabe sempre a pergunta: o que efetivamente ainda não consegui perceber, compreender, visualizar...?. O exercício permanente de tudo perguntar e procurar é como considerar que também é “a compreensão do tu. Pode-se ver diretamente no texto a opinião do autor” (Gadamer, 1999: 366).

Segundo Amorim (2007), a produção do texto e a produção do conhecimento são dois terrenos conflituosos em si e entre si. É possível considerar-se, assim, que os significados contidos na produção do conhecimento podem ser conflituais, coincidentes ou complementares sem perder a característica de ser um processo de descoberta permanente entre o pesquisador e o que está sendo colocado a conhecer. Essa dialogicidade entre o pesquisador, o texto e o contexto de ambos pode fazer emergir da diversidade e não apenas visualizar o retilíneo texto e seus significados aparentes, ou seja, o que se quis mostrar à primeira vista.

A aproximação com os dados documentais ocorre com processos de leitura, posto que também é diverso o tipo de registro. A leitura abrangente, ou seja, aquela rápida que identifica a origem do documento e o seu conteúdo, é fundamental para colocar em âmbitos de prioridade os documentos. Após, com os documentos priorizados, inicia-se a leitura visando identificar o conteúdo e a importância para a tese. Somente os documentos priorizados vão ser alvo de leitura em exaustão. É a imersão na busca de significados contidos de forma implícita que vai forçando a sua emersão. É o pesquisador que exercita diferentes olhares para o mesmo conteúdo e forma. Este ato contínuo traz, em evidência, a compreensão sócio-histórica da composição da fonte em análise. A partir daí, inicia-se seu processo de organização dos dados visando orientar a estética da análise.

Foi nesse exercício, de diferentes formas de leituras, que se percebeu em todos os documentos em análise, a existência de discursos de apresentação: Protocolo de Palermo; Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Política Nacional do Brasil; e, Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos de Portugal. Foi o aporte

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teórico abordado no doutoramento e as orientações que possibilitaram a leitura crítica, à luz do Serviço Social, sobre a Política e os Planos.

Dentre um dos campos mais importantes da análise documental está a análise de políticas públicas por meio de suas publicações oficiais. Além de propiciar a possibilidade de compreensão sobre alargamento ou retração de direitos, os documentos expressam “discursos, normativas, sentidos atribuídos, regras, conceitos (ora explicitados, ora vagos), pressupostos, delimitações, valores, descrições de fatos, enfim uma infinidade de elementos que permitem [...] constituir-se em fontes únicas” (Prates e Prates, 2009: 114-115).

A análise da política pública requer buscar diferentes fontes, posto que é mesmo da intenção da política não se dar a conhecer por inteira. O texto, como existente em si e em relação ao contexto, prenhe de significados, não expressa a totalidade da verdade. Compreender o que é possível nas constantes e aproximativas interações é um deslocamento permanente entre o passado e o presente com contextos que se entrecruzam, submetem-se e se questionam. Na compreensão do documento-texto “espaço e o tempo parecem suspensos. Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura atualidade do passado” (Gadamer, 1999: 262).

Além das fontes circundantes de uma política pública, há que se considerar a mediação como inerente ao exercício da instrumentalidade do Serviço Social. Trata-se, pois, de eleger a particularidade como “a realidade intermediária na direção do singular ao universal e de volta ao singular (Lucena, 2010: 32). Por isso, realizar os estudos em ambos os países, portanto, realidades singulares, quando se opera a mediação visando à compreensão particular da temática do tráfico, confere ao estudo a possibilidade de mirá-lo na perspectiva universalizada. Como afirma a autora, ao buscar a essência do que está sendo estudado, ocorre a aproximação com a totalidade e este processo ocorrendo de forma sucessiva, possibilita estabelecer as articulações do real em busca dos fundamentos da ocorrência das desigualdades e, portanto, da questão social.

Na análise documental realizada no âmbito da construção do conhecimento científico em Serviço Social, a instrumentalidade a partir da dialética-hermenêutica tem o desafio de análise crítica sobre as políticas, mas também de colocar em evidência as resistências e avanços que estão sendo processados no âmbito das classes subalternizadas. Isso significa, além da capacidade teórico-metodológica, evidenciar o compromisso ético-político com o conjunto da sociedade e com as transformações necessárias para enfrentar, no caso desta tese, o tráfico de pessoas.

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As fontes documentais que foram analisadas constituem-se em um acervo público governamental e das organizações do Sistema ONU, cuja produção ocorreu no período de 2000 a 2010, conforme projeto aprovado pelo Comitê Científico do ISCTE-IUL. O conjunto de documentos é composto por:

a. I Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos - PNCTSH (2007-2010) de Portugal. (Portugal, 2007b);

b. I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas - PNETP (2008-2010) – Brasil (Brasil, 2008).

Esse recorte temporal tem o marco de análise a partir da aprovação do Protocolo de Palermo, base legal da atualidade no enfrentamento ao tráfico de pessoas. No entanto, para compreender o contexto dos dois documentos em análise, foi necessário buscar outros documentos citados por eles. Tanto Portugal como o Brasil, em todos os discursos citam o Protocolo de Palermo e, com isso, utilizou-se o mesmo na análise dos Planos Nacionais.

Outros documentos foram fundamentais para evidenciar a realidade do enfrentamento como: a) Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Brasil (Brasil, 2006); b) a Resolução do Conselho de Ministros de Portugal no. 81/2007 (Portugal, 2007b); e c) a Resolução da Assembleia Geral da ONU 64/293 que apresentou o Plan de Acción Mundial de las Naciones Unidas para Combatir la Trata de Personas (ONU, 2010).

Pode-se afirmar, desta forma, que os Planos Nacionais se constituem em operacionalizações locais que têm total engendramento às decisões mundiais, cujas decisões no âmbito da ONU foram decisivas para a própria existência do enfrentamento no âmbito dos países.

Para a elaboração do contexto mundial do tráfico, seja no que concerne aos dados mundiais e dos países específicos, como também o conceito utilizado sobre tráfico de pessoas e as finalidades da traficância, utilizaram-se documentos do Sistema ONU como também dos Órgãos Oficiais de Brasil e de Portugal. Dada a quantidade de dados existentes, foi necessário constituir em um capítulo específico e utilizar documentos datados até o ano de 2014, posto que estes trouxeram dados do período de 2000 a 2010, inclusive apontando as tendências da traficância.

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sobre tráfico de seres humanos e os dados mundiais foram fundamentais na constituição das bases analíticas dos Planos Nacionais. Isso não significou mudança no objeto de pesquisa, mas a necessária busca de dados complementares visando evidenciar, para além das aparências, como bem orienta a dialética hermenêutica.

3.4 O compromisso ético na pesquisa considerando as diferentes realidades do Brasil e