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IDEOPOLÍTICOS

5.4 Atenção às pessoas em situação de tráfico

O Protocolo de Palermo (UNODC, 2004) dedica três artigos específicos à atenção às vítimas de tráfico. Sendo estes: a) assistência e proteção; b) permanência no país receptor e c) repatriação com proteção. Conforme se prevê:

Artículo 6. Asistencia y protección a las víctimas de la trata de personas

1. Cuando proceda y en la medida que lo permita su derecho interno, cada Estado Parte protegerá la privacidad y la identidad de las víctimas de la trata de personas, en particular, entre otras cosas, previendo la confidencialidad de las actuaciones judiciales relativas a dicha trata.

2. Cada Estado Parte velará por que su ordenamiento jurídico o administrativo interno prevea medidas con miras a proporcionar a las víctimas de la trata de personas, cuando proceda:

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a) Información sobre procedimientos judiciales y administrativos pertinentes;

b) Asistencia encaminada a permitir que sus opiniones y preocupaciones se presenten y

examinen en las etapas apropiadas de las actuaciones penales contra los delincuentes sin que ello menoscabe los derechos de la defensa.

3. Cada Estado Parte considerará la posibilidad de aplicar medidas destinadas a prever la recuperación física, sicológica y social de las víctimas de la trata de personas, incluso, cuando proceda, en cooperación con organizaciones no gubernamentales, otras organizaciones pertinentes y demás sectores de la sociedad civil, y en particular mediante el suministro de:

a) Alojamiento adecuado;

b) Asesoramiento e información, en particular con respecto a sus derechos jurídicos, en

un idioma que las víctimas de la trata de personas puedan comprender;

c) Asistencia médica, sicológica y material; y

d) Oportunidades de empleo, educación y capacitación.

4. Cada Estado Parte tendrá en cuenta, al aplicar las disposiciones del presente artículo, la edad, el sexo y las necesidades especiales de las víctimas de la trata de personas, en particular las necesidades especiales de los niños, incluidos el alojamiento, la educación y el cuidado adecuados.

5. Cada Estado Parte se esforzará por prever la seguridad física de las víctimas de la trata de personas mientras se encuentren en su territorio.

6. Cada Estado Parte velará por que su ordenamiento jurídico interno prevea medidas que brinden a las víctimas de la trata de personas la posibilidad de obtener indemnización por los daños sufridos.

Artículo 7. Régimen aplicable a las víctimas de la trata de personas en el Estado receptor 1. Además de adoptar las medidas previstas en el artículo 6 del presente Protocolo, cada Estado Parte considerará la posibilidad de adoptar medidas legislativas u otras medidas apropiadas que permitan a las víctimas de la trata de personas permanecer en su territorio, temporal o permanentemente, cuando proceda.

2. Al aplicar la disposición contenida en el párrafo 1 del presente artículo, cada Estado Parte dará la debida consideración a factores humanitarios y personales.

Artículo 8. Repatriación de las víctimas de la trata de personas

1. El Estado Parte del que sea nacional una víctima de la trata de personas o en el que ésta tuviese derecho de residencia permanente en el momento de su entrada en el territorio del Estado Parte receptor facilitará y aceptará, sin demora indebida o injustificada, la repatriación de esa persona teniendo debidamente en cuenta su seguridad.

2. Cuando un Estado Parte disponga la repatriación de una víctima de la trata de personas a un Estado Parte del que esa persona sea nacional o en el que tuviese derecho de residencia permanente en el momento de su entrada en el territorio del Estado Parte receptor, velará por que dicha repatriación se realice teniendo debidamente en cuenta la seguridad de esa persona, así como el estado de cualquier procedimiento legal relacionado con el hecho de que la persona es una víctima de la trata, y preferentemente

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de forma voluntaria.

3. Cuando lo solicite un Estado Parte receptor, todo Estado Parte requerido verificará, sin demora indebida o injustificada, si la víctima de la trata de personas es uno de sus nacionales o tenía derecho de residencia permanente en su territorio en el momento de su entrada en el territorio del Estado Parte receptor.

4. A fin de facilitar la repatriación de toda víctima de la trata de personas que carezca de la debida documentación, el Estado Parte del que esa persona sea nacional o en el que tuviese derecho de residencia permanente en el momento de su entrada en el territorio del Estado Parte receptor convendrá en expedir, previa solicitud del Estado Parte receptor, los documentos de viaje o autorización de otro tipo que sean necesarios para que la persona pueda viajar a su territorio y reingresar en él.

5. El presente artículo no afectará a los derechos reconocidos a las víctimas de la trata de personas con arreglo al derecho interno del Estado Parte receptor.

6. El presente artículo se entenderá sin perjuicio de cualquier acuerdo o arreglo bilateral o multilateral aplicable que rija, total o parcialmente, la repatriación de las víctimas de la trata de personas.

As ideas centrais sobre atenção às vítimas do tráfico trazidas no Protocolo de Palermo implicam pensar o enfrentamento ao tráfico de pessoas a partir da fala de suas próprias vítimas na medida em que a “Asistencia encaminada a permitir que sus opiniones y preocupaciones se presenten y examinen en las etapas apropiadas de las actuaciones” como também “asesoramiento e información, en particular con respecto a sus derechos jurídicos, en un idioma que las víctimas de la trata de personas puedan comprender”. Esses dois indicativos de como devem acontecer os atendimentos, além de precisar de forma explícita a atenção física e psicossocial, denotam que a preocupação primeira está em considerarem-se todas as possibilidades de proteção, visando à participação de cada destinatário nas definições dos procedimentos a serem executados.

No entanto, mesmo se considerando que os três artigos tratam de forma ampla a proteção aos direitos das pessoas traficadas, o próprio Art. 8º. afirma “el presente artículo no afectará a los derechos reconocidos a las víctimas de la trata de personas con arreglo al derecho interno del Estado Parte receptor”. Portanto, há condicionalidades que podem estar postas nas regras internas dos países que podem não garantir todos os direitos previstos no Protocolo de Palermo, muito embora os países o tenham ratificado. Internamente os países podem, a partir dessa normativa, ampliar ou restringir direitos a partir de suas leis.

As atenções imediatas jurídica, física e psicossocial devem estar aliadas à segurança das pessoas traficadas, bem como se deve avaliar também a segurança no país de onde veio. Na sequência, a atenção deve garantir alojamento ou permanência no destino, ou seja, onde a

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pessoa viveu a situação de tráfico, a defesa jurídica e as possibilidades de indenização pela condição em que se encontrava, inclusive com oportunidades de emprego e capacitação/formação profissional.

No I PNETP-Brasil, cinco prioridades foram definidas para responder pelo atendimento a pessoas em situação de tráfico: articular os serviços e redes existentes, criando um sistema nacional de referência; consolidar uma rede de serviços de atendimento específicos para a temática do tráfico; definir responsabilidades, fluxos e protocolos; realizar capacitações articuladas entre os âmbitos de governo e sociedade civil e realizar articulações internacionais com vistas à garantia dos direitos das vítimas.

Em todas as prioridades, a ação estratégica mais citada é a capacitação e formação continuada. Parte-se da ideia de uma rede existente, com programas de formação consolidados, cuja temática do tráfico de pessoas deva ser incorporada, considerando-se como fundamento a perspectiva dos direitos humanos e definindo-se conteúdos básicos para as capacitações.

No que se refere aos serviços e redes específicos, as ações referem-se a ampliar os serviços de recepção de brasileiros deportados e não admitidos; apoiar a constituição de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – NETP; fortalecer e ampliar os Centros de Referência de Atendimento à Mulher - CRAM, na perspectiva de incorporar a atenção às mulheres traficadas; estruturar os Centros de Referência Especializada de Assistência Social- CREAS; incorporar o tema no SUS; e, desenvolver metodologias de atendimento às mulheres com definição de fluxos para a rede de serviços, com especificidades para as fronteiras.

Quando se refere às capacitações articuladas, além do envolvimento dos diferentes âmbitos de governo, indica-se que devem ser destinatárias dessas ações as organizações da sociedade civil e atores estratégicos. Nessa prioridade, insere-se na capacitação articulada os profissionais da segurança pública, do atendimento a migrantes nos aeroportos, do SUAS e SUS e da rede de atenção às mulheres. Ainda no atendimento, preveem-se debates com organizações internacionais visando enfatizar a atenção às pessoas traficadas na perspectiva de Direitos Humanos.

O Plano português prevê três estratégias: proteger, apoiar e integrar as pessoas em situação de tráfico. Na estratégia “proteger”, a medida tomada refere-se ao enquadramento da pessoa como vítima do tráfico e, em consequência disso, a concessão do período de reflexão entre 30 e 60 dias. Neste período a proteção é de responsabilidade do Estado português, inclusive com grupo de reflexão para trabalhar junto com a pessoa e uma comissão de

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avaliação que, mediante um plano técnico, de quem é efetivamente vítima de tráfico. Esse período trabalhado entre as vítimas e as equipes, sendo em acolhimento de emergência tem como meta a cooperação com as autoridades, no que se refere à investigação do crime. Nesse período, também ficam protegidas suas famílias em programas de proteção a testemunhas de acordo com a Lei 93/99 (Portugal, 1999).39 As atualizações desta Lei indicam que também estão cobertos pela Lei de Protecção às testemunhas, não somente os cônjuges legalizados, mas também aqueles que têm união estável.

No que se refere ao apoio às vítimas do tráfico de seres humanos, Portugal propõe diferentes iniciativas. No que se refere ao atendimento imediato, há a concessão de autorização para residência temporária que, diferentemente do período de reflexão, independe da colaboração com as autoridades do sistema judicial. Esse apoio tem como base a proteção quando o regresso ao país significa risco para as vítimas. Mesmo se considerando que o Plano prevê o imediato acesso à Embaixada ou Consulado do país de origem, ou seja, passaria a ser atendida naquele órgão, quando este não dispuser de serviços especializados em Portugal, então este assegurará a representação diplomática.

Ainda no apoio imediato, prevê-se o atendimento médico, psicológico, social e jurídico, por meio de equipas de multidisciplinares, inclusive com mediação cultural, de forma a promover a estabilização psico-emocional e a não revitimização. Esta proteção deverá ser estendida aos conviventes cônjuges, ascendentes e descendentes, como também devem diligenciar-se medidas especiais quando as vítimas forem crianças e jovens.

Após a concessão de estatuto de vítima de tráfico, o Estado português oferecerá um advogado oficioso e um tradutor, inclusive com ampla divulgação sobre os direitos que estão assegurados em termos legais e os procedimentos para pedido de indenização, assim como um “Serviço Telefónico de Apoio e Informação a Vítimas”.

Visando assegurar o atendimento, o Plano prevê o estabelecimento de parcerias governamentais e não governamentais, seja em Portugal ou com organizações dos países de origem e, para isso, a troca de experiência sobre boas práticas, a elaboração de guias para todos que estão envolvidos no acolhimento das situações de tráfico. Entre as metas das articulações da rede de atendimento está a compilação de dados sobre a realidade, inclusive entre oficiais de ligação do Ministério da Administração Interna e do Ministério da Justiça, na perspectiva de traçar de forma atualizada a realidade do tráfico, o perfil das vítimas, o rol de

39 Esta Lei foi modificada pelas Leis 29 de 4 de julho de 2008 e pela Lei 42 de 3 de setembro de

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organizações envolvidas e os protocolos de cooperação para proteção das vítimas.

Na perspectiva de integrar as vítimas à vida social e ao mercado de trabalho em Portugal, o Plano prevê acesso a programas oficiais de qualificação profissional e incentivo às empresas para empregabilidade com vínculos que potencializem a integração laboral. Caso a vítima deseje regressar ao seu país de origem, o Estado português oferecerá auxílio na sua integração.

No que se refere ao apoio financeiro às vítimas, o I PNETSH prevê o direcionamento de 20% dos bens e ativos apreendidos nas investigações/condenações para indenização e compensação devida à pessoa traficada “por forma a esta se poder reestruturar e empreender novas opções sem condicionalismos/constrangimentos na sua vida”.

Observando-se os dois Planos – Brasil e Portugal –, percebe-se que há diferenças significativas entre eles. O Brasil centrou o seu eixo “atendimento” na capacitação de uma rede já existente de SUS, SUAS e Política de direitos para Mulheres, ou seja, não inseriu exatamente os direitos das pessoas traficadas no seu Plano e parte da ideia de que as políticas sociais básicas desenvolverão suas ações. O que está posto de diferenciado é que há a previsão da criação de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e capacitação para os trabalhadores no Aeroporto Internacional de Guarulhos, lugar em que chegam deportados, inadmitidos e traficados brasileiros.

No caso do Plano Português, as ações estão balizadas nas orientações do Protocolo de Palermo e vinculam as metas a partir da garantia de atenção às vítimas, seja o atendimento físico e psicossocial, abrigamento e residência, proteção jurídica com tradução, quando for o caso, e indenização. No que se refere à proteção, prevê ainda a ampliação para os familiares e conviventes.

Embora em muitas metas, ambos os países tenham conseguido que se avançasse da palavra ‘atendimento’ para ‘atenção’ (uma compreensão da integralidade da pessoa e da indivisibilidade dos direitos), quando se especificam as diretrizes, há uma ausência da visão de autonomia das pessoas que estão em questão, como também não acontece a participação das pessoas traficadas como centro do processo decisório. No caso português, especificamente, a concessão do “período de reflexão”, aliada à Comissão de Avaliação visando ao status de vítima ou não de tráfico, retira da pessoa a autodeterminação e confere a outrem a decisão sobre ela.

O atendimento às pessoas em situação de tráfico é possível, porém, mesmo quando se quer a garantia de direitos, pode-se operar com instrumentalidades ser altamente regulatórias.

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Ao atenderem-se as pessoas, são elas que devem se enquadrar aos serviços oferecidos que, necessariamente não são o que efetivamente precisam. A estruturação do atendimento não colocou exatamente os/as cidadãos/ãs traficadas como parte integrante do processo decisório, isto é, como sujeitos e sujeitas que têm o que falar de suas vidas e as possibilidades de sentirem-se partícipes da política pública para além de usuárias/os, como geralmente os denominamos.

É neste processo de intensas contradições entre a garantia de direitos (preconizada nos documentos internacionais e nacionais) e os serviços disponibilizados (na conjuntura das políticas sociais dissociadas das econômicas) é que labutam os trabalhadores das políticas públicas e as pessoas traficadas serão atendidas. Nos marcos do neoliberalismo, a precarização do trabalho está em aprofundamento, ou seja, o atendimento se dá entre trabalhador (a) da política pública e pessoa destinatária de direitos da política pública, estando ambas em violação de direitos.

Arendt (2012) afirma que o princípio da política é a liberdade, que só pode ser exercida entre iguais em poder. Quando uns determinam e outros cumprem, a liberdade está perdida e, portanto, não se faz política. No exercício da política, é necessário o espaço entre pessoas, o lugar do não-existir nada para se construir a relação e a construção do movimento de quem está no processo. Uma das questões mais importantes trazidas pela autora é: “Tem a política ainda algum sentido?” (p.38), ou “a política e a conservação da vida são compatíveis entre si?” (p.39). Arendt enfatiza que a política se faz na relação, e o fim da política é quando se torna a ‘coisa política’. É, portanto, com base nesta autora que consideramos o atendimento em suas diferentes dimensões com vista à atenção integral, a possibilidade de fazer política.

O atendimento precisa responder às necessidades imediatas das pessoas em situação de tráfico e suas famílias. No entanto, tem o desafio de ir além, ou seja, precisa de um plano de atenção que contemple um projeto emancipatório com alteridade. Por isso, a atenção integral requer o trabalho articulado entre várias políticas num processo de permanente construção de possibilidades entre seus trabalhadores, na medida em que uma situação de tráfico não impacta somente a pessoa traficada e seus familiares, mas também o conjunto de trabalhadores envolvidos na atenção.

O investimento em capacitação da rede de atenção, nesta concepção, não é somente o desenvolvimento de técnicas, de aprendizagem de boas práticas, sobretudo é necessário que se forneça apoio aos trabalhadores dos serviços de atenção. Esse apoio significa cuidar de quem cuida, de forma que os trabalhadores das políticas construam também possibilidades de

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enfrentar as problemáticas do seu cotidiano, das condições e da carga de trabalho, da sujeição à filantropização que lhe impõem responsabilizarem-se por respostas que não são deles individualmente, mas do conjunto da política.

A realidade impactada em todas as dimensões para manter-se o des-envolvimento vai ser atendida por organizações, serviços e políticas com seus protocolos, normas e condicionalidades de quem pode e quem não pode ser atendido, ao contrário da complexidade expressa em cada situação. A realidade é um conjunto infinito de fios locais, translocais, globais, que se entrelaçam e não é possível compreender toda a sua complexidade, mas tateá- la e, ir em busca do seu desvelamento.

Em cada território, pessoas traficadas e trabalhadores dos serviços de atenção convivem com o mesmo processo de mundialização do capital e política social neoliberal. Portanto, a atenção a uma situação de tráfico é, em si, a possibilidade de compreender-se de forma mais profunda o funcionamento econômico, social e cultural de uma sociedade, cuja organização atinge todos os trabalhadores – os que labutam e os que são atendidos por esses.