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Hugo Corrêa

plesmente, êle estava começando a ver pelos olhos do andróide. Al- ter Ego estava de pé no meio da sala, voltado para a porta, piscan- do naturalmente. Os instrumentos movimentavain as pálpebras sintéticas simultaneamente com as de Antônio. O homem apertou um botão e a cópia voltou-se. Podia ver-se a si mesmo, sentado na cadeira, a cabeça escondida no capacete, os controles no joelho. Como o canal auditivo estava funcionando, não havia dúvida de que estava agora no meio da sala; podia ouvir os ruídos da rua e os que ele mesmo fazia quando mudava de posição na cadeira de braços. E cheiro. Como se respirasse através de Alter Ego. Os odo- rofones lhe davam a sensação de ar respirado em todos os lugares simultaneamente. Experimentou a voz da sua duplicata; assim que Alter Ego abriu a boca, Antônio ouviu-se falando do meio da sala.

— Como vai, Antônio? Você renasceu. Não se sente como um peixe num tanque cuja água acaba de ser trocada?

Antônio ouviu a sua própria voz com satisfação. Fêz Alter Ego caminhar pela sala, andar até a janela e, inclinando-se para fora, olhou a cidade que brilhava sob o céu ardente, coberto de helicóp- teros. Tudo parecia mais bonito do que quando êle usava os pró- prios olhos; o céu estava mais azul e mais luminoso, os arranha- céus mostravam cores mais alegres e brilhantes. Sim, Alter Ego estava-lhe mostrando a face verdadeira das coisas. As sensações que recebia através da sua cópia faziam-no sentir-se, subitamente, em paz com a humanidade. Na sua imaginação, renasceram as emoções da juventude, as memórias que o tempo tinha lentamen- te apagado, deixando apenas imagens desbotadas, voluntária ou involuntariamente esquecidas. Mas agora sentia-se dominado por uma coragem estranha e um desejo de relembrar-se. Podia contem- plar soberanamente a sua vida passada, fazer voltar pensamentos, aspirações juvenis, e a maneira pela qual êle tinha, pouco a pouco abandonado aquilo que mais amava para conquistar uma posi- ção.

— Lembra-se de quando queria ser ator e representar O Im- perador Jones? Como você passava semanas inteiras, com a ca- beça nos monólogos dele? Como namorou Valentina, a moça, que estudava com você na escola dramática e que o encorajou, porque ela tinha fé em você?

Alter Ego falava com voz clara, ressonante, com gestos de um homem habituado ao palco. Acendeu um cigarro, tragou fundo,

depois soltou um filête de fumaça. Parou na frente de um retrato de Antônio, em cima da escrivaninha, sorriso satisfeito no rosto, rodeado de fotografias, pequenas notas, quadros de avisos.

— Não há nada de mal em vender pasta de dentes, especial- mente quando é um produto bom e fabricado corretamente. Afinal de contas, isso tem até uma função social; garante dentes brancos e hálito agradável. Você pensou, alguma vez, em aplicar a suas próprias atividades as palavras de Jones a Smithers. “Não é falar grande que faz um homem ser grande — enquanto êle faz os outros acreditarem nisso?” Você o conseguiu como vendedor. O problema foi que você nunca acreditou nas grandes coisas que o grande ven- dedor Antônio dizia.

Alter Ego tragou fundo, e através da nuvem azulada exami- nou o homem na cadeira, cujo rosto estava escondido pelo capace- te. Maravilhas da eletrônica! Os papilofones lhe trouxeram o sabor e o leve calor do fumo.

— Fumar por controle remoto — que coisa fantástica para os homens práticos de hoje, que estão ansiosos para fazer todas as coisas, sem se arriscarem demais! Consegue o mesmo prazer que o fumante, sem correr nenhum dos riscos. É a satisfação do prin- cípio hedonístico.

Alter Ego abriu um pequeno armário, muito antigo e voltou- se para Antônio com um sorriso indefinível.

— Uma peça de museu, como tantos homens. Muitos homens de hoje não são apenas peça de museu, afinal de contas? Para co- meçar, são incapazes de satisfazer suas próprias aspirações, eles param todos na metade do caminho. Você não é exceção: queria ser ator, e acabou vendendo pasta de dentes porque isso dava mais di- nheiro. Você abandonou Valentina, porque ela era simples, não ti- nha ambições. Você tinha amigos, amigos de verdade, pessoas com quem podia conversar sobre qualquer número de coisas inúteis. Inúteis? Seus novos conhecidos somente entendem a linguagem da finança. “Isso dá dinheiro?” perguntam eles quando você ino- centemente tenta tirá-los de suas poltronas, mostrando-lhes o seu mundo interior onde as aspirações estão começando a enferrujar, fatalmente, resignadamente, como metal corroído pelo óxido. Você aprendeu a falar como eles, porém. Não melhor do que eles! Não há níveis naquele mundo.

teatral e enfrentou Antônio, apontando acusadoramente.

— E agora, a sua cópia mecânica irá fazer o que você não teve coragem de fazer com as próprias mãos.

O andróide parou, sem se mexer, olhando o capacete silen- cioso. Um silêncio denso inundou a sala. Os olhos de vidro cinti- laram. Lentamente, Alter Ego se voltou para o armário aberto. Seu rosto endureceu. Tomou uma pistola, examinou-a criticamente e avançou para o homem com estranha solenidade, como se atraves- sasse um templo durante uma cerimônia.

— O homem é o supremo inventor. Êle fêz estas armas para matar homens, e fêz cópias para executar a sentença em si mes- mo.

Depois de uma pausa curtíssima, acrescentou, secamente: — O círculo está fechado — e cuidadosamente mirou a pes- soa sentada na cadeira.

Agora, no escuro e no silêncio, com as enfermeiras metálicas rodopiando e sorrindo em tomo de mim, agora que todos se foram e tudo está só, agora que a Morte adeja perto de mim, agora que te- nho de encará-la sozinho, decidi-me a escrever a estória inteira da- quele caso maravilhoso. Tenho creions, pastéis e papel de desenho que nos dão aqui. Talvez os outros encontrem o papel de desenho, como se fora minha voz ecoando do passado e sussurrando lendas para eles. Talvez.

Terei de esconder o documento quando acabado; o armário de armazenamento será ótimo depósito, pois ainda há por lá boa quantidade de papel, e meu documento será tomado por folhas ain- da sem uso. As enfermeiras metálicas não podem ler, mas sempre queimam todos os papéis com a morte do paciente. Não estaria se- guro, portanto, em minha própria escrivaninha. Isso é parte do que faz daqui um inferno irrespirável — não estar apto a se comunicar com o mundo exterior. Dever-se-ia deixar um homem chegar lá fora e ver o progresso, as mulheres bonitas, as crianças, os cães e... oh, tantas coisas! Não se deveria engarrafar um homem como um es- pécime e jogá-lo esquecido em alguma prateleira. Batendo minhas frágeis asas contra a garrafa de minha prisão, escrevo.

No início éramos onze. A Divisão pode abrigar doze. Nós sa- bíamos que muitos de nós estávamos bem próximos da Morte e que logo mais teríamos vagas. Era bom saber que chegariam novas faces. Quatro de nós já vivíamos havia oito anos, ou mais, neste

No documento Magazine de Ficcao Cientifica 03 (páginas 81-85)

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