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A VOLTA DE ADALBEU

No documento Magazine de Ficcao Cientifica 03 (páginas 140-149)

mais curvos que os de Jean e sua pele mais escura. Tragou profun- damente e ficou encarando o amigo. Por fim respondeu:

— Você sabe que eu não posso mais ir à Terra... Não fiz curso algum sobre as novas religiões; creio que o meu tempo de exorcis- mos já passou. Por que não vai você mesmo?

Nesse momento uma pequena lâmpada vermelha piscou ao lado do grande painel branco, colocado acima do aparelho de raios-X. Com a ponta do rabo, que chicoteava a esmo por entre os papéis e relatórios, Jean apertou um botão na mesa. Na tela surgiu o vulto de um homem numa encruzilhada. Logo a seguir o técnico comprimiu novamente o botão e a figura sumiu da tela, que voltou à brancura inicial.

— Estou, sem gente — disse novamente, num tom entre la- múria e zanga —- e essa já é a terceira vez que esse camarada vem à encruzilhada e não obtém nada. NADA, entendeu? O próprio con- tínuo, o varredor da seção, já foi mandado noutra missão. Se um pobre coitado, quase analfabeto, pode ir à Terra, por que você, o importante Adalbeu da Seção de Aquecimento Central, não pode ir também? Será que já não mais existe camaradagem entre nós?

— Ouça — pediu Adalbeu — por quanto tempo é isso? — Quinze minutos, meia hora no máximo... Aceita?

O cigarro de Adalbeu foi ao chão e êle apagou-o com o pé. Levantou-se e começou a passear pela sala.

— Quinze minutos — repetiu — isso é fantástico! Lembro-me que no meu tempo a viagem demorava várias semanas... Tínhamos que sair lá pelas profundezas do território, entregar cartões visados ao canzarrão... Com mil bondades! Bem que era divertido!

Virou-se para o amigo, pensou um instante e em tom bem mais sério falou:

— Tenho outra idéia: eu fico por quinze minutos no seu lugar e você vai. Prefiro.

Jean sorria e fazia-lhe que “não” com a ponta do rabo. Levan- tou-se também e veio para junto de Adalbeu.

— Entenda, meu velho, que eu sou o chefe do departamen- to e não posso largar isso aqui durante o meu turno. Se acontece alguma coisa e eu não estou no posto, dão-me uma suspensão, rebaixam-me, sei lá! Não ando muito bem visto pelo chefão ultima- mente, sabe, e se encrenca alguma coisa e eu não estou... Entenda, diabo!

— Há outro problema, Jean. Eu não trabalho em exorcismos há muito, muito tempo. Sou da época dos gênios em garrafa, três pedidos, etc. Não sei nada das crendices atuais, da forma a tomar, daquilo que posso dar ou não. É arriscado para você e para mim.

Sentindo que já não seria muito difícil convencer o amigo, Jean voltou à carga.

— Quanto aos detalhes, eu o ajudo; a coisa é simplíssima. Veja, vou dar-lhe uma idéia: o país donde vem o chamado chama- se Brasil.

— Nunca ouvi falar nele — confessou Adalbeu. — Espero que usem garrafa, é como sei trabalhar ...

Saint-Petit procurava fazer um sorriso compreensivo.

— Sim, usam garrafa, mas não para que você saia pelo gar- galo, como nos seus tempos. Há um líquido na garrafa, que é uma oferenda para você percebe? Lá acreditam que somos, assim, como criançolas ou imbecilóides; dão-nos comidas, bebidas, charutos (horríveis, aqui entre nós) e fitas coloridas.

— Entendo — disse Adalbeu. — Parece-me grotesco voltarem a esse período; na Idade da Pedra já era mais ou menos assim. E quanto aos pedidos, que querem? O mesmo de sempre? Dinheiro, mulheres, poder?

Jeau Saint-Petit sentia-se um tanto humilhado com as ex- plicações. A Terra não havia progredido muito, e em relação aos departamentos de outros planetas o seu era um dos mais fracos.

— Isso não vem muito ao caso, mas... ahn... digamos que atravessem um período em que não nos aceitam como sendo mui- to poderosos. Resumindo: em geral pedem ninharias. Não dá nem para explicar; querem sarar de alguma doençazinha, um aumento no salário, o encontro com a pequena domingo à tarde, etc.

A boca de Adalbeu se abriu.

— Pela pureza dos Bórgias! Não estamos assim humilhados? E os seus diabos não fazem nada para voltarmos à glória antiga?

— Pois lhe digo que os meus diabos fazem tudo o que é diabò- licamente possível fazer; mas não tem adiantado muito. A Terra está um tanto materialista demais, e esse país, esse tal Brasil, ain- da é um dos poucos que nos dá um certo valor. Oitenta por cento da população terrestre nos tem em completo descrédito.

Adalbeu ainda ficou pensativo por algum tempo, mas final- mente concordou em ir; já que a coisa ficava assim posta, em ter-

mos de amizade, mostraria que podiam contar com a sua.

Momentos antes de partir, já dentro da câmara de transpor- te, ainda ouviu as últimas considerações de Saint-Petit.

— E lembre-se, nada de exageros. Satisfaça o pedido de ma- neira simples e volte. É tarefa das mais fáceis. Boa sorte!

A primeira coisa a chamar a atenção de Adalbeu, ao chegar, foi a estranha emanação espiritual que emitia o seu Senhor (bo- las! os duzentos anos que servira como gênio de garrafa ainda o levavam a chamar de “Senhor” àquele a quem deveria satisfazer o pedido).

Adalbeu permaneceu invisível ao lado do poste. Não haveria tanta pressa assim, e dessa forma poderia compreender melhor como a coisa era feita atualmente.

A encruzilhada estava deserta; numa das ruas as casas lhe pareceram simplesmente miseráveis, enquanto na outra as mora- dias eram bem maiores e mais vistosas, conquanto nessa outra a maior parte do espaço fosse ocupado por terrenos baldios. A ilumi- nação era bem fraca.

Voltou a atenção para as oferendas e sentiu vontade de rir- se: era mesmo como lhe dissera Jean: charutos, um pòzinho ama- relo, um monte de fitas e — lá estava ela! — a garrafa.

Sentado em frente a tudo, com as pernas cruzadas, estava um homem ainda jovem. Tinha uma folha de papel na mão e rezava em voz baixa. Adalbeu simpatizou com o tipo.

Concentrou-se então na análise da emanação espiritual de seu Sen... do pedinte. Não fazia muito sentido: nela não distinguiu nem fé, nem ardor religioso, nem desespero, nem medo. Não con- seguiu classificar que sentimento poderia ser aquele.

Antes de materiálizar-se, ainda teve um estranho pressenti- mento: sempre havia a possibilidade de o pedido feito ser de exe- cução impossível; nesse caso, pela Lei do Mal, não poderia desma- terializar-se de novo, e portanto voltar para casa, enquanto não executasse a ordem.

“Há uma chance em um milhão de êle pedir-me o impossível; e, mesmo assim, ainda posso dar-lhe a chance de fazer-me um outro pedido.”

dora possível; fêz-se semelhante ao seu S. . . invocante, e meteu-se num terno preto.

O jovem ergueu o olhar lentamente, sem demonstrar medo ou surpresa alguma.

— Enfim! De forma que existes mesmo, hem?

— Aqui estou para servir-vos, meu. Senhor! (Ah! paciência, jamais conseguiria agir de outra forma, diferente daquela dos áure- os tempos em que saía esfumaçante de uma garrafa.) Fazei-me um pedido, e eu vos satisfarei!!!

Meu Senhor levantou-se, amassou o papel com as orações, jogando-o em cima das oferendas (mau gosto ou simples má edu- cação? — pensou, o diabo, e bateu com as mãos várias vezes na calça, para limpá-las.

Abaixou-se de novo, pegou a garrafa de cachaça (minha ofe- renda!), meteu-a debaixo do braço, deu-lhe as costas e afastou-se.

— Um momento... !

O homem parou e voltou-lhe meio corpo. Tinha a expressão serena, como se aquela situação não o estivesse preocupando mui- to.

— O pedido, Senhor... Que quereis de mim? Basta uma pala- vra, um pensamento, se quiserdes, e eu vos satisfarei! Pedi!

Seu Senhor olhou-o de alto a baixo; mediu-o longamente e com duas passadas despreocupadas, chegou bem próximo de Adalbeu.

— Que quero? Talvez queira tudo e ao mesmo tempo nada. Mas, não se preocupe, amigo, que não desejo gastar uma fração que seja do seu poder. Talvez devesse desculpar-me, mas o caso é que fiz isso apenas como uma experiência; não ne interessam os pedidos. Acredite ou não, sou ainda daquelas raras criaturas que sabem o que querem, e mais do que isso, como consegui-lo. Amor... Fortuna... Glória... Poder... tenho um pouco de tudo isso, na dose certa.

E com um olhar de desafio:

— E o que ainda não tenho, conseguirei por mim mesmo, não tenha a mínima dúvida!

Ávido por encontrar um ponto fraco naquele homem, Adal- beu esmiuçava-lhe a mente: apenas calma e serenidade. Não que ali houvesse conformismo e desânimo, pelo contrário: havia desejo, insatisfação, sonhos, ideais, curiosidade...

— Desculpe-me, amigo, mas tenho mais que fazer... vá com Deus...

— Não! Fazei outro pedido!

— Mas não estou lhe pedindo nada. Já lhe disse: não quero nada! Mesmo!

— Ouça, digo ouvi... eu poderia tomar esse “vá com Deus” como um pedido, e ir-me mas. . . compreendei!... esse é de impos- sível execução.

— É, mas não posso perder meu tempo aqui em discussões. Se quer ficar, fique, se quer ir, vá-se, mas não me aborreça. Boa noite.

Meio horrorizado, Adalbeu viu o homem dar-lhe novamente as costas e dessa vez afastar-se rapidamente.

— Pelo amor do Demo! Que faço? Como arrancar um pedido desse demente ? Maçada !... Bem dizia eu a Jean que isso ainda nos arranjaria encrenca.

No fim da rua o vulto do meu Senhor já quase sumia na fraca neblina. Impedido de desmaterializar-se pela Lei do Mal, Adalbeu não teve outra escolha senão a de desatar na corrida para não perder de vista o homem. Como esse não estivesse andando mui- to rápido, logo o alcançou e pôde reduzir a correria a um simples caminhar. Não se aproximou, porém; apenas seguia-o a uma certa distância a fim de não o perder de vista. Depois de dobrar a esqui- na, o homem seguiu mais um quarteirão e parou a alguns metros da outra esquina. Pouco depois chegava um ônibus; o homem su- biu e Adalbeu meteu-se no veículo atrás dele.

— Você por aqui? Se resolveu tentar alguma coisa, perde o seu tempo.

— Ei! Vai querer viajar sem pagar a passagem?

— Como ? Ahn... — rapidamente Adalbeu imaginou o que se passava: aquele transportador era público, mas era preciso pagar. Ah! mas com o quê ? Não materializara dinheiro algum nos bolsos, e além disso não o poderia mesmo ter feito sem saber que moeda usavam no Brasil.

— Olhe, eu... — humilhado, lançou um olhar suplicante para o seu “Senhor”, que desatou a rir.

— Como é, paga ou não?

A mão negra do cobrador segurou o diabo pela gola do paletó. Adalbeu ainda esboçou uma reação, mas recebeu terrível tranco-

que o mandou de encontro a um dos assentos. A velha que viajava acompanhada de um menino, mais à frente, deu um grito; a mu- latinha do último banco gritou “polícia!” e o cobrador, depois do sopapo, exclamou algumas palavras que Adalbeu sabia não serem boa coisa.

Seu “Senhor” levantou-se e veio em seu auxílio. — Calma, êle é meu amigo; eu pago a dele.

Sentados lado a lado, os dois permaneceram em silêncio al- guns bons minutos. A seguir Adalbeu tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos; sua materialização havia sido das boas, pois ainda sentia dores nas costas pelo tranco que levara do cobrador e sentia o suor escorrer-lhe pelo corpo.

— Que faz você atrás de mim, afinal ?

— O pedido! Não entendeis ? Não posso voltar sem um pedido satisfeito. Qualquer coisa serve. Simplesmente sugira.

— É realmente fantástico. Juro-lhe que por, essa eu não es- perava. Acontece, amigo, que, como eu lhe disse, estou decidido a não lhe pedir nada. Trate pois de arranjar um emprego e aprender a andar no bom caminho daqui por diante.

— O QUÊ!!??

A voz de Adalbeu elevara-se bem acima do que seria normal numa conversa em um ônibus quase vazio às três horas da ma- drugada; novamente a velha e o menino o olharam com cara feia, a mulatinha chegou a levantar-se, assustada, e o cobrador simples- mente deu um murro no suporte metálico, como a indicar que logo, logo, alguém seria posto para fora.

— Vovó! Aquele homem tem rabo!

O “Senhor”, o cobrador, a velha, a mulatinha (e dessa vez o próprio motorista, que havia parado num ponto) olharam para Adalbeu: chicoteando molemente ao lado de sua perna esquerda, lá estava o rabo. Fora sempre tão cômoda a posse de uma cauda, que êle sempre se fazia presente com ela, já que isso não importava em grande coisa.

Não dessa vez.

O motorista levantou-se e veio até mais perto para ver me- lhor; trocou um olhar sinistro com o cobrador e disse aos dois:

— Vamos, desçam antes que eu chame um guarda.

— Moço! — gritou a velha — há uma viatura parada ali na esquina.

Adalbeu e seu “Senhor” ficaram na expectativa, enquanto o garoto descia do ônibus e ia buscar a polícia. Os policiais que pouco depois entraram e dirigiram-se a eles pareciam dispostos a resolver a situação de maneira pouco cortês (afinal não é impunemente que se aborrece três pacíficos policiais que tiveram de interromper sua audição de música suave pela Rádio Bandeirantes...).

— Vocês dois, nos acompanhem, e não tentem oferecer resis- tência... VAMOS!

Adalbeu viu que seu “Senhor” já começava a perder a paciên- cia. — Olhem aqui, seus imbecis...

Jean Saint-Petit sentiu um cheiro horrível vindo do seu lado direito, junto à máquina transportadora; virou-se e seu queixo quase se deslocou quando abriu a boca.

— Diabo do inferno! que faz você aqui nesse estado?

A face de Adalbeu estampava ao mesmo tempo furor e alívio; a passos lentos saiu da máquina e chegou-se até a mesa de Jean.

— Não deixa de ter sido uma boa lição para mim. Ajudar os amigos... Que fêz você com todo o seu progresso, que não conse- guiu arranjar um meio de auxiliar-me? Caio nas mãos de um cre- tino amalucado — se é assim que se pode chamar a um camarada daqueles! — e por pouco, meu caro Jean, que o seu amigo Adalbeu não fica para sempre naquele céu.

— Pelo menos você está aqui de volta. Mas que estado é esse, meu velho? E cuidado para não sujar meu laboratório! Onde se meteu,você? dentro duma privada ou andou brincando de escon- de-esconde pelos encanamentos de esgoto?

— Oh! nada disso... — a voz de Adalbeu era pura e sofrida ironia — o que se deu foi algo muito mais simples. Imagine que o sujeito do chamado não queria nada, percebe ? Chamou-me só por curiosidade, para fazer uma experiência ou algo semelhante. Tentei por todos os jeitos fazê-lo entender que devia fazer-me um pedido, mas quanto mais eu insistia, mais êle teimava em não que- rer fazê-lo. Por fim, como eu o estivesse seguindo por toda parte, acabamos arranjando encrenca e indo parar na polícia. Quando o delegado nos disse que pela confusão criada iríamos ficar os dois por uma semana na prisão... bem, nesse ponto êle achou que isso era demais, perdeu de todo a paciência e disse uma meia dúzia de palavrões. É essa a história.

— Essa a história!? E o pedido, e esse seu estado?

— Bem, digo... êle na verdade não fêz nenhum pedido clara- mente, mas quando êle mandou os policiais mais a mim a um certo lugar, eu tomei a frase como um pedido.

— Mas você está aqui agora.

— Oh! — Adalbeu fêz um muxoxo com o rabo — êle não espe- cificou o tempo que deveríamos permanecer por lá.

E rindo:

— De minha parte fiquei aliviado por sair da Terra, mas você precisava ver era a cara dos guardas !...

Como já disse outras vezes, é difícil para um químico como eu — isolado em minha torre de marfim — demonstrar competên- cia nos aspectos práticos dessa ciência. Assim sendo, é sempre com o coração nas mãos que vejo alguém aproximar-se de mim com um problema terra-a-terra em química. O resultado é sempre uma humilhação pessoal.

Bem, nem sempre.

Certa vez, nos dias em que eu ainda estudava para o meu doutoramento, minha mulher chegou até mim, alarmada. — Acon- teceu alguma coisa com minha aliança — disse ela.

Encolhi-me todo, pois embora ainda estivesse no início de minha carreira como químico já tivera oportunidade de demonstrar em várias ocasiões a minha incompetência. Não me agradou por- tanto a perspectiva de tê-la de fazer novamente.

— O que aconteceu? — perguntei.

-— Ela virou prata — respondeu, não sem antes lançar-me um olhar de censura.

Encarei-a estupefato. — Mas isso é impossível!

Ela passou-me o anel e esse, na verdade, possuía a aparência de prata, embora fosse sua aliança de casamento, com gravação e tudo. Ela ali esperava minha resposta e eu, pouco à vontade, sen- tia sua suspeita de que eu lhe tivesse comprado um anel de ouro ordinário. Contudo eu não podia pensar em nada!

— Simplesmente não posso explicar isso — disse eu. — Com

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