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Magazine de Ficcao Cientifica 03

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Magazine de Ficção Científica

N0 3 JUNHO DE 1970 Editorial

Contos Estrangeiros

Preto + Branco = Verde - Evelyn E. Smith 6 A Metamorfose - Damon Knight 50

Hora de Partir - Douglas Angus 53 Depois do Enfer - Philip Lathan 60 Alter Ego - Hugo Correa 81

O Décimo Segundo Leito - Dean R. Koontz 85 A Estrada Real Para Lá - Robert M. Green Jr. 98 Fora de Tempo e de Lugar - George Collyn 115 Bichos - Charles Harness 131

Conto Brasileiro

A Volta de Adalbeu - Walter Martins 140 Ciência

O Sétimo Metal - Isaac Asimov 149 Cartas

Capa de Jack Gaughan

José Bertaso Filho, DIRETOR

Jeronymo Monteiro, DIRETOR DE REDAÇÃO João Freire, GERENTE

Associação Brasileira de Ficção Cientifica, CONSULTOR CIENTÍFICO

Magazine de Ficção Científica é a edição brasileira de “The Magazine of Fantasy and Science Fiction”’ — Copyright © Mercury Press, Inc., New York. É publicada men-salmente pela Revista do Globo S. A.

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Recebendo este terceiro número do “Magazine de Ficção Científica” o leitor brasileiro já pode verificar que tem nas mãos um pequeno tesouro e, o que é melhor, um tesouro que se oferece todos os meses à sua gulodice intelectual e literária. A FC é realmente um tesouro no campo da literatura: um gênero que, nascido não faz muito tempo, conquista terreno rapidamente, impondo-se à prefe-rência das pessoas que, gostando de ler, se encontram subitamen-te ansubitamen-te um panorama extraordinário que só pode ser visto quando corajosamente se afastam as cortinas que impediam à imaginação o avanço no espaço e no tempo — cortinas que permanecem cer-radas à literatura tradicional. Nesta época tumultuada, em que os povos se agitam, a ciência e a técnica avançam como carros de assalto, o homem de pensamento precisa de novos meios para se exprimir. Onde buscar esses novos meios? Na ciência e na técnica, no tumulto do pensamento moderno. É a ficção científica que nos dá a possibilidade dessa realização. Por isso é a literatura do mo-mento e é, principalmente, a literatura do futuro: progride, cresce, se avoluma juntamente com a ciência e a técnica, juntamente com o pensamento, as dúvidas, as reivindicações do nosso século. É o retrato mais válido desta época de transição que estamos vivendo, momento em que os cientistas moldam, em todos os campos, o mundo futuro.

Temos neste número uma noveleta de Evelyn E. Smith: “Pre-to + Branco = Verde”. É um estranho trabalho, cheio de humor,

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em que se debatem o problema racial, o problema sociológico, o choque das gerações.

“Metamorfose”, do grande Damon Knight é um conto curti-nho, que poderíamos chamar de brincadeira literária, deliciosa e dramática fantasia de amor e ciúme com feitiçaria pelo meio.

O conto nacional é de Walter Martins o qual; que nos lembre-mos, só não juntou o cômico à tragédia em sua estória “Tuj” (publi-cada na coletânea da EDART “Além, do Espaço e do Tempo”). Em outras, como “Ohmmmmmml”, “O Forte” ou “O olho”, o autor tira das situações embaraçosas em que vivem suas personagens, uma deliciosa comicidade irônica. Neste conto, “A volta de Adalbeu”, ele deixa a FC e se diverte no mundo da fantasia, fazendo o diabo com o pobre diabo Adalbeu.

Queremos destacar, ainda o 2.° artigo “metálico” de Asimov, “O Sétimo Metal”, que continua o assunto começado no n.° 2 e se encerrará no n.° 4. É, como das outras vezes, uma estória rigoro-samente científica, com o sabor delicioso que Asimov sabe dar ao que escreve.

Os nossos leitores têm a liberdade de nos escrever sobre qualquer assunto ligado à FC, seja no que se refere aos trabalhos que estamos publicando, seja sobre coisas nacionais ou estrangei-ras que ainda não apareceram em nossas páginas. Gostaremos de manter diálogo com todos, através da seção de Correspondência desta revista.

As cartas deverão ser enviadas à Av. Vieira de Carvalho, 197 — ap. 9-D — São Paulo -— Z.P. 2, para

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Embora, ao contrário do jovem David Copperfield, eu não afirme ter tido experiência pessoal de acontecimentos ocorridos antes que eu tivesse sido sequer concebido — as ocorrências que finalmente levaram a meu aparecimento neste plano e neste plane-ta foram-me conplane-tadas plane-tanplane-tas vezes e tão minuciosamente por todos quantos tiveram qualquer relação com um acontecimento que nem mesmo minha mãe poderia descrever como venturoso — que eu me sinto muito mais habilitado a relatá-lo como foi, por assim dizer, do que os principais participantes ou seus manipuladores bem in-tencionados e por isso duplamente culpados. Minha história... não, não ainda minha história, mas história daqueles dois jovens que, embora não se amassem, patrocinaram meu nascimento, poderia ter um início arbitrário na tarde em que Gherkin, depois de deixar seu grupo de manifestantes e concluir seu dia colegial, entrou na Bobbery Shop, com expressão preocupada na amorfa fisionomia adolescente. Essa abstração não foi percebida por Calliope, pois ela estava cheia de notícias e ansiosa por contá-las. Por isso, embora sua primeira pergunta: — “Em que diabo de lugar você desapare-ceu saxta-feira à noite?” — desse superficialmente impressão de expressar bondoso interesse, era apenas retórica. Isso porque, tão logo êle abriu a boca para contar as coisas estranhas e maravilho-sas que lhe haviam ocorrido na noite da sexta-feira em questão, ela se pôs a relatar borbulhantemente suas próprias e insignificantes aventuras.

PRETO + BRANCO = VERDE

Evelyn E. Smith

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— Fiquei cansada de esperar que você aparecesse, por isso fui sozinha à boca de Mattie e — imagine o que aconteceu! — nós fomos todos em cana. . . ou quase, pelo menos! Tínhamos acaba-do de acender quanacaba-do a justa apareceu e arrastou-nos toacaba-dos para a central . . . muito pouco violentamente — acrescentou, pesaro-sa, pois sabia que uma quase prisão ou mesmo uma prisão total sem confrontação dinâmica era insuficiente para qualificá-la como autêntica ativista. — Depois descobriram que a erva que haviam apreendido na boca de Mattie não era senão erva-dos-gatos e pare-ce que ainda não existe lei proibindo fumar isso. Então mandaram que déssemos o fora. Sem dar dinheiro para condução, nem coisa nenhuma! — Franziu a testa. — Mas você acha que era com aquilo que estávamos sempre ficando baratinados na boca de Mattie, com pura, simples e antiquada Nepeta Cataria?

— Bem, gatos ficam baratinados com aquele negócio — disse Gherkin, ainda muito preocupado, quase ansioso, se alguém tives-se tido a decência de reparar — por que gente não haveria de ficar? Por falar em gatos. . .

— Mas os preços que Mattie estava cobrando! Por um negócio que a gente podia comprar em qualquer lugar! E ela parecia tão hu-mana, você sabe o que quero dizer, que nunca imaginei que fosse uma traidora. O pior é que agora não tenho lugar algum para ir na próxima sextfeira. Não é fácil atualmente encontrar uma boca a-gradável e respeitável.

A essa altura, reconheceu Gherkin, não apenas como ouvin-te semelhanouvin-te ao muro das lamentações, mas como um indivíduo com suficiente identidade própria para sofrer junto com ela... e isso era bem feito para êle por ter-lhe dado o cano: — O que significa que você também não terá onde ir na próxima sexta-feira, a menos que tenha descoberto outro lugar onde eu não seja bem recebida... e nesse caso você pode falar francamente. Eu não sou de fazer cena onde não me queiram.

— Se você pelo menos calasse a boca e me desse oportunida-de. . . Eu descobri um lugar novo. Por isso é que não fui na boca de Mattie. Fiz uma viagem. — Estava cheio de si porque a coisa fora para valer; no fim-de-semana havia descoberto a chave que abria o universo. — Fiquei baratinado o tempo todo e foi. . . — fêz uma pausa para procurar a palavra exata — foi o fino. Disseram que eu podia voltar na próxima semana e levar um amigo comigo, por

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isso.. . — Seu gesto de convite foi quase palaciano.

Calliope estava impressionada, contente e assustada.

— Você quer dizer. . . ácido? Puxa, mas pode ser perigoso: Eu sei que os conservadores estão sempre tentando abafar tudo quanto realmente tem significação, mas acontece que sei disso por boa autoridade, foi um estudante de biologia quem me disse que é verdade mesmo. O negócio pode atrapalhar os cromossomos — você entende o que quero dizer? — e quando a gente tem filhos eles nascem aleijados ou coisa semelhante...

— Não era ácido! Pensa que eu sou bobo? Era outra coisa, uma coisa nova e... bem... uma coisa nova. Absolutamente inofen-siva, segundo garantiu aquele gato, sem efeitos secundários incon-venientes, sem formação de hábito, sem nada.

Como podia êle ser tão crédulo, como se atrevia a ser tão cré-dulo e exibir sua superprivilegiada inocência diante dela?

— Como é que você pode ser ingênuo assim, homem? Acha que eles iam chegar e dizer que em cada viagenzinha que você fizes-se deixaria um pedaço da mente no caminho? Posso garantir-lhe que essa não é a espécie de conversa capaz de atrair fregueses. A propósito, quanta gaita tomaram de você?

Êle hesitou e finalmente admitiu: — Nem um centavo. Disse-ram que estavam fazendo isso... bem... como um serviço público...

— Ai, ai, ai! — A fisionomia de Calliope estava revoltada, sua voz estava revoltada, até mesmo a maneira como enfiou a colheri-nha na bola de sorvete de pistache estava revoltada. — Você engo-liu isso? Nunca lhe contaram a história da cobra e do passarinho? Isso está cheirando muito a operação comercial. Claro, é de graça na primeira vez, é muito barato na segunda e talvez mesmo na ter-ceira. Depois, quando você está fisgado e chorando de joelhos, eles começam a apertar o parafuso. É o sistema, menino.

— Mas esses gatos não fazem parte do sistema. Vêm de fora do sistema. — Interrompeu-se e depois dando impressão muito fal-sa enquanto se levantava disse: — Eles são diferentes.

— Você é diferente. Eu sou diferente. Mas não pode haver alguém mais diferente do que isso? Preto, branco, macho, fêmea, não bastariam essas diferenças?

— Que importância tem isso? — disse êle impacientemente. — Eram bonitos; o negócio todo era bonito.

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bem feia e êle pensara, até onde era ainda capaz de pensar depois de o negócio ter começado, que ia ser uma daquelas viagens hor-ríveis de que a gente ouve falar, mas nunca espera que aconteça a uma pessoa estável e quimicamente equilibrada como a gente. Calliope perguntou-lhe exatamente, como tomara o negócio; mas êle não conseguia lembrar-se; sabia apenas que não o havia engo-lido nem fumado, nem lhe tinham dado unia injeção.

— Talvez tenha sido uma espécie de gás. Lembro-me de ter sentido um cheiro engraçado no meio da coisa, mas me disseram que era ar fresco, que eu não reconhecia porque nunca tivera opor-tunidade de cheirá-lo antes.

Fosse o que fosse, haviam-lhe aplicado aquilo, que o deixara enjoado, fisicamente enjoado, a principio como quando a gente se sente muito mal numa viagem por mar, depois pior e ainda pior, irradiando da boca do estômago pelas extremidades até os dedos e a cabeça ficarem completamente entorpecidos e trêmulos; de-pois, inexoravelmente, começara a sentir-se virando de dentro para fora, pouco a pouco e angustiantemente. Era como se estivesse em algum lugar à distância, vendo. . . não, não exatamente vendo, mas observando seu próprio reviramento. Todas as suas entranhas rastejavam sobre êle como serpentes e apertavam, cada vez mais, comprimindo o que restava dêle em uma pequena bola preta com o cérebro encolhido dentro gritando de terror até reduzir-se a nada e êle apagar-se no infinito.

Quando voltou à consciência, viu que fora... montado de novo, não só em outro lugar, mas em outro onde.

— Como outro mundo, sabe?

— Você quer dizer como Oz, a Terra do Nunca Nunca, Atrás do Espelho, coisas dessa espécie?

Êle hesitou, mas finalmente concordou : — Sim. — Como se fosse mais fácil isso do que tentar dar-lhe êle próprio um nome. Tentou decompor tudo em pormenores; pudera ver cores que não existiam no espectro que conhecia... ouvira sons que eram... bem... não tinha palavras para descrevê-los, mas a parte feia estava aca-bada, liquidada, dissolvida.

A partir de então tudo era beleza.

Como êle parecia estar em queda livre — o negócio eviden-temente não era desprovido de efeitos secundários, ainda que lhe

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tivessem afirmado o contrário — ela perguntou quem ou o que tava com êle nesse universo de sonho simplista, não porque es-tivesse interessada (já ouvira alucinações melhores), mas porque queria trazê-lo de volta para o que, fosse o que fosse, passava pre-sentemente por realidade. Depois de uma pausa, êle finalmente falou que era gente... “uma espécie” de gente. E entre essa gente uma pessoa especial. Em suma, uma garota. Mas... lá vinha êle outra vez... diferente de todas as outras garotas que já conhecera, realmente diferente. Em primeiro lugar, ela era verde.

— Você está realmente obcecado por esse negócio de côr, não está, menino? Preto e branco não são o bastante para você como para a maioria das pessoas; você precisa ter verde também!

— Tudo lá... tudo que era de lá, que vivia lá... era verde — respondeu êle, muito defensivamente. — Não quero dizer que sua pele fosse realmente verde.. .

— Bem, isso já é um alívio. Já temos suficientes problemas cromáticos...

— Quero dizer que tinham pêlos verdes, por isso não sei de que côr era sua pele.

— Sua garota de fora deste mundo era coberta de pêlos como um gorila? Uma gorila verde? Bem, devo admitir que isso sem dúvida é diferente!

Gherkin estava aborrecido.

— Ela absolutamente não era como um gorila. Seus pêlos eram macios e delicados como flocos...

Calliope fêz uma careta e Gherkin sorriu relutante, corrigin-do depois para “... como penugem ou velucorrigin-do.”

— Suponho que ela tinha cauda também.

— Bem, claro, isso é que a tornava tão bonita. Quero dizer, eu não tenho a menor idéia até que ponto um rabo pode ser bárbaro quando a gente.. . — começou êle, interrompendo-se depois.

— Quer dizer que você andou com essa pessoa de rabo ver-de?

Êle não falou, mas pela expressão obscenamente rapsódica em sua fisionomia, ela pôde ver que havia andado e que fora uma boa cena.

— Que diabo, Callie — explodiu êle — ela só existia em minha mente, portanto que importância tem isso? Eu já tive sonhos iguais a esse antes.

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Pela maneira como êle falava, pela aparência que tinha, po-rém, nunca antes, sonhando ou acordado, andara com alguém como aquela garota verde. Não que êle tivesse muita experiência sexual; e Calliope, para seu próprio embaraço, não tinha a menor experiência. Contudo, embora virgem por circunstâncias, ela sabia que poderia ser mais bárbara do que qualquer garota verde, mais bárbara do que qualquer garota em todo o universo, tão logo apren-desse bem como era a coisa. As vezes pensava que a razão pela qual Gherkin nunca tentara uma interação física com ela era ter medo de iniciar uma principiante e às vezes imaginava que talvez êle tivesse alguma espécie de inibição sexual (já lera teorias sobre o assunto), mas na maioria das vezes achava que, por mais liberal e humanístico por dentro que êle fosse, aquele negócio da pele ainda o preocupava. Nesse caso, poder-se-ia dizer que sua alucinação de andar com uma garota de pêlos verdes significava que estava tentando vencer sua própria rejeição inconsciente de Calliope. Mas essa era maneira muito psicológica de encarar as coisas. Não, a verdade provavelmente é que êle pensava nela como em uma alma irmã.

Pela maneira como Gherkin sorria consigo mesmo Calliope pôde ver que para êle a garota verde era mais do que mera proje-ção de fantasia com a qual tivesse passado um imaginário fim-de-semana. Poderia haver uma explicação racional.

— Talvez enquanto estava pensando em flocos verdes, você estivesse realmente andando com uma das garotas que faziam a viagem em sua companhia.

— Isso é que é engraçado; não havia ninguém mais fazendo a viagem. Ninguém que eu tenha visto, pelo menos, exceto os gatos que organizavam o negócio, e eu tenho a idéia de que eles realmen-te não participavam. Eram mais do tipo frio, científico.

Calliope ficou contente por ter uma razão-valor para verbali-zar seu choque.

— Mas isso! é errado. Fazer uma viagem sozinho. . . isso é doentio, completamente pervertido. Viajar é coisa que precisa ser feita em conjunto, senão é apenas uma fuga, você sabe o que eu quero dizer. E os verdinhos, aqueles que você têm na mente, não contam.

— De fato — disse êle — depois de ter chegado a... aonde quer que fosse... tinha um nome, mas êle o perdera em algum lugar na

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volta. . . vira outras pessoas, à distância, pessoas de sua própria espécie, sem pêlos e, sim, sim, sim, pretos tanto quanto brancos. “Na verdade, não prestara muita atenção. Quem se daria ao traba-lho de olhar seres humanos com suas feias e lisas peles plásticas rosadas (ou pardas ou pretas), quando havia a gente verde de pêlos macios para ser olhada, garotas como... que diabo, perdera o nome dela também... para serem olhadas e amadas... ? Naturalmente — disse depressa antes que Calliope tivesse qualquer oportunidade — sabia que os sêres humanos não importavam mais do que a gente verde quando se tratava da realidade; deviam ter existido também só na sua mente. Mas parecia uma experiência de grupo, de modo que era uma boa cena.

— Não — disse-lhe ela — fora mau, por melhor que pare-cesse, porque a solidão era a raiz de todos os males, levando à alienação, à perda de identidade, a toda espécie de desligamento. O instinto tribal era o único instinto sólido que o homem tinha, o único que podia ajudá-lo.

Gherkin disse-lhe que parasse de fazer sermão; ela estava parecendo uma mãe e mãe êle já tinha demais.

— Tentei falar com você pelo telefone durante todo o fim-de-semana — disse Callie. — Havia dois concertos e uma manifesta-ção no Central Park, à qual pensei que poderíamos ir juntos, mas ninguém atendeu em sua casa.

E que teria acontecido se outra pessoa, que não Gherkin, ti-vesse atendido, perguntou ela a si mesma, pois nunca tivera opor-tunidade de telefonar-lhe em casa antes, uma vez que êle quase sempre estava no lugar onde ela também estava. Ela não conhecia os pais dele, nem êle os dela, pois hoje em dia ninguém apresenta ninguém aos pais. A gente não deixa que eles entrem em coisa al-guma que seja real e decente; conserva-os em seu lugar, enquanto ainda há lugar para eles., Nem sequer lhes conta seus nomes reais e pessoais, dados pelo grupo. No entanto, teriam ambos se confor-mado rigorosamente com o padrão tribal se eles e seus pais fossem diferentes do que eram?

A mãe de Calliope era professora primária; o pai trabalhava nos Correios. Ambos se dedicavam a todas as causas justas, sendo que sua mãe se envolvia mais por causa de seu trabalho — esperava-se que uma professora fosse militante, se soubesse o que lhe convinha — mas no íntimo nenhum deles era o que sua filha

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teria considerado verdadeiramente engajado. Haviam trabalhado tanto para chegar à posição de classe média que não a abando-nariam levianamente ao grito de “Pai Tomás” e, embora fossem bastante espertos para não se abrir e dizer isso, alguns de seus melhores amigos eram pessoas brancas, entre as quais em geral se sentiam pouco à vontade.

Tanto o Sr. como a Sra. Fillmore haviam nascido no Harlem antes que a imprensa tivesse começado a chamá-lo de “gueto”.

— Quando eu era menino, as pessoas usavam a palavra gue-to para designar um lugar onde viviam judeus —- costumava dizer o Sr. Fillmore, perplexo. -— Falavam mesmo em um “Gueto Dou-rado”, onde viviam judeus ricos. Como é que de repente passou a significar um bairro de negros pobres?

— Ouça o que eu digo, é tudo culpa daquele Sammy Davis Jr. — falava a velha tia Ada, tia do Sr. Fillmore, que, embora tives-se emigrado do Sul meio século antes, recusava deixar-tives-se recons-truir.

— O que eu digo é que nada tenho contra judeus, mas quan-do a gente nasceu com uma desvantagem, por que ir procurar ou-tra?

E quando seu sobrinho acentuava que Sammy Davis Jr. pa-recia estar indo muito bem apesar de ambas as desvantagens, ela dizia: — Judeus sempre ajudam judeus.

Callie nascera no Harlem, mas ela e seus pais moravam en-tão em um moderno e imponente conjunto residencial de pessoas de renda média no Upper West Side, que era integrado, no sentido de que qualquer negro capaz de pagar os exorbitantes aluguéis e apresentar as severas referências exigidas era bem recebido. Con-tudo, os Fillmore estavam começando a achá-lo cada vez menos atraente. As paredes eram tão finas que se podia ouvir tudo quanto se passava nos apartamentos vizinhos, desde a família-espanhola com suas bebedeiras, até os italianos com suas brigas aos gritos.

— E uma vez que todo o mundo tem água corrente quase todo o tempo — observava a Sra. Fillmore — seria de esperar que as crianças andassem mais limpas.

Havia outra coisa que aborrecia a Sra. Fillmore: sempre que punha o nariz para fora do apartamento, ia para o vestibulo ou entrava no elevador, todos os inquilinos brancos faziam questão de conversar com ela.

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— Entre eles, não informam nem que horas são. Será que não percebem que nós também gostaríamos de ter um pouco de sossego?

A família de Gherkin era de classe média desde muitas ge-rações antes. Êle nem ficava constrangido por isso e, quando o es-picaçavam, dizia com ar de tolerância : — Afinal de contas, é a burguesia que, queira ou não queira, sempre paga as despesas de revoluções.

Os Rosenblum viviam em uma casa de East Side, que possu-íam há séculos, de modo que não era como aquelas muito moder-nas e caras, mas. . . No entanto, isso também não deixava Gherkin embaraçado; a única coisa que parecia preocupá-lo era o fato de seu pai ser dentista. Parecia achar que havia algo ligeiramente ver-gonhoso nessa velha e nobre profissão.

A mãe de Gherkin não trabalhava fora de casa. Fora modelo até ter o primeiro filho, a irmã mais velha de Gherkin — agora ca-sada com um próspero pedicuro de Los Angeles — e nunca mais voltara a trabalhar, pois o Sr. Rosenblum não aprovava que mulhe-res trabalhassem fora de casa, a menos que fosse por uma razão realmente importante, como ajudar seus maridos a concluírem os estudos na escola de odontologia.

— Agora que Roz e eu já estamos crescidos, mamãe participa ativamente de uma porção de comissões e coisas semelhantes — dizia Gherkin desdenhosamente, mas Calliope nada via de errado nisso — nem no fato de uma esposa não precisar trabalhar fora de casa.

Gherkin pareceu não importar-se por Callie ter-lhe telefona-do em casa, mas mesmo que se importasse teria o cuidatelefona-do de não demonstrar. O mesmo provavelmente fariam seus pais, ainda que pudessem reconhecê-la pela voz. Liberais eram assim fingidos.

— Acho que mamãe e papai devem ter ido ver, aquela casa que estão comprando nas West Seventies.

— Nas West Seventies? Por que não se mudam para Long Island como todas as outras.. . hum. . . pessoas prósperas?

— Dizem que deixar a cidade seria um desligamento.

Êle e Callie riram gostosamente à idéia de que seus pais pu-dessem pensar que alguma coisa que fizessem não fosse desliga-mento.

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e, seus pais vão transformá-la em apartamentos ou vão ocupar o prédio inteiro?

— Quem pode dar-se ao luxo de ter uma casa particular em Nova Iorque hoje em dia, mesmo que seja no West Side? — disse êle, jubilosamente inconsciente de nuanças capitalísticas. — Além disso, ouvi dizer que há uma vantagem de impostos se fizerem dela dois “duplex”... com um pequeno buraco no porão para alguns in-felizes trogloditas. Eles. . . — prosseguiu, imitando o que era pre-sumivelmente a voz de sua mãe, pois não havia razão para supor que seu pai tivesse voz fina e aguda — ... estão procurando uma família realmente congenial para morar no outro duplex. Acho que não se importarão, com quem ocupe o porão, desde que seja... — enfrentou o olhar de Callie — ... gente sossegada.

— Quantos aposentos são? há muito jardim e não é uma pena que o jardim fique para o apartamento do porão?

Gherkin disse acreditar que eles estavam planejando cons-truir escadas no fundo do andar térreo para o jardim, de modo que os moradores do porão ficariam privados de todas as vantagens. Afora isso, nada mais sabia sobre a casa; e ainda mais, nem se incomodava.

—- Você não está nem um pouquinho curioso?

Calliope era uma construtora de ninhos. Gostaria de ver a casa, discutir reformas e padrões de papel de parede, ajudar a pla-nejar os banheiros. Desejava ter a coragem de pedir uma confron-tação com a mãe dele, uma apresenconfron-tação, pelo menos...

— Como é que você nunca atendeu ao telefone? Também es-teve fora todo o fim-de-semana?

— Você não escuta nada do que lhe conto? Estive fora... — disse, dando uma risadinha — ... Verdelândia.

— Quer dizer que esteve lá o fim-de-semana inteiro e não só a noite de sexta-feira?

Êle olhou-a intrigado e disse que pensava ter tornado cla-ro que a viagem durara dois dias e três noites, como realmente acontecera. Por alguma razão confusa, preocupava Callie o fato de tudo o mais ter sido tão deformado, mas não o tempo. Além disso, onde permanecera seu corpo durante todo o tempo em que estivera fora... em algum lugar em Long Island, dizia êle... em um estupor? Provavelmente sobre um piso frio. Se não tivesse cuidado, prova-velmente apanharia pneumonia.

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Quando êle lhe perguntou claramente se desejava fazer a via-gem em sua companhia no fim-de-semana seguinte, ela respondeu que não, mas só como princípio, porque sabia que no fim concor-daria .. . curiosa por experimentar o que êle experimentara, mas, ainda mais temerosa de que, se recusasse, êle levasse outra garôta consigo para partilhar daquela coisa, fosse o que fosse.

Em seguida, depois de ter dito sim, está certo, eu irei, chega de insistir, êle mencionou casualmente, muito de passagem, que, a propósito, o gato que dirigia a operação havia dito para não levar alguém de mais de dezoito anos. Gherkin não percebia como era sinistra essa estipulação? Porque hoje em dia, embora seja do co-nhecimento geral que, depois dos vinte e um anos, cada ano você morre um pouco até que, quando chega aos trinta, não existe mais, é apenas uma coroa (e isso era o que havia de mais errado no mun-do de hoje; os coroas é que mandavam); más, senmun-do as leis feitas por coroas, ninguém que lidasse com coisas reais iria fazer um es-forço deliberado para pegar cadeia e aumentar suas dificuldades.

— Tem certeza de que eles não são feiticeiros, ou coisa seme-lhante, à procura de uma jovem e liiiinda virgem para sacrificar no altar de sua inominável lascívia?

Êle olhou-a com ar de dúvida, ela percebeu, apesar de sua trêmula risada, duvidando que fosse uma piada, duvidando se no fundo de sua mente ela realmente acreditava em coisas daque-la espécie, sombrias tradições vodus herdadas de seus bárbaros antepassados, etc: Ocorreu-lhe então que aquilo que o mantive-ra afastado dela naqueles meses não emantive-ra o fato de ela ser preta (na verdade, uma espécie de pardo escuro, mas descrever-se ou imaginar-se como outra coisa que não preta era desligamento nos dias de hoje, a menos que se fosse branco), mas o fato de ela não ser primitiva além da norma da mulher mediana de dezesseis anos, destruindo assim todo seu preconceito de macho branco racista sobre como eram as moças negras, mesmo tipos alfabetizados com alto Q.I. Esperava que nesse momento aquilo fosse trazido à luz, para que pudesse pisar um pouco, no ego de Gherkin, mas êle se desviou habilmente do assunto.

— Não há razão para supor hoje em dia que, apenas por ter menos de dezoito anos, uma moça seja virgem. Além disso, êles não disseram para levar uma moça; disseram para levar um ami-go, sem especificar o sexo. Explicaram que a potência criativa do

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homem está.. . hum... no auge quando êle tem dezessete ou dezoito anos, depois começa a declinar. Acho que queriam dizer que o ne-gócio não funciona tão bem em pessoas mais velhas, então por que desperdiçá-lo? O que tem sentido.

Essa era uma das coisas que preocupavam Callie. Tão pou-cas coisas faziam sentido hoje em dia que o racional era quase automaticamente suspeito. Além disso, as vibrações que recebia do negócio todo eram muito ruins. Tentou apertá-lo.

— Exatamente como você descobriu essa boca?

— Não era uma boca, estritamente falando, explicou êle. — Ligara para o número constante de um anúncio que lera no Villagc Voice, e ela não encontrou muito consolo nisso, embora não hou-vesse tanto em que basear uma objeção positiva quanto se tihou-vesse, sido, por exemplo, no East Village Other.

— Exatamente que dizia o anuncio?

— Oh! algo assim como “indivíduos jovens e empreendedores que estejam dispostos a viajar e que desejem fazer uma viagem in-comum, com todas as despesas pagas”. Apresentavam o negócio muito friamente.

— Claro que apresentavam — concordou ela, pensando em algum meio de fugir à sua promessa.

Nos dias que se seguiram não se encontrou muitas vezes com Gherkin pois, sendo estudante com bolsa e temerosa de perder os privilégios que não conseguia considerar como seus por direi-to liquido, só participava de marchas nos períodos de estudo, es-colhendo apenas as mais delicadas manifestações para emprestar seu timido apoio.. . enquanto Gherkin enforcava aulas e acusava a polícia de relações edipianas antinaturais, com o arrojado des-prendimento do estudante cujos pais, se êle fosse reprovado nos exames finais, pagariam outro semestre e mesmo, supondo-se que a administração se erguesse em suas pernas traseiras e o expul-sassem, providenciariam sua transferência para outra instituição menos antiliberal.

Ela se sentia culpada por não ser capaz de entregar-se total-mente à luta ao lado dele na arena acadêmica; todavia, esse ônus pelo menos foi-lhe poupado no meio da semana quando, depois de várias e vigorosas redefinições de princípios, as manifestações no campus polarizaram-se em linhas radicais, com brancos do lado

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dos bairros e pretos do lado da cidade, enquanto sua Sociedade de Marchas e Manifestações de Mulheres (assim chamada por seus detratores) se dissolvia diante do restaurante, uma vez que a ques-tão de alimentação tragável no campus adquiria aspecto insignifi-cante em relação às momentosas, embora indefinidas ou talvez por serem indefinidas, questões que motivavam os outros manifestan-tes.

Seu coração pulou quando um estudante de jornalismo do campus do lado dos bairros deu a notícia de que a encrenca lá se transnformara em verdadeira confrontação cinemática entre estu-dantes e policiais, que acabou com os corruptos lacaios da estru-tura de poder atacando brutalmente um grupo de jovens pacíficos, desarmados e afáveis, espancando-os com cassetetes, dando-lhes pontapés nas virilhas e executando outros atos típicos da bruta-lidade policial antes de arrastá-los para viaturas e levá-los para o posto policial, onde ainda estavam sendo submetidos a inominá-veis torturas. Embora Calliope desejasse sinceramente que Gherkin não estivesse ferido, ficaria satisfeita se êle permanecesse em cana por um pouco de tempo, o suficiente para tornar-lhes impossível iniciar sua viagem na sexta-feira.

Todavia, mesmo fazendo o devido desconto para o exagero natural que era o único método significativo de que as minorias oprimidas dispunham para transmitir sua mensagem através da barreira de parcialidade dos veículos de massa da classe média, a história toda mostrou não ter mais que ligeira relação com os fatos reais, nos quais a polícia jogara por engano o chefe do departamen-to de matemática por uma janela, com a impressão de que era o presidente da universidade. Depois de uma boa risada geral, a ma-nifestação do dia terminara com demonstração de extraordinária harmonia entre estudantes e policiais. Gherkin estava livre, impa-ciente por atender a seu compromisso de sexta-feira à tarde; e sua impaciência, sabia Calliope, não era por causa dela, mas por causa daquela maldita garota peluda com quem êle esperava encontrar-se de novo nas pastagens verdejantes de sua mente.

— Mas por que temos de ficar todo o fim-de-semana? — per-guntou queixosamente Calliope quando entraram no metrô.

— Acho que é o tempo que leva para fazer efeito. Ou então para que a gente volte. — Tinha um ar apreensivo. — Você contou a seus pais uma história qualquer para disfarçar, não contou?

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Que-ro dizer, eles não vão mandar uma turma de salvamento ou coisa parecida?

— Que pensa você que eu sou? Criança? Contei a eles que ia ficar na casa de Marjorie e, como êles não conhecem Marjorie, pensam que tudo está muito bem. Só que... bem, eu quase odeio mentir-lhes. . . — sua voz ficou muito fraquinha no fim.

Êle tinha um ar muito resoluto.

— Bem, se eles têm mentalidade tão estreita não resta a você outro recurso senão mentir-lhes. Fundamentalmente são eles os culpados por forçá-la à desonestidade. É ponto preto contra eles, não contra você.

Ponto branco, ponto rosado, ponto verde... por que precisava êle dizer preto?

— Que é que você disse a seus pais? — perguntou. — Ou eles são incapazes de espionar sua vida particular ?

Gherkin fêz um ruído borbulhante, um som de desprezo. — Se fossem, não seriam pais. Contei-lhes que ia passar o fim-de-semana com alguns colegas no interior do Estado, fazendo algo masculino como matar pequenos animais. Não havia outra alternativa. Até que a família como conceito seja reestruturada ou inteiramene eliminada, a única maneira de lidar com pais é mentir-lhes.

Mas por que dar-se ao trabalho de mentir a não ser para evitar ferir os sentimentos deles, porque os amava? Nesse caso o defeito estava na hipocrisia ou no amor? Pela rapidez com que Gherkin acusava de incesto maternal qualquer um de quem diver-gisse, Callie deduzira que êle tinha um complexo e já se entregara a interessantes especulações sobre as possibilidades de a moça ver-de representar a mãe ver-dele, caso em que os pêlos e a cauda ver-deviam ter alguma significação profunda que ela não conseguia entender.

— Verde é a côr preferida de sua mãe? — perguntou.

— Não — respondeu êle. — Mas Green* era seu nome de solteira.

Pronto, se isso não provava alguma coisa, ela não sabia o que poderia provar.

Foram até o fim da linha em Queens, onde o metrô se

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formava em ferrovia elevada, de modo que precisaram descer esca-das para sair, o que pareceu a Calliope de um sabor tão fantástico que ela se sentiu como se já tivessem começado a viagem; afinal de contas que poderia haver de mais sobrenatural do que um me-trô no ar? Depois tomaram um ônibus que avançou sacolejante durante meia hora até desembarcá-los em um lugar que parecia ser o meio de nenhures. Dali para frente, disse Gherkin, iriam em bicicletas.

— Bicicletas? Você está me gozando. Em primeiro lugar, onde vamos arranjar bicicletas? Em segundo . . .

— Estarão atrás daquele barracão, esperando por nós. E estavam mesmo, duas Schwinn Racers, muito brilhantes e com aparência de novas. E não havia uma pessoa à vista. ‘’Deve ser uma vizinhança muito honesta”, pensou ela ressentida.

Hesitou antes de arriscar-se a montar a bicicleta. . . temerosa por sua mente, por seu corpo e até mesmo por sua virgindade que se tornara repentinamente preciosa. Nunca antes havia andado de bicicleta. Nunca tivera o menor desejo de andar de bicicleta.

— É uma sorte você não estar de saia, pois ambas são bici-cletas de rapazes.

— Você sabe que eu praticamente nunca uso saia. — Bem, que está esperando?

Não havia saída. Montou.

— Tem certeza de que conhece o caminho ? — perguntou, cambaleando rua abaixo mais ou menos ao lado dele; felizmente havia pouco trânsito. — A única coisa de que precisamos para es-tragar realmente a tarde é nos perdermos neste deserto.

— Para dizer a verdade, eu não conheço o caminho. Estas são bicicletas que voltam sozinhas para casa.

— Oh! deixe disso. Há coisas que passam da conta, se você entende o que quero dizer. Se não quer contar-me seus segredi-nhos, está muito bem, mas não escolha uma hora em que estou em perigo de vida para fazer gracinhas.

O engraçado, porém, era que, embora estivesse pedalando furiosamente, ela parecia não ter pleno controle da máquina. A princípio atribuiu isso à falta de familiaridade com a bicicleta. De-pois, num momento em que Gherkin começou a virar uma esquina e ela, absorta em sua própria tagarelice, continuou avançando em

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linha relativamente reta, pareceu-lhe que a bicicleta virara de fato sozinha para segui-lo. Mas isso era apenas imaginação; provavel-mente seu inconsciente estava seguindo fielprovavel-mente Gherkin.

Bicicletas e ciclistas pararam diante de um grande armazém, da espécie de edifício ostensivamente indefinível que gangsters de cinema usam como fachada. Havia um gato parado do lado de fora. olhando-os, um verdadeiro gato, amarelo avermelhado, com coleira dourada guarnecida de pedras verdes. Fitou-os, depois se virou e entrou trotando no edifício. Calliope teve a fantástica impressão de que êle fora na frente para anunciá-los.

Quando encostaram as bicicletas cuidadosamente na parede de tijolos do armazém, um homem havia aparecido para fazê-los entrar, um indivíduo ágil, de cabelos avermelhados, rosto afilado, olhos verdes e pele tão branca que parecia ter sido deixada de mo-lho em alvejante. Usava algo que parecia ser uma mistura entre roupa de caçador submarino e traje de astronauta, em vinil perola-do muito justo, muito moderno e provavelmente muito caro. Toperola-do o ambiente interior parecia luxuoso, esterilizado e funcional, a ponto de ostentação, e (Gherkin tinha razão) mais semelhante a um labo-ratório do que a uma boca. Seria ridículo demais se tivessem caído nas mãos de um cientista louco.

Calliope pretendia fazer perguntas de toda espécie, mas, an-tes de saber como, já estava sendo levada para algo sinistramente semelhante a uma cadeira de dentista (algo saído do inconsciente de Gherkin) sem ter tido a menor oportunidade de abrir a boca. Tudo muito rápido — só que não parecia rápido; parecia mais, que o tempo fora retardado para ela enquanto o gato se movia em ve-locidade normal. Ainda assim seria, de pensar que haveria alguma espécie de formalidade, uma troca de nomes falsos, algo à maneira de transição, senão de convenção.

— Mas que é essa coisa toda? — perguntou ela, enquanto o homem mexia em mostradores e chaves de algo que parecia um computador ou gigantesco painel de controle, terrivelmente tecno-lógico, fosse lá o que fosse.

— Seu amigo certamente lhe contou — disse o homem, com ligeiro sotaque estrangeiro.

— Contou, mas nada disse de realmente significativo sobre a experiência. Êle não. . .

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de um... cubículo. . . uma espécie de cubículo vizinho. . . onde esta-va sendo instalado em outra cadeira de dentista por um homem de cabelos escuros que usava traje de vinil preto com sapatos de tênis brancos. Tinha também olhos verdes e a mesma pele mais branca do que o branco.

Você achou mais sensato deixar que ela interpretasse sua própria experiência — disse o homem de cabelos vermelhos, diri-gindo-se a Gherkin. —- Boa idéia, especialmente porque suas co-municações .. .

— Eu não sou um. . . Eh! — exclamou Calliope. — Pare com isso, está me ouvindo, homem? Ninguém falou nada em ser amar-rado. Positivamente, eu me recuso, a...

— Creia-me, é necessário. — O homem prendeu as fivelas dos amarrilhos, fossem eles o que fossem na realidade. — Diminui o desconforto inicial da viagem. Sem isso você poderia ser esma-gada.

— Deixe-me sair daqui já, senão derrubarei o prédio de tanto gritar... — começou ela. Depois viu que êle não estava ali... pelo menos não estava perto dela. Pôde vê-lo em outro compartimento amarrando-se em uma cadeira, e o mesmo fazia o outro gato, o moreno de patas brancas, o que era engraçado porque, não só o compartimento estava fora de sua linha de visão, mas a parede in-termediária era opaca; foi então que percebeu que em um momento qualquer — podia ver agora o que Gherkin quisera dizer ao falar que não era capaz de explicar como era administrado o negócio — havia começado a viagem pelo ínvio deserto de sua mente. Todo o edifício pareceu estremecer; houve uma sensação clara de movimento, um cheiro engraçado, uma força que se achatou sobre ela. O gato de cabelos avermelhados nada lhe falara sobre ser esmagada.

— Procure relaxar-se — disse êle — que achará a decolagem mais fácil. Procure respirar naturalmente.

Mas como seria possível respirar naturalmente quando nada mais era natural, quando se estava sendo achatada como um bolo de frigideira ao mesmo tempo em que alguém começava a tocar algo daquela música horrivelmente moderna que pode dar dor de cabeça nas melhores ocasiões, especialmente quando se precisa fingir que se aprecia, mas não há necessidade de polidez num mo-mento em que se está tentando executar a ameaça de gritar até tudo vir abaixo, sabendo ao mesmo tempo que ninguém do lado de

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fora tem probabilidade de ouvir acima das batidas, rangidos e ge-midos, através das paredes de tempo, espaço e apatia. Além disso, não eram seus próprios gritos que vibravam em sua cabeça; eram os de Gherkin. Provavelmente estava se virando de dentro para fora, e se chegassem a voltar daquela maldita e miserável viagem, pensou ela, enquanto alguma coisa a cortava em pedacinhos com golpes demorados, cuidadosos e uniformes, vou virá-lo de dentro para fora de verdade.

Finalmente, perdeu a consciência e, quando voltou a si, es-tava no que parecia ser exatamente o mesmo outro mundo de que Gherkin falara, e havia uma garota de penugem verde fitando-a com uma mistura de perplexidade e divertimento, embora Calliope não pudesse dizer como sabia disso, pois o rosto da outra garota era completamente desprovido de expressão em termos humanos, não sendo ela humana nem de longe, embora definida e invejàvel-mente mamífera. De início Callie pensou que fosse a mesma garota verde de Gherkin; depois disse consigo mesma, irritada, que não poderia ser. A de Gherkin estava no sonho dele e esta estava no sonho dela. Mas por que estaria sonhando com uma garota, es-pecialmente uma garota gorila verde de busto exuberante? Havia perguntado a si própria se Gherkin tinha problemas e ali estava ela própria sonhando.

A garota verde falou: — Oh! ai, ai, ai, alguém falhou, mas foi bom!

Só que seus lábios não se moviam; estava falando e seus lá-bios não se moviam.

— Telepatia, é assim que eu entendo o que você diz, não é? — perguntou Callie vivamente.

A garota pareceu sorrir, só que não sorriu realmente, e disse, ainda sem mover os lábios: — Isso está bastante perto, ou tão perto quanto você poderia chegar com sua — houve um nevoeiro mental que se resolveu em “limitada capacidade de comunicação”. — O fato é que houve um engano terrível. Menina, você absolutamente não deveria estar nesta cena.

— Nem nos sonhos existe igualdade de oportunidades hoje em dia — resmungou Callie,

Os olhos da garota verde arregalaram-se inconfundivelmen-te.

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— Mas por que nos iríamos preocupar com a côr, entre tan-tas coisas estúpidas? Admito que o fato de vocês estarem comple-tamente nus e com uma aparência assim tão pelada... — houve uma definida projeção de repugnância — ... é um pouco difícil de aceitar, mas acho que você não poderia deixar de ter a aparência que tem.

— Bem, eu não estaria nua se alguém não tivesse tirado mi-nhas roupas — observou Calliope sensatamente.

— Foram tiradas de você para a quarentena. Você as receberá de volta na hora da partida. Uma precaução sanitária necessária. Sinto muito que precise mostrar-se pelada assim, mas regras são regras. — Pensativamente, acrescentou: — É difícil imaginar uma forma de vida inteligente, mesmo primitiva, sem pêlos ou, pelo me-nos, plumas, mas os... — um nevoeiro mental resolveu-se em algo semelhante a “escoteiros” — ... afirmam que vocês têm um poten-cial intelectual quase tão bom quanto o nosso. Diga-me uma coisa, houve alguma espécie de desastre em seu planeta? Uma epidemia ou um incêndio?

— Que eu saiba, não. Nós nascemos assim.

— É claro que normalmente vocês usam coberturas para es-conder suas deficiências, de modo que não podem ser totalmente insensíveis. Para dizer a verdade foram aquelas suas coberturas que deram início a toda a confusão. Os Escoteiros disseram que os diferentes sexos de sua espécie usam tipos diferentes de roupas e que os machos têm pêlos mais curtos na cabeça. Eu disse a todo o mundo que os Escoteiros não eram tão sabidos quanto se vanglo-riavam de ser, mas todo o mundo dizia que tínhamos de ouvi-los; eles sabiam tudo; eles nos salvariam. — Sua mente fêz: Puf !

— Bem, os tipos quadrados realmente têm cabelos diferentes e roupas diferentes, por isso acho que se poderia dizer que essa é a regra geral. Mas não é culpa dos... — como é que você os cha-mou?... Escoteiros; não se pode esperar que estrangeiros estejam por dentro da coisa, quando praticameste todo o mundo de mais de vinte e um anos não sabe do que se trata, se entende o que eu quero dizer.

— Precisávamos de pessoas jovens — disse a garota depois de um momento em branco. — Os Escoteiros afirmavam que seus machos estão com o máximo de sua capacidade reprodutiva aí pe-los dezessete ou dezoito de seus anos; depois disso, sua fertilidade

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começa a declinar e fertilidade é o que estamos procurando.

A compreensão chegou a Calliope com o esplendor de uma lâmpada explodindo no baloom sobre a cabeça em uma tira de his-tória em quadrinhos.

— Ah! então é para isso que vocês desejavam reprodutores? Para servirem como reprodutores. Sinto muito se pertenço ao sexo errado.

— É claro que não foi culpa sua — disse a garôta com igual polidez. — Os Escoteiros deveriam ter tido mais cuidado.

— Deve ser bem duro para vocês, sentindo-se como se sen-tem a nosso respeito, precisarem. . . Vocês fazem do mesmo jeito que nós? Mas é claro que fazem, senão o projeto nunca teria sido sequer iniciado.

— A idéia é ... nojenta... — Só que o conceito na mente dela correspondia a mais do que nojento; quando essa gente verde fazia alguma coisa, parecia ser realmente para valer. — Mas se é a única probabilidade que temos de manter a raça, teremos de sacrificar-nos.

Isso era de fato engajamento total! Callie estudou a outra ga-rota, imaginando se ela própria seria capaz de integrar-se no bem maior se lhe pedissem para unir-se a um macaco alopécico.

— Mas vocês acham que vai dar resultado, querida? Ainda que ciência não seja meu forte, posso ver que nós somos drastica-mente diferentes. . .

— Os Escoteiros têm agarrado quaisquer formas de vida que consigam encontrar, que tenham mesmo a mais remota semelhan-ça conosco, e trazido para nós — disse a garota, desanimada. — Nenhum daqueles de aparência provável deu certo e agora estão realmente raspando o fundo da panela. A complicação é que nos-sos machos parecem ter perdido a virilidade, sabe? Não nasce uma criança há... oh!...

O pensamento parecia indicar um período de tempo muito longo, mas eles viviam também por períodos de tempo muito lon-gos, muito mais longos do que os seres humanos. Ainda assim, não eram imortais, e, até quando apareceram os Escoteiros, decidida-mente empenhados em assumir a responsabilidade pelas espécies superiores, parecia que a raça ia desaparecer. Os Escoteiros, como Callie já deduzira, eram os gatos que haviam promovido a viagem sua e de Gherkin. Eles eram, explicou a garota verde, uma raça de

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abnegados, que percorriam as galáxias, levando auxílio e consolo às raças menores, tanto dentro, como fora da lei e quer elas qui-sessem ou não. A princípio a gente verde ficara satisfeita ao vê-los, esperançosa mesmo, mas depois muitos deles, inclusive quem fa-lava, particularmente quem fafa-lava, começaram a achar que talvez fosse preferível a extinção da raça.

— Especialmente se nos misturarmos e a prole sair como... como algumas das espécies que eles nos trouxeram. Todavia, eles disseram que nossas características seriam dominantes, de modo que parece valer a pena tentar. Ainda assim, é tudo tão horrível, que às vezes penso ser um pesadelo; vou acordar e descobrir que isso nunca aconteceu.

— Mas é uma... — começou Calliope, não desejando ferir os sentimentos da ilusão. — Sei como você deve sentir-se — acres-centou.

A garota pareceu ter ficado irritada.

— Desculpe-me, mas você não poderia ter a menor idéia de como nos sentimos. Oh! estou certa de que tem boa intenção, mas você é tão diferente que não poderia sequer começar a compreen-der-nos, quanto mais a identificar-se conosco. Você parece ter uma experiência da vida completamente diferente.

Algumas pessoas — algumas criaturas — pensavam ser mui-to especiais. Calliope, porém, não estava disposta a discutir com uma criação de sua própria mente.

— Acho que eu poderia voltar para casa, pois parece que não estou representando aqui nenhum papel significativo.

— Penso que isso está fora de cogitação. A espaçonave não deverá voltar, até... até à noite do domingo de vocês... parece que você vai ficar presa aqui durante o fim-de-semana.

Espaçonave! Callie pensou... disse... “Espaçonave?” Mas tudo

o que estava acontecendo era apenas um sonho, uma alucinação, uma viagem... e, naturalmente, a espaçonave enquadrava-se per-feitamente dentro dele. Puxa, como sou imatura; primeiro uma es-paçonave, depois Papai Noel, com renas e tudo o mais.

O sorriso para-dentro-para-fora da garota verde parecia mais uma expressão de escárnio. Se ela era tão esperta quanto dizia, devia saber que não era real. Mas naturalmente não o admitiria; ninguém gosta de admitir que foi feito por outrem, especialmente por alguém que êle despreza.

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— Uma vez que é nossa hóspede você bem pode ver as pai-sagens... — embora a frase que ela efetivamente projetou se asse-melhasse mais a “absorver o ambiente até onde permitiam suas limitadas faculdades”.

Levou Callie do lugar indeterminado e quase subjetivo onde estavam tendo seu bate-papo mental para algum lugar definida-mente ao ar livre, só que um ar livre semelhante ao de um parque de livro de histórias, embora isso talvez fosse apenas a maneira como as “limitadas faculdades” de Callie o percebiam. O ar tinha uma qualidade estranha, picante. Talvez estivesse onde Gherkin tivera a original idéia de “ar fresco.” Não, não era isso... era... o cheiro da droga sobrepondo-se à alucinação para lembrar-lhe mais uma vez que aquilo era real. . . que o moço de pêlos verdes que se encostava melancòlicamente a uma árvore e tocava uma espécie de instrumento de cordas, ao mesmo tempo que cantava uma canção triste sobre alguma emoção não correspondida, que decididamente não era amor, também não era, lamentavelmente, mais do que um produto de sua imaginação.

— Aqui está um pitèuzinho para você, queridinho — disse a garota verde em tom de zombaria, com uma atitude de familiarida-de familiarida-desprovida familiarida-de amizafamiliarida-de, que para uma mente da Terra podia ser interpretada como casamento. — Parece que houve um engano no carregamento e tenho a impressão que nosso prejuízo vai ser lucro para você.

Ignorando a forma de vida semelhante à sua, o rapaz olhou para Calliope. Tinha pêlos verdes, cauda, feições humanóides, mas distintamente inumanas. Era a criatura mais linda que ela já vira e por um momento sentiu esmagadora vergonha de seu estado de nudez, vendo-se como êle devia vê-la — pelada, nua, primitiva, tal-vez mesmo bestial. Nunca antes se humilhara simplesmente para agradar um homem, mas, quando a terna emoção a tragou — pela primeira vez, percebia ela — esqueceu o feminismo na feminilidade e procurou parecer cativante e insinuante.

Depois, a primeira vaga mental partida dele alcançou-a, de-morada e ardente, e ela percebeu que êle a via como mais do que uma mascote. A alucinação tornou-se o sonho de um sonho, à me-dida, que ela perdia toda identidade, preta, humana, feminina, e se fundia, submergia na dele.

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à primeira vista”. Êle e ela estavam então no metrô, começando a sair do nebuloso estado em que os deixara a viagem, tão fora de si que mal podiam lembrar-se da chegada ao armazém ou da partida de lá. Meio em sonho, montaram em suas bicicletas e, um quarto em sonho, tomaram o ônibus. No metrô estavam voltando à plena consciência. “Nunca tive com ninguém uma relação como tive com êle.” O negócio todo fora, como na exata síntese de Gherkin sobre sua experiência de sonho anterior: “o fino”. Calliope deu uma risa-dinha constrangida.

— Naturalmente, eu sei que foi só uma alucinação, mas foi realmente fora deste mundo, se você entende o que eu quero di-zer.

Aconchegou-se a êle para tornar mais claro o que queria di-zer. Êle não correspondeu. E as antigas desconfianças que o sonho havia apagado voltaram a insinuar-se. — Por que está preocupado? Está com medo que alguém nos linche por sermos mistos e não iguais.

— Deixe de projetar suas hostilidades — respondeu êle, com ar ausente. — O que estou achando engraçado é ambos termos visto a mesma cena visionária.

— Bem, acho que é como a hipnose em massa ou o incons-ciente coletivo, se é possível falar em massa ou coletivo com apenas duas pessoas. O que quero dizer é que você me falou tanto sobre sua primeira experiência que me pareceu quase real, de modo que devo ter tido uma alucinação na qual estava no mesmo lugar tendo a mesma experiência... e talvez, mesmo durante a alucinação que tivemos, nos comunicássemos de alguma maneira, de modo que nossas mentes se entrelaçavam e produziam á mesma cena, enten-de o que quero dizer?

— Se era minha cena, como é que nada me disseram so-bre extinção da raça e soso-bre a necessidade que tinham de rapazes daqui para dar-lhes uma injeção no braço ou coisa semelhante? Esconderam isso de mim, e você sabe por quê? Não queriam que eu soubesse que estava sendo usado como... como um reprodutor — terminou êle, achando mórbido prazer no nobre conceito de si próprio como um reprodutor árabe de garbosa crina.

Ela o fitou, incrédula. Agarrou-lhe o braço e sacudiu-o. — Gherkin, menino, você está caindo de sua árvore. Todo o negócio foi uma alucinação, um S-O-N-H-O. Ninguém estava

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es-condendo nada de você; essa foi a minha variação de seu tema. A gente verde, o lugar verde, tudo só existiu em nossa mente. —- E quando o rosto dele permaneceu fechado em decidida e obstinada ausência de expressão: — O.K., se você insiste em que isso teve um sentido prático sólido, como é que pudemos respirar o ar deles, beber a água deles?

— Quer dizer que nós estávamos suficientemente dopados para beber a água sem fervê-la primeiro? Como poderia você ser tão descuidada, mesmo em sonho? Eu procurei ter certeza...

Interrompeu-se e depois, graças a Deus, riu e ela sossegou pensando: está tudo bem; tudo vai acabar bem.

— Acho que talvez alguns parafusos tenham saído do lugar — admitiu êle, enquanto seu riso desaparecia — mas já estão de novo no lugar. — Prosseguiu com ar triste: —- Penso que estou um pouco confuso porque não sonhei desta vez com a mesma garota da outra vez. Foi outra garota verde. Parecia-se com a primeira e afirmou que era a mesma, mas eu sabia que não era. Não havia comunhão; não ficamos gamados um pelo outro. Mas por que teria eu sonhado uma coisa assim?

Ela foi tomada de surpresa, não percebendo que êle conhe-ceria a diferença imediatamente ou que teria sido uma diferen-ça tão grande e ruim. Mas que realidade poderia comparar-se a um sonho? pensou, procurando consolar-se. O Gherkin real seria por acaso capaz de aproximar-se do homem de seu sonho? Ten-tou imaginar feições de veludo verde cobrindo e cercando o rosto pubescente, pálido e espinhento de Gherkin. Era difícil, mas com o tempo — especialmente se Gherkin pudesse ser convencido a deixar crescer barba; todo o conceito de pêlos floresceu em nova significação (além disso, pubescente significava peludo, não signi-ficava?) — poderia tornar-se incongruente. Êle poderia, ela poderia, os dois poderiam...

Callie fêz sua voz ficar suave, delicada, carinhosa.

— Você pensou ter sonhado com uma garota diferente por-que dessa vez havia realmente uma garota diferente. . . uma garota real, isto é, eu, se entende o que quero dizer.

— Não, não sei o que você quer dizer.

Ela se esforçou por não responder rispidamente.

—- Escute, eu decididamente executei o ato sexual com

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acho...

Êle foi obrigado a concordar: — Não, não os gatos... Eles são... como que inumanos.

— Tipos definidamente quadrados.

Êle sugeriu dèbiímente: — Talvez você apenas tenha imagi-nado que...

— Quanto a essa parte não há dúvida. Eu sei, pode crer-me. E foi grande! — Olhou-o amorosamente — Só sinto não ter podido acompanhá-lo em sua primeira viagem.

Êle engoliu em seco, tragando o que a razão lhe dizia ser um fato.

— Se isso aconteceu foi tão embrulhado que... meus senti-mentos nada tiveram a ver com você pessoalmente. Quero dizer, o que eu senti, o que você sentiu, nada teve a ver com a realidade objetiva, ainda que aquilo que aconteceu tenha alguma base de re-alismo. — Acrescentou violentamente: — Mas, pelo amor de Deus, se “você está certa, então com quem eu fiz na primeira vez ? Não havia garota alguma comigo lá.

Por que dizer-lhe naquele momento que a garota verde ori-ginal fora provavelmente uma versão simbólica do belo ex-modêlo que era sua mãe? Era melhor guardar isso para outra ocasião mais hostil. Por isso, a única, coisa que ela disse, com muito tato, foi: — Ela deve ter sido uma verdadeira ilusão; provavelmente por isso é que era boa como coisa que não é deste mundo.

Quando voltaram a suas respectivas residências naquela noiti-nha, seus pais e as transmissões de televisão estavam cheios de notícias, deturpadas como sempre por terem sido filtradas pelo ponto de vista dos conservadores. Houvera uma confrontação defi-nitiva no campus, com todas as aulas suspensas indefinidamente até a libertação do reitor, que os alunos da Escola de Teologia man-tinham como refém enquanto suas preces não fossem atendidas.

— Escute, Janet — disse a Sra. Fillmore — não quero que você chegue perto do campus antes que a polícia seja retirada, por que você é especialmente vulnerável. Eles baterão em você, quando não se atreveriam a tocar em uma menina branca.

— Eles batem em meninas brancas também, mamãe. Eu vi as escoriações.

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“conhe-ço essas coisas melhor do que você”.

— Você não vai participar de nenhum grupo de manifestan-tes, ouviu? Nem vai ficar por perto fazendo papel de apoio. A par-ticipação na experiência escolar total é importante, mas isso não significa que deva haver oportunidade de minha filhinha ser ferida. É melhor você passar os próximos dias na biblioteca pública fazen-do algum estufazen-do construtivo.

Todavia, uma vez que soube não haver aulas, Calliope tinha outros planos. Seus compromissos foram reorientados em direção mais clássica do que os estudos ou ativismo político. Telefonou a Marjorie, a estudante graduada com quem dissera ter passado o fim-de-semana para esconder o que realmente acontecera; Marjo-rie, porém, estava preocupada com seus próprios problemas e pre-tendia aproveitar aquela oportunidade caída do céu para ir a Porto Rico ter um aborto, pois se encontrava, no que parecia ser uma posição especialmente desagradável para estudante de Economia Doméstica. Embora sentisse o maior prazer em deixar Calliope usar seu apartamento enquanto estivesse fora — e mesmo depois de seu regresso, pois as atividades de grupo não só eram mais hu-manísticas, mas faziam com que a pessoa sempre tivesse alguém para lembrar-lhe que devia evitar agravar o problema da população — aconselhou-a a ter muito cuidado para não se meter na mesma complicação. Mas essa era, em toda a experiência sexual, uma coi-sa de que Calliope não tinha medo. Vinha tomando esperançocoi-sa- esperançosa-mente a pílula desde seu décimo quinto aniversário, sem nunca ter submetido à prova sua eficácia.

Convenceu Gherkin a deixar seu grupo de manifestantes e juntos dirigiram-se para o apartamento de Marjorie a fim de ex-perimentar pela primeira vez conjunção mutuamente consciente. Não foi bom, embora não quisessem admití-lo a princípio. Toda a excitação, todo o prazer bárbaro estava na droga, no gás ou no que quer que fosse. Aquilo era tudo; eles nada eram... ou pelo menos assim lhes parecia.

— Não é de admirar que possam dar-se ao luxo de oferecê-lo de graça — lamentou-se Callie. — Seria terrivelmente fácil ficar viciado.

— Sim — concordou êle — seria, sem dúvida.

Havia nela temor — mais do que nele, porque, apesar de seu desembaraçado palavrório sobre drogas como parte da experiência

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humana total, êle nunca precisara viver encontrando viciados em toda esquina — de nunca mais ser capaz de readquirir o que em retrospecto reconhecia ter sido o velho sustentáculo de telenove-las... o êxtase., . sem assistência química. E essa era quase a pior de todas as cenas. Significava que a gente estava aleijada desde o começo. Por isso, quando Gherkin reassumiu suas responsabili-dades acadêmicas e uniu-se às forças de ocupação que então do-minavam virtualmente o campus do lado dos bairros, ela telefonou para Dave Kikipu, líder dos Militantes Africanos Juniores e, como todos os líderes de manifestações, um grande homem no campus — não existiam atletas nesse tempo — que as colegas tanto pretas como brancas diziam ser um Diplomado em Sexo tanto quanto em Ciência (sendo o diploma de Ciência que êle estudava para obter, visando a ser professor de escola secundária e ajudar a esclarecer as mentes jovens).

Como Calliope era uma brasa que desde algum tempo dese-java arrancar da fogueira -— namorar firme um homem branco era um pecado mortal nesses dias — êle delegou poderes a um subor-dinado por uma tarde a fim de ir ao apartamento entrar em contato com a alma de Calliope e qualquer outra coisa que estivesse preci-sando de contato:

—- Alegra-me ver que você está adquirindo noção de identi-dade negra e recusando ter qualquer coisa a ver com aquela bas-tarda branca racista — disse êle. Nada tinha de pessoal contra Gherkin, naturalmente, era apenas uma questão de princípio. De-pois do que entraram nas coisas práticas. Dave era mais velho que Gherkin, mais experimentado que Gherkin, mais consumado do que Gherkin talvez jamais chegasse a ser. Com êle Calliope obteve considerável grau do que, em circunstâncias diferentes, poderia ter sido prazer. Mas não era o fino; nunca sabia ela agora, seria o fino sem o auxílio dos gatos, dos Escoteiros, fosse qual fosse o nome que se desse àqueles demônios ou semideuses que permaneciam entre ela e o seio de Abrão.

— Agora você sabe o que significa o Poder Negro —- disse Dave quando a deixou. Mas o que ela desejava era o Poder Verde.

Não lhe importava mais se ia desperdiçar sua mente por todo o Universo e comprometer eternamente seus cromossomos; preci-sava ter mais daquele negócio. Todavia, encontrou dificuldade em convencer Gherkin a ir com ela a Island na tarde da sexta-feira

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seguinte. Finalmente, êle foi forçado a admitir que, como era sua primeira experiência que desejava reviver, e não a segunda, achava que ela seria um obstáculo. Por meio de agrados, aliados a discreta pressão, conseguiu que êle a levasse até lá, mas, quando chegaram ao ponto final da linha de ônibus e procuraram atrás do barracão... não havia bicicletas.

— Talvez outras pessoas as estejam usando — disse Gherkin, e ambos se lembraram apreensivamente que no final da escapada anterior nenhum convite fora feito para nova viagem... pelo menos até onde podiam recordar-se. No entanto, embora não mais convi-dados, tinham que fazer uma última tentativa de alcançar o Nirva-na, por isso alugaram bicicletas e nos dias seguintes percorreram o distrito de Queens e o vizinho condado de Nassau, levando mesmo suas buscas até os pantanais fronteiriços de Suffolk. Long Island è um lugar grande, cheio de armazéns, mas não encontraram o que procuravam. Como última e desesperada medida, quase; ritual, chamaram o número de telefone através do qual Gherkin fizera seu contato inicial, mas não estava mais ligado, segundo lhes informou uma voz gravada. E o Village Voice respondeu altivamente que não podia fornecer informações sobre seus anunciantes pagos.

Daí por diante perderam contato com o racional e teriam descambado completamente, se pudessem. Experimentaram tudo quanto puderam arranjar — narcóticos (a coisa verdadeira dessa vez), ácido, velocidade, erva e uma coisa que os rapazes do labora-tório de química prepararam durante uma sessão que durou toda uma noite e que, segundo diziam, não só dobrava mentes, mas também dava laços nelas. Todas essas poções não só deixaram de ter sobre eles o desejado efeito, mas deixaram também de ter qualquer efeito. Poderiam ter pensado que estavam sendo enga-nados de novo, como no episódio original da erva-dos-gatos, mas seus companheiros — essas eram excursões comuns com guias, não escapadas privadas — demonstravam todos os sinais satisfa-tórios de terem ficado baratinados. De fato, sua própria imunidade começava a causar tantos comentários que tiveram de abandonar completamente o cenário das drogas.

— É como se aquelas outras viagens nos tivessem vacinado contra qualquer coisa diferente — observou Gherkin.

— Dá a impressão de um grande truque comercial, mas onde estão eles agora para colher os lucros? — disse Calliope. Ergueu os

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olhos para o céu. — Volte, volte de onde quer que esteja, beleza — implorou ela. — Você tem fregueses.

— Não... — começou Gherkin, interrompendo-se.

— Sacrílego? Blasfemo? Você paga seu dinheiro e faz sua es-colha. Se é que há possibilidade de eses-colha.

— Não seja boba. Quero dizer, isso é que eu ia falar: não seja boba.

Depois que a biblioteca da universidade foi destruída por uma explosão, provocada por pessoa ou pessoas desconhecidas (os estudantes falaram em deliberada provocação policial, mas todos sabiam que a abolição de livros era um item importante em vá-rias plataformas ativistas), a administração finalmente encerrou o período letivo da primavera duas semanas antes do prazo. Tanto Gherkin como Calliope tinham empregos arrumados para o verão; uma semana antes de começar como auxiliar de escritório para uma das casas de sua mãe, Calliope acordou certa manhã e ouviu uma vozinha dizer-lhe que estava grávida. E, quando foi ao médico, ficou provado que estava mesmo!

— Mas eu pensei que as moças não ficavam mais grávidas hoje em dia! — exclamou Gherkin, quando soube do fato.

Ao que Collie rompeu em lágrimas, dizendo que sentia muito, que achava que era apenas uma quadrada e ia ter um bebê qua-drado. Mas decididamente, um bebê. Podia mostrar-lhe o relatório do médico e tudo o mais.

— Você não... tomou precauções ?

Êle tinha a impressão de que as mulheres hoje em dia toma-vam essas precauções naturalmente como tomatoma-vam tranqüilizan-tes e exatamente pela mesma razão.

— Claro que tomei pílulas! Deve ter acontecido o mesmo que com a erva-dos-gatos. Venderam-me imitação.

— Pobrezinha — disse êle, Repentinamente muito masculino e viril... dali a um mês ia fazer dezoito anos, tornar-se um adulto responsável — precisa de alguém que cuide de você.

E, levado pelos impulsos de sua velha herança burguesa, ofereceu casamento, o que ela, descendente de escravos, aceitou imediatamente. Não se deu ao trabalho de mencionar o episódio in-termediário, que não contava, assegurou a si própria, porque a coi-sa entre Dave e ela fora puramente mecanística, não uma relação verdadeira. Além disso, não havia a menor probabilidade de Dave

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casar-se com ela — o casamento, declarava êle sempre, era um es-tratagema que as classes governantes impunham a seus oprimidos súditos — e em seu pânico só desejava uma sólida aliança aprova-da pelos conservadores.

Embora os dois estivessem conscientes de não haver violado nenhum código moral significativo, não se sentiam muito otimistas quanto ao que aconteceria quando contassem a seus tradicionalis-tas pais o que o futuro reservava — mas contaram prontamente, pois dentro do Sistema, gravidez, casamento e todas as formalida-des de uma sociedade corrupta custam dinheiro e era bom que os subsídios começassem imediatamente. As coisas saíram piores do que haviam previsto. Uma porção de acrimoniosa retórica. Depois a Sra. Rosenblum chamou Callie de lado e disse que, não que ela não a desejasse como nora, mas não achava que era jovem demais para assumir o papel de esposa e mãe? Se quisesse... bem... “evitar” o bebê, a Sra. Rosenblum estava certa de que seu tio Joe...

Ao que Callie, mais por medo do que por aflição moral (Mar-jorie fizera durante semanas um pavoroso relato de sua provação) iniciou tal lamentação que a Sra. Rosenblum disse apressadamen-te: — Eu estava apenas sugerindo para o seu bem, querida. Natu-ralmente, o Dr. Rosenblum e eu estamos encantados...

Então ela também rompeu em lágrimas. Uma cena muito do-lorosa.

Tudo isso, naturalmente, antes que os Fillmore e Rosenblum mais velhos se tivessem conhecido e, para desgosto de seus filhos, caídos de amores uns pelos outros à primeira vista. A Sra. Rosen-blum, diga-se de passagem, fora uma terrível decepção para Callie. Em lugar de uma esbelta e escultural deusa, era uma criatura pe-quena, petulante, não realmente bonita, que se vestia como ado-lescente e quase se saía bem. O pai de Callie absolutamente não ficara decepcionado, mas, naturalmente, o Sr. Fillmore não tinha expectativas com as quais compará-la.

— É uma mulher de bela aparência, não é? E tão moça para ler filhos já crescidos.

E a Sra. Fillmore, que tinha oito anos de vantagem sobre a Sra. Rosenblum e podia, por isso, dar-se ao luxo de ser tolerante, mostrou um sorriso sonhador e murmurou: — O Dr. Rosenblum não é parecido com Paul Newman?

Referências

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