• Nenhum resultado encontrado

Alterações no rol dos incapazes: pessoa com deficiência tem sempre capacidade plena ou

3.2 TENTATIVAS DA ACADEMIA DE COMPREENDER A INOVAÇÃO E

3.2.1 Alterações no rol dos incapazes: pessoa com deficiência tem sempre capacidade plena ou

Nesse diapasão, inicia-se a exposição dos diversificados pontos de vista no tocante à teoria das incapacidades. Em razão do que preceituam os arts. 6º e 84, caput, do EPD26, inspirados no parágrafo 2 do artigo 12 da CDPD27, uma parte da doutrina acredita que, conforme o novo regramento, as pessoas com deficiência não podem ser sequer relativamente incapazes, devendo ser sempre reputadas como plenamente capazes, ainda que pessoalmente não exerçam os direitos postos à sua disposição (STOLZE, 2016), de modo que o Estatuto teria tornado possível a curatela de pessoas capazes.

Além de Pablo Stolze28, assim também compreende Ivana Assis Cruz dos Santos (2016, p. 33), que defende ter sido necessária a substituição da interdição pela curatela, por

26 Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: [...]

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

27 Artigo 12

Reconhecimento igual perante a lei. [...]

2.Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.

28 Este doutrinador, apesar de interpretar que a pretensão do Estatuto da Pessoa com Deficiência foi a de que a

julgar aquela como sendo referente apenas a incapazes, e esta, abrangendo também indivíduos capazes, como a pessoa com deficiência. A autora questiona, entretanto, qual seria a função do curador, tendo em vista que a representação só cabe para os curatelados com incapacidade absoluta, e a assistência se reserva aos incapazes relativamente, não podendo o capaz ser representado nem assistido.

Na mesma linha, encontra-se Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro (2016, p. 43), que enxerga como clarividente a orientação do EPD no sentido de que, mesmo com a curatela, a pessoa com deficiência é dotada de capacidade legal. Quanto à indagação da autora anterior, ele acredita caber ao juiz que decretar a curatela definir se será caso de representação ou assistência, com base no que o ato praticado sem o curador será nulo ou anulado, respectivamente.

Já Kümpel e Borgarelli (2015) também concordam que as pessoas com deficiência, sobretudo mental, foram alçadas à categoria de plenamente capazes, mas fazem uma dura crítica a essa mudança e ao fato de que as demais que estejam impossibilitadas de manifestar vontade própria deixaram de ter incapacidade absoluta, passando a ter apenas relativa. Os articulistas julgam que só é capaz para os atos da vida civil quem compreende e se autodetermina, e por isso a lei teria “mutilado” os arts. 3º e 4º, do CC/02, numa “autofagia legislativa”, desprotegendo justamente aquele que não tem nenhum poder de autodeterminação.

Aduzem, ainda, a incoerência de a pessoa em coma – levada à qualidade de relativamente incapaz, e portanto, de acordo com a interpretação dos autores, sujeitas à assistência – ser somente assistida, se não manifesta qualquer vontade. Quanto à aplaudida suposta inclusão das pessoas com deficiência promovida pelo EPD, cumpre transcrever valorosa análise dos referidos autores: “De fato, ela os inclui, jogando-os no grupo dos capazes, isto é, daqueles que não recebem a proteção consubstanciada no sistema das incapacidades. Os inclui para desprotegê-los e abandoná-los a sua própria sorte.” (KÜMPEL; BORGARELLI, 2015).

Outra parcela da academia vislumbra a temática de modo menos radical, entendendo que os dispositivos retro querem passar a mensagem de que a favor das pessoas com deficiência deve haver a presunção de capacidade, como já o era para o resto da sociedade, mas isso não exclui a possibilidade de elas serem consideradas relativamente incapazes, desde que se

institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada ou a curatela, pondera que não convence inserir indivíduos sujeitos a uma causa temporária ou permanente impeditiva da manifestação da vontade no rol dos relativamente incapazes, pois “Se não podem exprimir vontade alguma, a incapacidade não poderia ser considerada meramente relativa” (STOLZE, 2016).

enquadrem na hipótese do art. 4º, III, CC/02 com a redação dada pelo EPD, e nessa condição estarem sujeitos à curatela. Ou seja, a correta interpretação da nova lei seria a de que indivíduos com deficiência podem ter incapacidade relativa, não pelo simples fato da deficiência, mas por não poderem exprimir sua vontade (VELOSO, 2016).

Dentro desse grupo, há ainda uma subdivisão. Existem aqueles que defendem a viabilidade de aplicação apenas da assistência pelo curador, haja vista hoje só haver curatela para relativamente incapazes (e a representação se restringir a absolutamente incapazes), com a consequente anulabilidade do ato praticado sem a assistência do curador. Nestes, inclui-se Zeno Veloso (2016), que, apesar de assim interpretar a nova lei, encontra nela grandes problemas, sobretudo quanto à assistência e anulabilidade de atos de pessoas com grave deficiência e/ou que não possam manifestar sua vontade, como se verá no tópico 4.1.

Mas, ainda entre os que admitem que pessoas com deficiência impossibilitadas de externar vontade sejam relativamente incapazes, e assim suscetíveis à curatela, pode-se encontrar também juristas que compreendem que o curador pode desempenhar papel de assistente ou representante do incapaz, conforme seja definido pelo juiz que julgar a ação de nomeação de curador, como Atalá Correia, Nelson Rosenvald, Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto.

Atalá (2016, p. 24) faz o adendo de que, apesar da elogiosa iniciativa de tentar dar autonomia à pessoa com deficiência retirando-a do rol dos incapazes, a lei não tem o condão de mudar a realidade biológica dos fatos. Exemplifica com aquele que se passou a ter deficiência por moléstia incurável e não consegue sequer escrever seu nome, que não passará, após a vigência da lei, a manifestar o que quer. Por isso, a interdição (utilizada como sinônimo de curatela) não é vedada quando a pessoa com deficiência não possa exprimir sua vontade, de modo a ser reconhecida como relativamente incapaz.

Diante disso, o autor afirma que, em que pese a incapacidade relativa enseje a assistência do curador para a validade do ato jurídico praticado, se o interditado não detiver possibilidade alguma de manifestar a vontade para praticar atos da vida civil em conjunto com seu assistente, caso o quadro legislativo não sofra alterações, a solução razoável será tolerar uma “hibridização de institutos”, admitindo a representação do relativamente incapaz, em vez da assistência, sob pena de a curatela ter pouco significado prático (CORREIA, 2016, p. 24).

A seu turno, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2017a, p. 923) também consideram que pessoas com deficiência que não puderem externar seus desejos podem ser relativamente incapazes, e assim serão sujeitas a uma ação de curatela, na qual deve ser feito

um projeto terapêutico individualizado, que pode se apresentar com três feições, a depender do grau de discernimento da pessoa:

(i) o curador pode se apresentar como um representante do relativamente incapaz para todos os atos jurídicos, porque este não possui qualquer condição de praticá- los, sequer em conjunto. Seria o caso de alguém que se encontra no coma ou a quem falta qualquer discernimento;

(ii) o curador pode ser um representante para certos e específicos atos e assistente para outros, em um regime misto, quando se percebe que o curatelando tem condições de praticar alguns atos, devidamente assistido, mas não possui qualquer possibilidade de praticar outros, como, por exemplo, os atos patrimoniais;

(iii) o curador será sempre um assistente, na hipótese em que o curatelando tem condições de praticar todo e qualquer ato, dês que devidamente acampanhado, para a sua proteção; (FARIAS; ROSENVALD, 2017a, p. 937) (grifos acrescidos).

No mesmo sentir, Farias, Cunha e Pinto (2018, p. 253) argumentam que, a depender do grau de deficiência, a curatela do relativamente incapaz pode ter diferentes extensões, pois diversas são as consequências de uma determinada deficiência. Assim, dividem as espécies de curatela exatamente nas três acima transcritas, podendo haver representação ou assistência.

Note-se que, apesar de não admitirem que a pessoa com deficiência – nem ninguém mais – seja considerada absolutamente incapaz, devido à modificação legislativa nos artigos 3º e 4º do CC/02, os doutrinadores reputam possível que o relativamente incapaz seja representado para todos os atos jurídicos quando lhe faltar qualquer discernimento, contrariando integralmente a restrição estabelecida cristalinamente pelo art. 85, do EPD, de que a curatela afetará apenas os atos relativos aos direitos patrimoniais e negociais.

Um outro ponto de vista vislumbrado por parte da comunidade acadêmica é o de, mesmo com o ordenamento jurídico atual, ainda ser permitido decretar a incapacidade absoluta de pessoas com deficiência, na mesma linha do manual do CNMP sobre interdição e tomada de decisão apoiada (2016). Entre os inseridos nesse grupo, pode-se citar Maria Berenice Dias, Luiz Alberto David Araujo, Waldir Macieira da Costa Filho, Wisllene Maria Nayane Pereira da Silva e Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave.

Maria Berenice Dias (2016, p. 1.126) entende que a curatela é medida protetiva extraordinária que se justifica por causa incapacitante, importando saber apenas se esta existe e em que grau de extensão compromete o exercício dos atos da vida civil, sendo descabida a tentativa do legislador de arrolar todas as hipóteses que levam à incapacidade. Nesses termos, prevê a possibilidade de interdição absoluta pela ausência total de capacidade, acarretando na representação pelo curador, cuja ausência importa em nulidade dos atos praticados (DIAS, 2016, p. 1.128-1.129).

Para Luiz Alberto e Waldir Macieira (2016, p. 23), em casos excepcionais de pessoa com deficiência grave, totalmente sem discernimento e possibilidade de exercer seus direitos, sem condições de exprimir sua vontade, a exemplo daquela em estado vegetativo, “teremos em um processo de interdição de considerá-la, em alguns casos, como absolutamente incapazes (sic) (como já dito acima), a partir de uma interpretação sistemática e integrativa e levando em conta os direitos humanos e os princípios constitucionais”. A despeito desse posicionamento notoriamente oposto à modificação do rol dos incapazes no CC/02, defendem que os limites da curatela definidos na sentença, em geral, serão para os atos negociais e patrimoniais, devido à inovação legislativa promovida pelo EPD (ARAUJO; COSTA FILHO, 2016, p. 24).

Já o pensamento de José Simão (2015) se assemelha ao de Kümpel e Borgarelli, no sentido de acreditar que, sob o novo regramento, mesmo as pessoas com deficiência que não puderem se expressar serão capazes por ficção legal, então apesar de se sujeitarem à curatela, tecnicamente, não poderão ser assistidas nem representadas. Critica veementemente, assim, diversas alterações feitas pela lei, cujo descompasso com a realidade “será catastrófico” e sem efeito prático, trazendo problemas incontornáveis e seríssimas atecnias em termos de direito civil. Contudo, seu ponto de vista não foi abordado anteriormente em razão das alternativas dadas por ele a alguns desses imbróglios.

Para resolver a questão da função do curador de pessoa com deficiência, que é capaz, o autor compreende que caberá ao juiz definir se será de representação ou assistência, em qualquer caso, com a limitação aos atos patrimoniais imposta pelo art. 85 do EPD. Mas nos demais casos em que o curatelado não puder manifestar sua vontade, na opinião de Simão (2015), a solução seria ignorar a mudança legislativa para declarar sua incapacidade absoluta e permitir a representação, sob pena de desamparar totalmente uma parcela da população e inviabilizar sua própria subsistência, pois, se não pode se expressar, também não pode praticar atos da vida civil por meio da mera assistência que seria aplicada ao relativamente incapaz.

Desse modo, apesar de não defender que a pessoa com deficiência pode ser absolutamente incapaz, argumenta que qualquer outra pessoa o pode, desconsiderando expressa e abertamente a modificação legislativa da hipótese de impossibilidade de manifestação de vontade própria do rol de incapacidade absoluta para relativa. O problema é que, para chegar a tal conclusão, o jurista se baseou meramente na “construção histórica e lógica” (SIMÃO, 2015). Consoante é cediço, pode-se deixar de aplicar uma disposição legal expressa, mas somente quando ela contrariar o que determina norma de hierarquia superior (critério hierárquico) ou quando existir outra norma de mesma hierarquia mais recente (critério cronológico), específica (critério da especialidade) ou compatível com o fim constitucional a

que se destina. Dos autores que defendem a possibilidade de decretar a incapacidade absoluta de maiores de idade mencionados até aqui – depois do advento do EPD –, reconhece-se que suas interpretações contra legem são elogiosamente mais realistas, mas foram construídas com fundamento em seu próprio raciocínio, não tendo nenhuma delas utilizado de algum dos critérios acima.

Essa constatação é espantosa, sobretudo quando se sabe que há uma normativa internacional equiparada a uma Emenda Constitucional (ocupando a mais alta hierarquia no ordenamento pátrio) cuja matéria diz respeito justamente ao direito da pessoa com deficiência. Por isso, exalta-se a importância do artigo de autoria de Wisllene Maria Nayane Pereira da Silva e Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave (2019), intitulado “(In)Constitucionalidade das Alterações no Código Civil de 2002 em Razão da Convenção de Nova Iorque: Uma Evolução que Gera Dúvidas”.

Segundo a referida produção científica, pelo novo cenário legal, mesmo quando são biologicamente totalmente incapazes de exprimir sua vontade ou sequer perceber que a possuem, indivíduos com deficiência são considerados relativamente incapazes, e portanto, sujeitos à assistência do curador e aptos a praticar determinados atos da vida civil. As autoras acreditam que isso se deu por consequência de uma má interpretação e desvirtuamento da finalidade da CDPD, que tem patamar constitucional (SILVA; PRESGRAVE, 2019, p. 8).

Isso porque, de acordo com o artigo 12, parágrafo 4 da convenção, as medidas a serem tomadas em relação ao exercício da capacidade legal pela pessoa com deficiência devem ser proporcionais e apropriadas às suas circunstâncias, com a clara finalidade de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana ao grupo destinatário da norma. Porém, ao excluir o critério do discernimento do rol taxativo dos incapazes, o legislador “acaba por não atentar para o fato de que há casos em que a incapacidade absoluta se mostra como uma medida proporcional e adequada às circunstâncias daquele caso em particular”, de modo que a referida alteração legislativa carece de constitucionalidade (SILVA; PRESGRAVE, 2019, p. 8).

Por fim, convém tratar da perspectiva verdadeiramente adotada por Flávio Tartuce, que, apesar de se considerar inserido no grupo defensor da dignidade-liberdade, não aprova inteiramente as inovações, ponderando aspectos positivos e negativos do Estatuto, e concluindo pela necessidade do retorno da hipótese legal de incapacidade absoluta para adultos no art. 3º do CC/02. Contudo, sua preocupação não é com a pessoa com deficiência – que, no seu sentir, atualmente, pode ser relativamente incapaz caso não tenha condições de manifestar vontade –, e sim com os indivíduos que, não por motivo de deficiência, estejam impossibilitados de se expressar. Vide:

(...) fica a dúvida se não seria interessante retomar alguma previsão a respeito de maiores absolutamente incapazes, especialmente para as pessoas que não têm qualquer condição de exprimir vontade e que não são necessariamente pessoas deficientes. O presente autor entende que sim, havendo proposição nesse sentido no citado Projeto de Lei 757/2015, com o nosso apoio. Cite-se, a esse propósito, justamente a pessoa que se encontra em coma profundo, sem qualquer condição de exprimir o que pensa. No atual sistema, será enquadrada como relativamente incapaz, o que parece não ter sentido técnico-jurídico. (TARTUCE, 2017, p. 75) (grifos adicionados).

Aliás, aqui pode ser feita uma crítica em relação ao novo sistema de interdição inaugurado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Isso porque não só o sociopata, como também o psicopata, anteriormente enquadrados como absolutamente incapazes, deveriam continuar a ser interditados ou sujeitos à curatela. Por isso, opinamos no Projeto de Lei 757/2015 que é necessária a volta de dispositivo tratando como absolutamente incapazes as pessoas que não têm qualquer condição de exprimir vontade.

Com a mudança engendrada pela Lei 13.146/2005, reafirme-se que somente são absolutamente incapazes os menores de 16 anos, não sendo possível enquadrar tais pessoas no rol dos relativamente incapazes do art. 4.o do CC/2002. Em suma, serão tais pessoas plenamente capazes, para os fins civis, o que não parece fazer sentido. Infelizmente, o legislador pensou apenas na pessoa com deficiência, deixando de lado outras situações concretas. (TARTUCE, 2017, p. 931-932) (grifos adicionados).

Quanto ao PL a que o autor se refere, haverá um capítulo oportunamente direcionado a ele, de forma que aqui se dá o enfoque na motivação para o professor Tartuce reputar imperativa a volta da hipótese de impossibilidade de demonstrar vontade própria para o dispositivo da incapacidade absoluta no CC/02. Os trechos acima expostos ilustram a inquietação especificamente com as pessoas sem deficiência que não podem exprimir sua vontade, mas por que pessoas com deficiência que não possam demonstrar seus desejos não deveriam ser absolutamente incapazes também?

Se a circunstância que faz primordial a mudança pleiteada é a pessoa não conseguir se expressar, cabendo para psicopatas e sociopatas, que sofrem de distúrbios mentais, ela se faz necessária igualmente para aqueles cuja deficiência – mental, funcional, intelectual, degenerativa, cognitiva ou de outro tipo – é justamente a causa dessa inaptidão. Nesse ponto, então, o entendimento decorrente do presente estudo é em sentido diverso do apresentado pelo jurista: o legislador não pensou nas pessoas com deficiência mais grave, que são as que mais precisam de proteção.