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4. UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RESTRIÇÃO DA INCAPACIDADE RELATIVA E

4.2 CONSEQUÊNCIAS DA NOVA CURATELA PARA AS PESSOAS COM GRAU DE

4.2.2 Capacidade plena da pessoa com deficiência para constituir matrimônio

Outro âmbito da vida do relativamente incapaz que foi privado da atuação do curador com a chegada do EPD foi o casamento, de modo que, mesmo sob curatela, aquele passou a ser enxergado como plenamente capaz de casar, constituir união estável e planejar a família. Essa inovação se deu em decorrência do anseio já antigo de parcela das pessoas com deficiência, que ficavam à mercê da autorização por parte do curador ou do juiz para exercer seu direito a casar (LIMONGI, 2017, P. 186), conforme a antiga redação dos arts. 1.518 e 1.519, do CC/02, quando tinham pleno discernimento para compreender a importância e o funcionamento do matrimônio e da família.

Além de retirar o termo “curador” do primeiro artigo acima mencionado para tornar desnecessário o seu assentimento para a validade do casamento do curatelado, foram feitas modificações nos artigos 1.548 e 1.557 do diploma material civil. Aplaude-se a revogação do inciso IV deste último dispositivo, que legitimava a anulação do casamento quando um dos nubentes ignorasse doença mental grave do outro que viesse a tornar “insuportável a vida em

comum”, hipótese que denotava extremo preconceito às pessoas com deficiência. Além disso, com a alteração no inciso III do mesmo artigo, só consistirá em erro essencial sobre a pessoa o desconhecimento de defeito físico irremediável se ele não caracterizar deficiência.

Já do art. 1.548, do CC/02, foi revogado o inciso I, que reputava nulo o casamento em que figurasse enfermo mental sem o necessário discernimento, deixando como única causa de nulidade do casamento a existência de impedimento matrimonial, já que passou a inexistir maior de idade absolutamente incapaz (e o menor de 18 anos tem sua capacidade para o casamento regulamentada pelo art. 1.517 e seguintes do CC/02), e tendo em conta que, pela exegese do art. 6º, inciso I, do EPD, a pessoa com deficiência tem plena capacidade civil para casar e constituir união estável, não podendo mais ter seu casamento declarado nulo ou anulado pelo simples fato de ter a deficiência.

É muito positiva a ideia transmitida pelo estatuto de que a deficiência não determina a capacidade da pessoa para constituir matrimônio (ou fazer qualquer outra coisa), mas, como toda generalização é falha, na linha da reflexão feita por Tomazette e Araújo (2015), tão grave quanto generalizar a vedação ao casamento é permitir que ele sempre ocorra, impondo-se o questionamento de se isso representará o melhor interesse do incapaz.

Tem-se que o casamento do incapaz de consentir ou manifestar de modo inequívoco o consentimento será anulável, conforme o art. 1.550, IV, CC/02, mas, de modo contrário, a primeira parte do § 2º, incluído no mesmo artigo pelo EPD, dispõe que “a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia (sic) poderá contrair matrimônio”. Sendo assim, indaga-se se o casamento da pessoa com deficiência relativamente incapaz por não ter condições de exprimir consentimento estaria sujeito à anulação, e qual seria a consequência jurídica se o caso não fosse de impossibilidade de manifestar vontade, mas sim de falta de discernimento para o ato.

Quanto à primeira questão, acredita-se que sim, desde que a anulação não se dê com base na deficiência, mas sim na impraticabilidade de consentir com ato que requer vontade, da mesma forma que se defende que a pessoa com deficiência pode ser considerada relativamente incapaz por motivo semelhante ao disposto no art. 1.550, IV, CC/02. Já no segundo caso, pelo regramento atual, conforme posicionamento que se vem adotando neste trabalho, a pessoa com deficiência sem discernimento é considerada plenamente capaz para o direito civil pátrio, então por isso e pela revogação do inciso I do art. 1.548 do diploma normativo, sem que tenha sua hipótese (com a supressão apenas de “enfermo mental”) sido deslocada para o dispositivo da anulabilidade, por exemplo, entende-se que ela não deve ter seu casamento invalidado.

Pode-se dizer que isso fere a Convenção de Nova York, mais precisamente, o seu artigo 23, parágrafo 1, alínea “a”, segundo o qual deve ser reconhecido o direito de toda pessoa com deficiência em idade núbil de casar-se e estabelecer família, frise-se, com base no livre e pleno consentimento dos pretendentes. Isso significa que, para poderem casar, as pessoas com deficiência necessitam apresentar efetivo consentimento, para o qual é necessário o entendimento das questões e consequências relativas ao matrimônio, ou seja, é preciso ter discernimento para tanto.

Para deixar a problemática ainda mais interessante, alguns, a despeito de elogiarem a modificação no plano familiar para a pessoa com deficiência, pelo reconhecimento de que não é toda deficiência que retira o discernimento para a tomada de decisão de constituição de família, defendem que, por ser a decisão de se casar um ato de vontade, se essa vontade não existir em razão da deficiência, inexistente deveria ser o casamento (SIMÃO, 2015), ao invés de anulável, como dispõe a lei46.

Prosseguindo para a segunda parte do § 2º do art. 1.550, do CC/02, ele diz que, para contrair matrimônio, a pessoa com deficiência poderá expressar sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador, conforme seja menor ou maior de idade. Esse trecho causa estranheza quando analisado em face do art. 85, § 1º do EPD, que veicula a proibição do exercício da curatela no escopo do direito ao matrimônio. Ora, se o curador não pode interferir no direito do curatelado de casar, não faz sentido que possa manifestar o consentimento dado pelo curatelado, e menos ainda quando se está diante da curatela atual, que se restringe a relativamente incapazes, mormente aqueles impossibilitados de consentir (art. 4º, III, CC/02).

Ademais, como enfatiza Viviane Limongi (2017, p. 187 e 189), o art. 1.514 do Código Civil confirma o núcleo existencial e personalíssimo do nubente para o matrimônio, que deve ser realizado no momento em que os noivos manifestam sua vontade de estabelecer vínculo conjugal perante o juiz. A autora questiona, assim, por que poderia a pessoa com deficiência manifestar seu consentimento ao curador se não pode fazê-lo perante o celebrante do casamento, bem como qual seria a idoneidade expressada por um responsável ou curador pela sua simples função, sem que tenha recebido poderes especiais para tanto (afinal, sabe-se da possibilidade de ele ser realizado mediante procuração com poderes especiais47).

46 Aqui impõe-se apenas um adendo para resgatar a ideia tratada alhures de que, segundo Tartuce (2017, p. 805),

a teoria da inexistência não foi adotada pelo ordenamento pátrio.

47 Art. 1.542, caput, CC/02: O casamento pode celebrar-se mediante procuração, por instrumento público, com

Já Rafael Vieira de Azevedo (2017, p. 120-121) aduz que o consentimento para o casamento é ato personalíssimo e tem conteúdo existencial inalienável, então apesar de não ser do curador o consentimento por ele manifesto, o dispositivo em análise representa claro exemplo de extensão da curatela para além dos atos de conteúdo meramente patrimonial. Disso se afere que, se for para manter o art. 1.550, § 2º, do CC/02, deve-se flexibilizar a regra do art. 85, do EPD, e vice-versa, pois as disposições se tratam de uma antinomia real.

Encontra-se ainda outra incoerência dentro do Código Civil envolvendo esse § 2º do art. 1.550: a imposição do regime legal de separação de bens no caso do casamento contraído por maior de 70 anos, com vistas a proteger seu patrimônio, enxergando-o como pessoa vulnerável, consoante o art. 1.641, II, CC/02. Note-se que, independentemente de ter deficiência ou incapacidade, o idoso que quiser casar depois de ultrapassar a idade mencionada terá de se submeter ao regime de separação legal de bens, mesmo que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais. Fazendo um paralelo com o EPD, pode-se chegar à conclusão do paradoxo que é o sistema brasileiro admitir uma maior proteção a qualquer idoso septuagenário do que à pessoa com deficiência sem discernimento para compreender o significado de um matrimônio. Sob esse prisma, Tartuce (2017, p. 805) propõe, além da retomada da antiga previsão constante originalmente no art. 3º, CC/02, no sentido de ser reconhecida como absolutamente incapaz a pessoa que não tenha qualquer condição de exprimir vontade, a volta parcial também do dispositivo revogado em matéria de nulidade de casamento (inciso I do art. 1.548, CC/02), retirando qualquer relação direta da nulidade com a deficiência da pessoa.

Além das sugestões feitas pelo autor, só se reforça a necessidade de prever a falta de discernimento como causa incapacitante ao menos relativa da pessoa com ou sem deficiência, e se suscita a reflexão sobre se não seria melhor que o juiz tivesse a possibilidade de conferir ao curador a função de ter que assentir com a realização do casamento do curatelado, dependendo das suas circunstâncias, sob pena de anulabilidade, do que a retomada da previsão de nulidade do casamento da pessoa sem o discernimento necessário, que é bem mais gravosa e pode acabar prejudicando o desenvolvimento da autonomia da pessoa com deficiência.

A imperatividade disso é refletida na jurisprudência inclusive posterior à entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, na qual se pode encontrar acórdãos como a Apelação Cível 4007229-76.2013.8.26.0554 do TJSP48, que reconhece que o EPD assegura ao

48 INTERDIÇÃO. Sentença que julgou procedente o pedido para decretar a interdição parcial dos curatelados,

com nomeação da genitora para o encargo de curadora. Necessidade de intervenção da curadora para o casamento e constituição de união estável pelos curatelados. Gravidade da deficiência mental dos curatelados, nos termos da perícia médica, que justifica a excepcional limitação. Finalidade do Estatuto da

indivíduo com deficiência a capacidade para o casamento e constituição de união estável, independente da atuação do curador, mas, pelas circunstâncias do caso concreto, diante da gravidade da deficiência mental dos curatelados, unida à finalidade primordial do Estatuto de proteger a pessoa com deficiência, decide manter a sentença que autoriza a intervenção do curador para os referidos fins.

Acrescente-se, ainda, que essa medida, em determinados casos, pode ser a mais adequada às circunstâncias da pessoa, em obediência tanto ao artigo 12, parágrafo 4, quanto ao artigo 23, parágrafo 1, alínea “a”, tratados anteriormente, ambos da CDPD, gozando, portanto, de maior legitimidade derivada da conformidade com o fim da norma de patamar constitucional.

4.2.3 Contraposição entre a capacidade para exercer direitos sexuais e a persistência do