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4. UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RESTRIÇÃO DA INCAPACIDADE RELATIVA E

4.2 CONSEQUÊNCIAS DA NOVA CURATELA PARA AS PESSOAS COM GRAU DE

4.2.1 Impedimento do alcance da curatela ao direito à saúde do curatelado

Tem-se que o EPD proibiu expressamente a atuação do curador no campo da saúde sob o fundamento da posição humanista voltada à viabilização do exercício autônomo de atos extrapatrimoniais, atinentes ao núcleo mais irredutível da existência humana, como forma de propiciar o livre desenvolvimento da personalidade na tomada de decisões quanto às opções de tratamento que estão à disposição da pessoa com deficiência, mesmo que ela esteja sob curatela. Contudo, a ideia de que qualquer pessoa acima dos 16 anos (que somente pode ser capaz ou relativamente incapaz e, nesse caso, sujeita à curatela, que não abrange a esfera da saúde) tenha condições de escolher o que é melhor para sua saúde é impraticável, para não dizer

utópica. O próprio paciente é quem deve dar o aval para a realização de procedimentos médicos, participando o máximo possível do processo de autorização, mas se ele não tiver discernimento para tanto, a melhor alternativa é aplicar o princípio da beneficência, segundo o qual se deve obter a permissão dos responsáveis pelo indivíduo, na hipótese de este ser incapaz de consentir por si mesmo (LIMONGI, 2017, p. 60).

Nesse ponto, entra a importância da teoria do consentimento informado, que, para Aguiar Júnior (2017, p. 344),corresponde ao dever de esclarecer e de obter o consentimento do paciente, exigindo a capacidade do paciente para consentir e o seu direito ou liberdade de consentir ou dissentir. Já a referida capacidade para consentir a um ato médico seria dividida em três correntes: (a) para Amelung, ela está presente desde que se verifique as capacidades para decidir sobre valores, para compreender os fatos, para compreender as alternativas e para se autodeterminar com base na informação obtida; (b) para a British Medical Association, haverá essa capacidade quando o paciente puder compreender em que consiste o tratamento, os benefícios, riscos e alternativas, as consequências de não recebê-lo e tiver condições de tomar decisões livres; e (c) Grisso e Appelbaum, por sua vez, identificam que a incapacidade se refere a déficits funcionais, tais como para compreensão, apreciação da informação, reflexão e expressão da escolha (PEREIRA, 2004, apud AGUIAR JÚNIOR, 2017, p. 348-349).

Desse modo, apesar de nenhuma dessas visões ser completa ou definitiva, todas levam em conta que não é todo paciente que tem capacidade para consentir a realização de um tratamento clínico, e mesmo quando a possui, em casos de pessoas com déficit mental grave, discute-se se é possível dar prosseguimento a tratamento cuja ausência importará em sério risco à saúde do paciente, mesmo sem que ele dê a autorização para tanto, pela preservação do direito à saúde e à vida. Admitir essa possibilidade é justamente a orientação dada pelo art. 13 do próprio EPD, assim como pela Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano, firmada em 1997 pelo Conselho da Europa e outros Estados, sobre a qual Limongi (2017, p. 158) aduz:

Assim, de acordo com a normativa e em consonância com o princípio da beneficência já mencionado, intervenções médicas em pessoas com deficit mental só podem ser realizadas se a finalidade for seu benefício direto, exigindo-se autorização de seu representante, autoridade ou de pessoa ou instância designada pela lei, devendo o paciente na medida do possível, participar no processo de autorização. Outrossim, para tratamentos de enfermidades mentais em pessoa com deficit mental grave, a orientação é de que se exija seu consentimento salvo se a ausência de tal tratamento

puser seriamente em risco a sua saúde. E ainda, nas hipóteses de impossibilidade de

manifestação de consentimento, a orientação dessa Convenção indica que seja realizada a intervenção medicamente indispensável em benefício da saúde da pessoa

Dito isso, resta cristalino que o Direito não pode deixar de verificar a existência da capacidade para consentir por parte do paciente, para que apenas o consentimento consciente e informado, realizado após um processo de discernimento, sirva à tomada de decisões existenciais em relação a atos que envolvam o corpo, a vida e a saúde da pessoa com deficiência. Do contrário, outorgar genericamente a plena capacidade a pessoas com deficiência para atos relacionados à sua saúde, sem a aferição do seu real discernimento, pode ter o efeito oposto ao pretendido pelo legislador, de violar a dignidade da pessoa humana e impedir o livre desenvolvimento da sua personalidade (LIMONGI, 2017, p. 158-159).

Além disso, a vedação da atuação do curador em benefício da saúde do curatelado não faz sentido, principalmente ao ser analisada junto às demais inovações promovidas pelo EPD. Ora, se hoje trabalhamos com a impossibilidade de manifestar vontade como sendo a única hipótese de a pessoa ser submetida à curatela por limitação que tem relação com a deficiência45, como ela poderia dar seu consentimento prévio, livre e esclarecido exigido pelo art. 12 do EPD para fins médicos, se não consegue sequer se expressar? Se for para aplicar essencialmente o art. 85, § 1º do EPD, nessa situação, o indivíduo com deficiência permanecerá completamente desamparado, por não possuir condição fática de reivindicar seu direito à saúde, nem poder receber auxílio da pessoa que deveria ampará-lo por lei, mas paradoxalmente é legalmente proibida de fazê-lo.

A contraditoriedade dentro do ordenamento jurídico nacional se agrava ainda mais quando se atenta à existência do art. 758, do CPC/15, que impõe ao curador o dever de buscar tratamento e apoio apropriados à conquista da autonomia pelo interdito, o que, muitas vezes, importa na necessidade de cuidados com sua saúde. O dispositivo, no entanto, encontra-se em vigor ao mesmo tempo que o art. 85, § 1º do EPD, que, em sentido oposto, impede que a curatela alcance a saúde do curatelado. Diante disso, impõe-se a análise de qual das normas deve prevalecer, tendo em vista que são eminentemente contrárias quando se trata de saúde, não podendo nesse ponto ser compatibilizadas ou aplicadas em conjunto.

Utilizando a metarregra do artigo 4, parágrafo 4 da CDPD, conforme lição de Rafael Vieira de Azevedo estudada no tópico 3.2.2, não é difícil perceber que a disposição mais propícia à realização dos direitos das pessoas com deficiência, entre as duas contrapostas acima, é a do art. 758, CPC/15, inclusive para que a curatela cumpra com os deveres estabelecidos

45 No caso dos ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os pródigos, a causa da incapacidade nada terá a ver

com a deficiência, e por isso aqui não recebem enfoque, mas caso não consigam realizar um consentimento pleno e informado, também vale para eles a tese aqui defendida de que a restrição da curatela é prejudicial e inconstitucional, pois seu curador deveria poder decidir por eles, buscando o melhor tratamento para a recuperação da sua saúde e autonomia, em cumprimento à CDPD.

pelo artigo 12, parágrafo 4, da CDPD, de prevenir abusos, respeitar os direitos do curatelado e, sobremaneira, o de ser isenta de conflito de interesses e de influência indevida.

Isso porque, ao permitir que a pessoa relativamente incapaz que não consiga tomar decisões autonomamente permaneça com a saúde debilitada, quando há alternativa de tratamento que pode melhorar seu quadro, inclusive podendo conferir-lhe maior independência, mesmo que pautado no art. 85, § 1º, EPD, o curador estará violando o direito fundamental à saúde da curatelada, além do claro ditame do artigo 12, parágrafo 4, da CDPD, mediante abuso que pode ter como motivação o seu interesse de que ela continue naquele estado, já que enquanto for considerada relativamente incapaz e sujeita à curatela, sua vida financeira e patrimonial (somente) será sujeita às decisões do curador.

Sendo assim, no que tange à saúde da pessoa sob curatela, o art. 85, do EPD deve ser revisto para permitir, em determinadas situações – quais sejam, aquelas em que a pessoa não tenha condições de dar seu consentimento informado para a realização de um tratamento médico –, a aplicação da curatela com alcance ao âmbito da saúde, como forma de garantir a sua dignidade humana e efetivar verdadeiramente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Observe-se que o ideal é que a autorização só deva ser decisão do curador quando o curatelado estiver incapacitado de tomá-la, pois é preciso dar prioridade à sua máxima participação no processo decisório.