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Sem dúvida, o advento de novos paradigmas para institutos antigos afeta sobremaneira o público alvo da disposição normativa – no caso aqui estudado, mais especificamente as pessoas com deficiência e aqueles que antes eram enquadrados na categoria de absolutamente incapazes, bem como todos os demais que venham a ser curatelados –, mas é preciso reconhecer que também repercute fortemente na atividade daqueles que trabalham com a matéria com o objetivo de efetivar os direitos e obrigações previstos na legislação.

Nesse ponto, entra a relevância das funções essenciais à justiça, que, conforme o capítulo IV do título IV da Constituição, consistem no Ministério Público, na Advocacia Pública, na Advocacia Privada e na Defensoria Pública. Levando em conta que os advogados públicos têm a missão de representar juridicamente as esferas governamentais, eles lidam mais com a matéria relativa à pessoa com deficiência no tocante a políticas públicas, não trabalhando com os institutos da incapacidade e curatela, e por isso não foram considerados nesta pesquisa. Já os advogados particulares têm um papel extremamente importante para a garantia dos direitos de toda a população, mas, como a Defensoria Pública e o Ministério Público receberam incumbências diretas do Estatuto, no qual foi ressaltado o seu papel de defesa e proteção aos hipossuficientes e vulneráveis, optou-se por priorizar a análise de alguns dos direcionamentos destes dois últimos enquanto instituições sobre as mudanças no rol dos incapazes e na finada interdição24.

Sendo assim, cronologicamente, cumpre assinalar que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já externava suas preocupações quanto à aplicação quase sempre integral da interdição de direitos de incapazes mesmo antes do EPD, tendo realizado a campanha “Interdição Parcial é Mais Legal” com a divulgação de um manual sobre o assunto em 2014, elaborada pelo GT-7 - Pessoa com Deficiência da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos do CNMP.

Tomando como base a Convenção de Nova York, o manual defendia que a capacidade civil da pessoa só poderia ser limitada quando necessário, e sempre visando a proteção do seu direito, vontade e autonomia, tratando-se de exceção à regra da capacidade plena (CNMP, 2014, p. 5). Não se previa a urgência de modificar o rol de incapazes, mas sim de aplicar a interdição parcial com os limites determinados pelo juiz de forma proporcional e apropriada às circunstâncias da pessoa, conforme o art. 12 da CDPD. O manual chega a afirmar que a lei, ao prever a possibilidade de interdição parcial no art. 1.772 do Código Civil desde 2002, já se aproximava da concepção do tratado com status constitucional (CNMP, 2014, p. 8).

Ademais, anteriormente ao Estatuto, reconhecia-se que já imperavam algumas ideias que hoje são comumente atribuídas a ele, tais como a possibilidade de a pessoa com deficiência requerer a nomeação de curador para si, já prevista no antigo art. 1.780 do CC/02 – revogado pelo EPD para incluir a hipótese de a própria pessoa promover o processo de curatela –, bem

24 É importante esclarecer que se fala em “finada interdição” não como procedimento extirpado do nosso

ordenamento jurídico (apesar de assim pensarem alguns juristas), mas sim como termo ultrapassado, o qual deu lugar ao processo que define os termos da curatela e o curador, tratando-se do mesmo instituto, porém com os ajustes procedimentais e a nova nomenclatura dados pelo EPD.

como a utilização de equipe multiprofissional, com profissionais da área da deficiência, para proceder ao exame e sugerir os apoios necessários, por força da CDPD (CNMP, 2014, p. 7). Já se posicionava pelo direito de pessoas sob interdição parcial ao voto e ao casamento (desde que tivessem discernimento para tanto e livremente expressassem suas vontades) e até em caso de interdição total, ao trabalho, por ser direito fundamental (CNMP, 2014, p. 10-13).

Com a chegada do EPD, certos pontos já apontados pelo manual do CNMP foram confirmados, mas gerou-se muita confusão, sobretudo quanto à teoria das incapacidades e aos limites da curatela. Como assevera Waldir Macieira da Costa Filho (2016, p. 376-377), promotores e procuradores de justiça se reuniram para definir os novos parâmetros de atuação nos processos de interdição e de tomada de decisão apoiada. Cita como bom exemplo disso a reunião de trabalho dos membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) feita em Brasília, em fevereiro de 2016, onde produziram enunciados a serem encaminhados à 4ª Câmara Cível para discussão e aprovação.

Tamanha foi a perturbação promovida pelo Estatuto que, no terceiro enunciado, o MPDFT estabeleceu que o art. 85 do EPD deve ser interpretado sem a necessidade de observar o critério da legalidade estrita, conforme o art. 723, parágrafo único, do CPC/15, de forma que a curatela da pessoa com deficiência poderá afetar o exercício de direitos de natureza extrapatrimonial, desde que assim seja determinado na sentença. Do mesmo modo, o quarto enunciado afirma que os artigos 3º e 4º do CC/02 não disciplinam todas as hipóteses de incapacidade, podendo a incapacidade absoluta ser decretada por sentença quando cabível.

Apesar de o direcionamento deste trabalho ser no sentido da ideia de tais enunciados, sobretudo quanto às pessoas que têm limitações para outros atos da vida, ou pior, às que não têm discernimento algum e efetivamente não podem exprimir a vontade, demandando uma proteção mais específica e abrangente, não se acredita ser possível aplicar essa compreensão diante da legislação vigente, haja vista ser diretamente contrária a tal.

E, ainda que coubesse, referida interpretação deveria tomar como base, no mínimo, os ditames constitucionais, e não apenas um dispositivo do código processual civil, cujo teor serviria para legitimar a aplicação de qualquer entendimento, tornando irrelevante o que diz a lei, caso pudesse ser usado como único fundamento para flexibilizar a ponto de dar sentido oposto às normas claras dos artigos 85, EPD, 3º e 4º, do CC/02, com a redação dada pelo correto processo legislativo em 2015.

No mesmo ano de 2016, o CNMP editou um novo manual voltado para orientar as pessoas quanto às medidas de apoio previstas no EPD, quais sejam a tomada de decisão apoiada e a curatela. No tocante à curatela, que é o que interessa à presente monografia, ressalta que,

antes mesmo do advento do EPD, “já se defendia a curatela que levava à interdição parcial da pessoa como sendo o instituto que mais se aproximava da mencionada salvaguarda constante do Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, desde que sua aplicação respeitasse as regras impostas pelo parágrafo 4 do dispositivo mencionado (CNMP, 2016, p. 5) – que não inclui a sua limitação rígida a atos negociais e patrimoniais.

Em razão do que diz o Estatuto, o referido manual aduz que a curatela é ferramenta de exceção, e que sempre deverá ser usada para a proteção patrimonial e negocial da pessoa em situação de curatela (CNMP, 2016, p. 6). Todavia, ao tratar das consequências da medida, admite a possibilidade de o juiz não observar o critério da legalidade estrita (na mesma linha do terceiro enunciado do MPDFT sobre o assunto), adotando em cada caso a solução que reputar mais conveniente e oportuna (CNMP, 2016, p. 16).

Isso vem sendo feito por muitos tribunais ao entender que a curatela da pessoa com deficiência que não possa exprimir de nenhuma forma sua vontade poderá alcançar direitos extrapatrimoniais, desde que conste do parecer da equipe multiprofissional, tenha justificativa na sentença e seja proporcional ao caso (CNMP, 2016, p. 16). Aqui, cabe a mesma crítica à aplicação isolada e desmedida do art. 723, parágrafo único, do CPC/15, que se torna perigosa principalmente quando não se leva em conta a Convenção de Nova York para fazer flexibilizações desarrazoadamente.

Outro ponto relevante a comentar do manual do CNMP de 2016 (p. 12) é sobre o rol dos incapazes que sofreu modificação pelo EPD. Ao tratar daqueles que estão sujeitos à curatela, o manual expõe a noção de que a expressão “exprimir sua vontade” do art. 4º, III, CC/02 não diria respeito aos fatores relacionados à forma de comunicação, mas à de dar a conhecer, transmitir sua vontade e entender o contexto em que ela está sendo exprimida (isso, vale dizer, é exatamente o que “discernimento” significa).

Mais uma vez, há que se endossar o posicionamento do CNMP no sentido de que pessoas sem discernimento não podem ser consideradas plenamente capazes para todos os atos da vida civil, contudo, a aplicação dessa interpretação com base no que diz atualmente a lei parece mais uma forma de compensar a exclusão da hipótese de incapacidade daqueles “sem o discernimento necessário”, mantendo tais pessoas como incapazes relativos, e acredita-se que, se o legislador retirou a possibilidade em questão, é porque optou por ela não mais existir.

Nesse ínterim, a Defensoria Pública Estadual (DPE) também se preocupou com a temática, com destaque para a do estado do Rio de Janeiro, que realizou um seminário em maio de 2016 apenas para debater as implicações do EPD na atuação da instituição. Na oportunidade, foi enfatizado que o foco da deficiência sai da pessoa que desvia do padrão e vai para as

barreiras que lhe são impostas; que não há mais hipótese de representação no processo, mas somente de assistência; e que o binômio capacidade-apoio pode assegurar a todos os deficientes o exercício pleno da própria vontade. Ao final, foram discutidos enunciados sobre a matéria (ANADEP, 2016).

Como fruto de seminários como esse, a DPE/RJ editou sugestões de enunciados relativos à curatela, os quais, de modo diverso do Ministério Público, ratificam as inovações do EPD no tocante à impossibilidade de a medida ser aplicada além dos atos patrimoniais (sugestão de enunciado 04), bem como à vedação de declaração de incapacidade absoluta do curatelado (sugestão de enunciado 06), podendo a pessoa com deficiência ser considerada, no máximo, relativamente incapaz, caso não possa exprimir sua vontade (sugestão de enunciado 02)25.

Apesar de cumprirem com o que provavelmente pretendeu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, tais enunciados e as ideias que levaram a eles, por sua vez, merecem crítica por cometerem o mesmo erro do Estatuto de ignorar algumas situações que fazem parte inevitavelmente da realidade, carecendo de efetividade prática para determinadas pessoas com deficiência.

Isso porque é sabido que não são poucas as pessoas com deficiência grave a ponto de fulminar sua capacidade de exprimir vontade, se autodeterminar e compreender o contexto em que se inserem, e, de acordo com o EPD e os referidos enunciados da Defensoria do Rio de Janeiro, tais indivíduos ficarão sem acesso a muitos dos seus direitos, pois como poderão praticar atos existenciais por si sós ou patrimoniais e negociais mediante assistência – que exige a manifestação de vontade conjunta do assistente e do assistido – quando, em verdade, não possuem condição fática alguma para praticá-los?

Essa e outras questões inquietaram igualmente determinados autores da doutrina e juristas da academia, que passaram a estudar e se posicionar a favor ou contra as inovações, formulando teorias e analisando criticamente a forma de melhor aplicá-las, conforme se passa a ver no tópico a seguir.

3.2 TENTATIVAS DA ACADEMIA DE COMPREENDER A INOVAÇÃO E