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Uma análise constitucional dos impactos do estatuto da pessoa com deficiência na teoria das incapacidades e nos limites da curatela

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

AMANDA BEZERRA DE LIMA

UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL DOS IMPACTOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA TEORIA DAS INCAPACIDADES E NOS

LIMITES DA CURATELA

NATAL/RN 2019

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AMANDA BEZERRA DE LIMA

UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL DOS IMPACTOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA TEORIA DAS INCAPACIDADES E NOS LIMITES DA

CURATELA

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Professora Doutora Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave.

NATAL/RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Lima, Amanda Bezerra de.

Uma análise constitucional dos impactos do estatuto da pessoa com deficiência na teoria das incapacidades e nos limites da curatela / Amanda Bezerra de Lima. - 2019.

98f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave.

1. Estatuto da Pessoa com Deficiência - Monografia. 2. Convenção - Direitos das Pessoas com Deficiência - Monografia. 3. Teoria das incapacidades - Monografia. 4. Limites da curatela - Monografia. 5. Constitucionalidade - Monografia. I. Presgrave, Ana Beatriz Ferreira Rebello. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 342.7-056.26

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“Lutar pelos direitos dos deficientes é uma forma de superar as nossas próprias deficiências” (John F. Kennedy)

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a verificar o acerto das inovações promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência na teoria das incapacidades e nos limites impostos à curatela sob o viés constitucional, utilizando a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como parâmetro, tendo em vista seu status de Emenda Constitucional, assim como sugerir eventuais soluções alternativas, a partir do procedimento metodológico lógico dedutivo. Para isso, inicia-se pelo histórico do direito da pessoa com deficiência, perpassando pelo contexto de criação do estatuto e suas contribuições positivas e negativas. Posteriormente, coloca-se em perspectiva as diferentes interpretações da comunidade jurídica brasileira sobre o tema – incluindo entendimentos da Defensoria Pública e Ministério Público, pesquisa bibliográfica de obras de doutrinadores pátrios e pesquisa jurisprudencial de acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo –, até chegar à análise das consequências jurídicas e práticas tanto da abolição da categoria da incapacidade absoluta para maiores de 16 anos quanto da limitação da curatela a atos patrimoniais e negociais, a fim de averiguar a compatibilidade de tais fatores com a convenção, ou seja, sua constitucionalidade. Levando em consideração todos os aspectos destrinchados, conclui-se que uma nova reforma legislativa é a medida que se apresenta como resolução ideal dos problemas criados pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, desde que abarque os pontos que necessitam de ajustes, diante do que impende, por fim, estudar o Projeto de Lei do Senado 757/15 e o estado em que se encontra atualmente na tramitação no Congresso Nacional.

Palavras-chave: Estatuto da Pessoa com Deficiência. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Teoria das incapacidades. Limites da curatela. Constitucionalidade.

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ABSTRACT

This paper aims to verify the correctness of the innovations promoted by the Statute on Persons with Disabilities in the theory of incapacities and in the limits imposed to the guardianship through the constitutional scope, using the Convention on the Rights of Persons with Disabilities as a parameter, knowing it has Constitutional Amendment status, as well as to suggest possible alternative solutions, based on the deductive logical method. To this end, it begins with the history of the right of persons with disabilities, going through the context of the creation of the statute and its positive and negative contributions. Subsequently, the different interpretations of the Brazilian law scholars on the subject are put into perspective – including understandings of the Public Defender’s Office and the Public Prosecution Service, bibliographic research of indoctrinators’ works and jurisprudential research of judgments handed down by the São Paulo State Court of Appeals – until the analysis of the legal and practical consequences of both the abolition of the category of absolute incapacity for people over 16 years and the limitation of guardianship to patrimonial and business acts, in order to ascertain the compatibility of such factors with the convention, in other words, their constitutionality. Considering all the detached aspects, it is possible to conclude that a new legislative reform is the ideal solution to the problems created by the Statute on Persons with Disabilities, as long as it includes the points that need to be adjusted, and in view of this, it is necessary, at last, to study the Senate Bill 757/15 and its current situation pending in the National Congress.

Keywords: Statute on Persons with Disabilities. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Theory of incapacities. Guardianship limits. Constitutionality.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CC Código Civil

CDPD Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova York

CN Congresso Nacional

CNMP Conselho Nacional do Ministério Público

CONADE Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência

CORDE Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência

CP Código Penal

CPC Código de Processo Civil

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil

DPE Defensoria Pública Estadual

EC Emenda Constitucional

EPD Estatuto da Pessoa com Deficiência

MPDFT Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

ONU Organização das Nações Unidas

PL Projeto de Lei

PLS Projeto de Lei do Senado

STF Supremo Tribunal Federal

TJRJ Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 EVOLUÇÃO DO DIREITO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ATÉ O EPD ... 11

2.1 CONTEXTO DA CRIAÇÃO DO EPD E RESGATE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE A PESSOA COM DEFICIÊNCIA ... 15

2.2 CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA E BUSCA DA AUTONOMIA ... 18

2.3 (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ESTATUTO: COMPATIBILIDADE COM A CONVENÇÃO DE NOVA YORK ... 20

2.4 MUDANÇAS NA TEORIA DAS INCAPACIDADES E NA ANTIGA INTERDIÇÃO 26 3. COMPREENSÃO PELA COMUNIDADE JURÍDICA DAS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO EPD: CONFUSÃO E INTERPRETAÇÕES CONTRA LEGEM ... 34

3.1 O NOVO REGRAMENTO SOB A ÓTICA INICIAL DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA: MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA PÚBLICA ... 34

3.2 TENTATIVAS DA ACADEMIA DE COMPREENDER A INOVAÇÃO E HARMONIZÁ-LA COM O CPC/15 ... 38

3.2.1 Alterações no rol dos incapazes: pessoa com deficiência tem sempre capacidade plena ou ainda pode ser relativa ou absolutamente incapaz? Divergências doutrinárias ... 39

3.2.2 Reações à nova curatela e ao descompasso com o Código de Processo Civil de 2015 .. 45

3.3 APLICABILIDADE DO EPD AOS PROCESSOS DE CURATELA: PESQUISA JURISPRUDENCIAL DE ACÓRDÃOS PROLATADOS PELO TJSP ... 50

4. UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RESTRIÇÃO DA INCAPACIDADE RELATIVA E DA TAXATIVIDADE DA CURATELA A ATOS PATRIMONIAIS E NEGOCIAIS .. 60

4.1 SIGNIFICADO DA ABOLIÇÃO DA INCAPACIDADE ABSOLUTA PARA OS MAIORES DE 16 ANOS E SEUS PREJUÍZOS LEGAIS ... 60

4.2 CONSEQUÊNCIAS DA NOVA CURATELA PARA AS PESSOAS COM GRAU DE DEFICIÊNCIA ELEVADO: AUTONOMIA OU DESAMPARO? ... 67

4.2.1 Impedimento do alcance da curatela ao direito à saúde do curatelado ... 71

4.2.2 Capacidade plena da pessoa com deficiência para constituir matrimônio ... 74

4.2.3 Contraposição entre a capacidade para exercer direitos sexuais e a persistência do crime de estupro de vulnerável ... 78

5. A NECESSIDADE DE UMA REFORMA LEGISLATIVA E O PLS 757/15 ... 84

6. CONCLUSÃO ... 89

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1 INTRODUÇÃO

Em 2015, foi publicada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), com promessas de progresso no tratamento legal desse segmento populacional. A lei teria sido elaborada com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova York (CDPD), que tem como alguns de seus principais propósitos concretizar a autonomia da pessoa com deficiência e conferir-lhe o tratamento adequado e proporcional às suas necessidades, em respeito à sua irredutível dignidade humana.

A Convenção de Nova York adquiriu status constitucional em 2008, quando foi internalizada no ordenamento nacional nos termos do art. 5º, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), mas o assunto somente vem tendo a merecida atenção da comunidade jurídica brasileira com o advento do EPD, que foi recebido de forma dividida, entre aplausos e rejeições.

O presente trabalho enfocará nas alterações promovidas pela lei nos âmbitos da teoria das incapacidades e dos limites à curatela – anteriormente chamada de interdição – por considerá-las as mais significativas para a realidade jurídica e prática não só das pessoas com as mais variadas deficiências, e portanto com limitações específicas e diferenciadas, mas de todas aquelas que, até o estatuto, encaixavam-se na categoria de absolutamente incapazes. Dado o peso dessas inovações, impõe-se o questionamento de se com elas a lei teria solucionado da melhor forma problemas antes existentes, ou se teria deixado de cumprir seu papel de dar proteção proporcional e adequada à pessoa com deficiência, conforme a CDPD.

Constatando a necessidade de colocar em perspectiva os múltiplos e divergentes pontos de vista sobre o tema e de adotar um critério jurídico adequado para melhor avaliá-lo, unida à relevância de observar as consequências reais dessas mudanças trazidas pelo EPD, pretende-se, como objetivo geral, verificar a propriedade da reforma no rol dos incapazes e na curatela sob o viés constitucional, utilizando a Convenção de Nova York como parâmetro de constitucionalidade, e sugerir eventuais soluções alternativas, a partir do método de abordagem lógico dedutivo.

Para isso, iniciar-se-á com um histórico do direito da pessoa com deficiência no capítulo 2, a fim de melhor compreender o contexto, as razões e as intenções que permearam a criação da CDPD e, posteriormente, do EPD. Identificado o sentido do tratado internacional, que tem hierarquia constitucional, será possível adentrar no assunto da compatibilidade do estatuto com ele, comparando dispositivos de ambos os diplomas para, especificamente no

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tópico 2.4, introduzir as modificações trazidas pela lei ordinária no campo das incapacidades e da curatela, que passarão a ser analisadas mais detidamente a partir de então.

Mais adiante, no começo do capítulo 3, serão expostas as reações do Ministério Público e da Defensoria Pública às inovações aqui tidas como objeto de estudo, dada a importância das instituições como funções essenciais à justiça cujo papel na defesa dos direitos das pessoas com deficiência o EPD apontou explicitamente. Já o tópico 3.2 terá como intuito realizar pesquisa bibliográfica das obras de autores brasileiros sobre o assunto, para demonstrar a dissonância de interpretações conferidas às profundas alterações mencionadas.

Para encerrar o capítulo, cujo objetivo é ilustrar os variados e, muitas vezes, infundados posicionamentos da comunidade jurídica perante a questão, serão analisados acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) prolatados sob a vigência do EPD, a fim de verificar se e como os novos institutos estão sendo aplicados na prática forense aos destinatários da mudança e maiores interessados na discussão suscitada nas subseções antecedentes.

Prosseguindo para o capítulo 4, alcançar-se-á a parte mais crítica da presente monografia, cujo objetivo será analisar as consequências jurídicas da abolição da incapacidade absoluta para adultos e da vedação do alcance da curatela a atos existenciais. Ou seja, pretende-se averiguar os reais efeitos práticos das mudanças promovidas pelo EPD na vida daqueles que ele se propõe a tutelar, sobretudo os que mais necessitam, quais sejam, as pessoas com deficiência grave, concluindo o tópico com a análise pormenorizada do que o novo regramento significa para cada campo extrapatrimonial em que o curador foi expressamente proibido de atuar.

Com isso, será possível verificar se as consequências das alterações levam efetivamente ao melhor cumprimento dos preceitos constitucionais da CDPD. Para fechar o desenvolvimento, no capítulo 5 será estudado o projeto de lei ainda em tramitação, originariamente apresentado como Projeto de Lei do Senado (PLS) 757/15, motivado por inquietações semelhantes às que deram origem a este trabalho, e que terá a chance de ajustar arestas e aspectos do EPD e de outras leis pertinentes ao assunto que não cumpram verdadeiramente com os desígnios internacionais e constitucionais do direito da pessoa com deficiência, em razão do que este é o melhor momento para se posicionar sobre seu conteúdo e sugerir adequações.

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2 EVOLUÇÃO DO DIREITO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ATÉ O EPD

Ao longo da história, as pessoas com algum tipo de deficiência foram tratadas das mais diversas formas, de acordo tanto com o tipo e grau de limitação biológica que possuíam, quanto com o contexto histórico e social em que estavam inseridas. A trajetória percorrida em busca da inclusão social de tais pessoas até o estado em que se encontram nos dias atuais, contudo, trata-se de um processo árduo, não-linear, com retrocessos após períodos de progresso, e heterogêneo, no decorrer do qual não é incomum encontrar visões positivas ou caridosas em um local, e ao mesmo tempo, um olhar de rejeição, indiferença ou coisificação em outro ponto do globo.

Para ilustrar essa irregularidade, pode-se usar como exemplo já o início da civilização humana da qual se tem registros escritos, tendo em vista que, conforme Vinícius Gaspar Garcia (2011), dentro da própria Antiguidade, havia dois tipos totalmente diferentes de tratamento predominantes em relação às pessoas com deficiência.

Um deles se consubstanciava no desprezo resultante na eliminação sumária, naturalizada pelo costume de lançar ao mar ou em precipícios bebês e pessoas que adquiriam deficiências em Esparta, pois deixavam de servir para a guerra, bem como pela permissão dada na Roma Antiga para que os pais das famílias nobres deixassem os filhos recém-nascidos “defeituosos” nas margens dos rios para serem acolhidos e criados pelos mais pobres, caso não quisessem sacrificá-los.

Em sentido diametralmente oposto, a sociedade de Atenas – que, assim como Esparta, foi uma das cidades-Estado mais importantes da Grécia Antiga, mas com uma cultura completamente diferente – tinha a prática de dar suporte e proteção àqueles com deficiências, mesmo desde milênios antes de Cristo, sob a influência da máxima de Aristóteles até hoje aplicada de que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça” (GARCIA, 2011).

Já com o advento do cristianismo no auge do Império Romano e das desigualdades entre nobres e plebeus, os princípios da caridade, amor ao próximo e valorização da simplicidade contribuíram para a criação de hospitais voltados aos pobres e marginalizados, nos quais estavam inseridos aqueles com alguma deficiência. Também era obrigação paroquial a prestação de assistência aos enfermos, apesar de haver a vedação de quem possuísse deficiência física ou sensorial a exercer o sacerdócio – consoante a obra “Teologia da Inclusão” de Emílio Figueira (2015, p. 129), tal restrição tem lugar no Código de Direito Canônico e é permanentemente discutida pelas autoridades eclesiásticas.

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Depois da evolução no sentido da caridade, as referências gerais da Idade Média apontam que as pessoas com deficiência deram um passo para trás na conquista dos seus direitos, sendo poucos os momentos em que se imperava o assistencialismo, pois passaram a ser vistas como castigo de Deus, desprezadas e excluídas dentro de uma parcela da população já marginalizada, de modo que prevalecia no cenário mundial a prática de extermínio daquilo que era considerado muitas vezes como “monstruosidade” (PONTES, 2017, p. 19).

Em sequência, o Renascimento trouxe uma fase mais esclarecida da humanidade, com o reconhecimento de direitos universais e do valor humano, devido ao avanço da ciência que desmistificou muitos dogmas da era medieval. Com efeito, apesar de ainda persistir a resistência de parte da população, a ideia de que as pessoas com deficiência precisam de uma atenção própria se fortalece, tendo como exemplos no século XVI os primeiros registros de conversação por meio de sinais para o atendimento aos surdos, antes tidos como ineducáveis ou possuídos por maus espíritos, e a criação de locais de atendimento especiais para pessoas com deficiência, representando uma paulatina valorização do grupo na modernidade (GARCIA, 2011).

Com isso, aos poucos a ciência passou a se interessar pelo segmento, trazendo o conceito biomédico de deficiência para englobar a intelectual, além da física e sensorial, de modo a sempre estar atrelada a uma patologia individual, sem considerar os aspectos sociais. Essa visão, contudo, deu causa à submissão forçada das pessoas com deficiência a experiências científicas na Alemanha nazista de Hitler, conforme ressalta Garcia (2011), e mesmo quando havia a intenção de trazer o bem para elas, não raramente levava ao seu isolamento, com o paradigma da institucionalização psiquiátrica (ALMEIDA, 2019).

Nesse contexto, no Brasil dos séculos XIX e XX, após séculos de invisibilidade e abandono, foi implementada a educação especial de cegos e surdos em internatos, assim como na Europa, com o sistema Braille de escrita, sendo proibido, porém, o uso da língua de sinais para os surdos, sob a justificativa de evitar o comprometimento do aprendizado compulsório da linguagem oral (LANNA JÚNIOR, 2010, apud MAIOR, 2017, p. 30). Ademais, foram criadas escolas privadas especiais para crianças com deficiência intelectual, por iniciativa das associações Pestalozzi1 e das Apae (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais2), surgidas

1 “Como Pestalozzi fazia, o Movimento no Brasil trata hoje do seu método de trabalho com a inabalável

convicção de que a pessoa com deficiência se desenvolve de dentro para fora e não na direção oposta como dita a regra geral da educação convencional.

As associações Pestalozzi, as Federações Estaduais e todo o Movimento Pestalozziano se fundam nas premissas: amor e esperança, que sustentam o esforço individual e coletivo pela educação, reabilitação e inclusão social das pessoas com deficiência.” (Disponível em: http://fenapestalozzi.org.br/como-criar-uma-associacao-pestalozzi. Acesso em: 8 nov. 2019)

2 Apesar de o termo “excepcionais” estar ultrapassado, mantém-se até os dias atuais na denominação de tais

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nos anos 50, mas atuantes até hoje em favor das pessoas com deficiência. Infelizmente, esses avanços impactaram só uma pequena parte dessas pessoas, tendo em vista a diversidade de formas de manifestação das imperfeições que existem dentro dessa categoria.

Utilizando ainda o modelo biomédico de deficiência, no âmbito governamental foram mantidas iniciativas assistencialistas divorciadas das políticas públicas direcionadas à população em geral, sob o comando da Legião Brasileira de Assistência (LBA), caracterizando-se por caracterizando-serem específicas, isoladas e normalmente restritas à saúde, assistência social e educação segregacionista (MAIOR, 2017, p. 31). Interpretava-se a deficiência como incapacidade a ser superada pela reabilitação, normalização das pessoas pela retirada das limitações funcionais para que pudessem se integrar à sociedade, ignorando as barreiras sociais.

Desse modo, quando não era possível suprir a deficiência das pessoas pela via médica, sobretudo as que possuíam doenças mentais eram condenadas a viver internadas em institutos psiquiátricos, confinadas ou abandonadas pelas famílias, e, em caso de provocarem desordem ou prejuízos à sociedade por causa da sua incapacidade, chegavam a ser até encarceradas, tudo em razão da falta de conhecimento e interesse da sociedade em saber lidar com as diferenças, aliada ao conceito biológico de deficiência predominantemente aplicado pelos intelectuais.

Revolucionando a forma de enxergar a temática, conforme ensina Izabel Maior (2017, p. 31) na década em 1960 começou a surgir o modelo social de deficiência em contraste ao biológico, com a reivindicação de direitos e a luta pelo reconhecimento da autonomia das pessoas com deficiência e das suas condições de interação com a sociedade, mesmo com as limitações funcionais, que devem ser aceitas, compensadas ou contornadas para propiciar a verdadeira inclusão. Isso deu sustento e impulso para, ao final dos anos 70, surgir o movimento político das pessoas com deficiência no Brasil, cujos detalhes serão melhor destrinchados no subcapítulo seguinte.

De volta ao contexto mundial, no período entre e após as grandes guerras, os países europeus e os Estados Unidos desenvolveram medidas, programas e centros de assistência para os ex-combatentes com sequelas, dada a sua importância para tais nações, atrelada às mudanças promovidas pelo Welfare State3. A elevada quantidade de indivíduos amputados, cegos e com

transtornos psicológicos resultantes da vivência de uma guerra passou a ser foco de discussões políticas internacionais, inclusive na Organização das Nações Unidas (ONU), conforme Garcia (2011).

múltipla, estando presente em mais de dois mil municípios no país. (Informação disponível em: https://apae.com.br/. Acesso em: 8 nov. 2019)

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Uma das contribuições mais relevantes da ONU para a evolução do Direito das Pessoas com Deficiência foi a decretação do ano de 1981 como “Ano Internacional da Pessoa Deficiente”, quando, após forte pressão das organizações formadas por e para tais pessoas, foi introduzida pela primeira vez a terminologia “pessoa” para humanizar a sua imagem, impactando profundamente o mundo inteiro, conforme Sassaki (2003), citado por Pontes (2017, p. 24-25). Mas o papel principal da organização internacional mais abrangente do mundo nessa problemática cinge-se à elaboração de múltiplas declarações e convenções internacionais.

Sob essa perspectiva, em dezembro do ano 2001, a ONU criou um comitê ad hoc4

responsável por discutir a temática das pessoas com deficiência e pactuar um tratado internacional. Após cinco anos de trabalho, no decorrer dos quais houve forte mobilização internacional e participação das organizações da sociedade civil compostas e voltadas para as pessoas com deficiência, bem como de ativistas de direitos humanos e agências internacionais, nas atividades preparatórias, paralelas e nas oito sessões oficiais na sede das Nações Unidas em Nova York, foi adotada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo na 61ª Sessão da Assembleia Geral da ONU (LOPES, 2016, p. 38-39), que é a mais importante para fins do presente estudo.

Ainda segundo Laís de Figueiredo Lopes (2016, p. 38-39), o referido instrumento normativo foi o primeiro do século XXI e o mais recente tratado de direitos humanos do sistema global de proteção da ONU, tendo o Brasil como um dos protagonistas no seu processo de criação. O país manifestou compromisso político de apoiar a convenção e de que a legislação nacional teria o papel de mera regulamentação, em harmonia e cumprimento aos termos daquela, motivo pelo qual manteve a tramitação do então projeto de lei (PL) do Estatuto da Pessoa com Deficiência no Congresso Nacional (CN) sobrestada até a finalização do tratado, em 2006.

Vale dizer que a convenção tem como mensagem principal a de que às pessoas com deficiência devem ser garantidos absolutamente todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sem discriminação, tendo sido um dos instrumentos internacionais mais rapidamente ratificados até hoje, com mais de 160 assinaturas de Estados soberanos, conforme informação extraídas do site das Nações Unidas Brasil (2016).

Com a aprovação da convenção e do seu protocolo, a sociedade civil brasileira passou a promover a Campanha Assino Inclusão, que mobilizou o parlamento e o governo federal para a ratificação com o quórum qualificado de 3/5 em cada casa, previsto pelo art. 5º, § 3º da

4 Ad hoc, de acordo com o Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, significa “para este fim particular”,

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Constituição Federal – incluído pela Emenda Constitucional 45/04 – para dar ao referido tratado de direitos humanos equivalência a Emenda Constitucional (EC). Cumprido o referido quórum, bem como os demais requisitos do processo de ratificação, em 1º de agosto de 2008, a CDPD junto a seu Protocolo Facultativo passou a ser o primeiro tratado internacional a ter, indiscutivelmente, caráter constitucional5, com a mais alta relevância jurídica, política e social (LOPES, 2016, p. 40-41).

Nesse passo, os olhares voltaram para o teor do que viria a ser o Estatuto da Pessoa com Deficiência, com a preocupação de que ele atendesse ao que dispõe a CDPD, sobretudo depois de ter adquirido status constitucional, regulamentando-a no que fosse necessário. O resultado disso veio em 6 de julho de 2015 com a publicação da Lei 13.146, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que, talvez em razão da apressada interpretação do que dispõe seu art. 1º, parágrafo único, talvez devido à falta de estudo comparativo ou mesmo de interesse pelos instrumentos de direito internacional, há quem acredite se tratar de normativa que concretiza em todos os termos a convenção, por ter supostamente o mesmo sentido que ela, o que, como se verá, é extremamente equivocado.

Essa questão atinente à correlação entre a lei e o tratado com importância constitucional, assim como a trajetória do direito da pessoa com deficiência nos últimos anos dentro do panorama brasileiro, até culminar no EPD e a análise mais aprofundada de determinadas inovações por ela trazidas, serão melhor abordados nas subseções deste capítulo.

2.1 CONTEXTO DA CRIAÇÃO DO EPD E RESGATE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Para compreender as razões para as mudanças implementadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, é necessário voltar ao momento de abertura política dos anos 80, que foi a “fase heroica” do movimento das pessoas com deficiência, de acordo com Maior (2017, p. 31), quando as associações e instituições, que até então eram predominantemente apenas voltadas ao atendimento de pessoas com deficiência, passaram a ser realmente formadas e construídas

5 Hoje, completados 15 anos da existência da EC 45/2004, além da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com

Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o único instrumento de direito internacional com o status de Emenda Constitucional conferido pelo § 3º do art. 5º da CRFB é o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, que curiosamente versa também sobre pessoas com deficiência (informação disponível em:

http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/internacional/tratados-equivalentes-a-emendas-constitucionais-1. Acesso em: 8 nov. 2019). Disso se pode deduzir a tamanha importância da matéria para a sociedade mundial, e sobretudo a brasileira, que atingiu o quórum qualificado de votação para a ratificação apenas de instrumentos globais de direitos humanos relacionados à pessoa com deficiência.

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diretamente por pessoas desse grupo, as quais começaram finalmente a assumir o papel de protagonistas de suas próprias vidas.

Essa década foi marcada por conquistas como a atuação no processo constituinte, por meio da Comissão de Ordem Social, criada para ouvir a população na elaboração da Constituição Federal de 1988 – apesar de não ter exigido intérpretes para viabilizar a participação efetiva dos surdos (PONTES, 2017, p. 25) –, oportunidade na qual não se permitiu a imposição de cidadania separada para pessoas com deficiência, sendo os seus direitos inseridos no bojo dos diversos capítulos da CRFB.

Além disso, Izabel Maior (2017, p. 32) também expõe que em 1986 foi fundada a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), incumbida de executar a Política Nacional para Integração do grupo, que em 2009 deu lugar à Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, inserida na estrutura do Ministério dos Direitos Humanos até hoje, substituindo a nomenclatura ultrapassada “portadora de” pelo “com” adotado pelo comando da já internalizada com patamar constitucional Convenção de Nova York.

Ao apagar das luzes dos anos 80, veio a Lei 7.853/1989, a primeira lei federal que disciplina sobre as pessoas com deficiência de forma mais abrangente, incluindo o seu apoio, integração social, tutela jurisdicional de seus interesses coletivos e difusos, as atribuições da Corde, entre outros pontos relevantes (MAIOR, 2017, p. 33). Na década seguinte, vieram novas leis esparsas que abarcaram os vieses do acesso ao mercado de trabalho, do atendimento nos diversos tipos de serviços de assistência social e do direito à educação especial, e em 1999 surgiu o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade).

Adentrando o novo milênio, avanços importantes vieram com a maior atenção à deficiência física dada pelas Leis de acessibilidade, de nº 10.048 e 10.098 no ano 2000, com o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como idioma oficial do Brasil pela Lei 10.436/02, e com a tutela das pessoas com deficiência visual na Lei 11.126/05. Já a correlação da deficiência com incapacidade e institutos como a interdição ou curatela foram tutelados durante muito tempo pelo Código Civil (CC), inicialmente pelo de 1916 e posteriormente pelo de 2002.

Nessa perspectiva, cumpre observar que os direitos das pessoas com deficiência eram previstos de forma predominantemente dispersa na legislação pátria, pois a lei que contemplava a categoria mais holisticamente era ainda muito incipiente, tanto é que o tema foi disciplinado por múltiplas leis específicas para os respectivos tipos de limitação funcional e por trechos

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esparsos de normativas genéricas que não as têm como foco, sendo diversas as definições do que seria deficiência, apesar de todas adotarem critérios médicos para tanto.

Com isso em mente, iniciou-se a discussão sobre a elaboração de um Estatuto da Pessoa com Deficiência, cuja primeira proposição se deu com o Projeto de Lei 3.638/2000, do então deputado federal Paulo Paim (PT/RS), reapresentado em 2003 no Senado Federal. Contudo, como já mencionado, o compromisso do Brasil de dar apoio à convenção internacional que vinha sendo construída levou à suspensão do debate no parlamento, que foi retomado após o processo de ratificação do tratado, em 2008 (LOPES, 2016, p. 39-41).

Entre os dias 12 e 15 de maio de 2006, no ano em que a CDPD seria pactuada e enquanto a elaboração do EPD ainda estava paralisada, o Conade promoveu a I Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, com o tema “Acessibilidade: você também tem compromisso”, que oportunizou um amplo debate sobre a inclusão ativa das pessoas com deficiência no processo de desenvolvimento do país e a avaliação das políticas públicas para tanto, conforme os Anais do encontro (2006, p. 17).

Desde então, foram realizadas ao todo quatro conferências nacionais, responsáveis por aprofundar e difundir a discussão da matéria, tendo a última delas ocorrido de 24 a 27 de abril de 2016, com o tema “Os Desafios na Implementação da Política da Pessoa com Deficiência: a Transversalidade como Radicalidade dos Direitos Humanos”, conforme informação que se retira do site da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosas e Pessoas com Deficiência (AMPID, 2016).

Com a intensificação dos debates acerca da problemática e a ratificação da CDPD com equivalência a EC, tendo em vista que solucionava a questão de não haver a reunião dos direitos gerais da pessoa com deficiência em um único instrumento, havia controvérsia sobre se ainda era necessária a edição de uma lei ordinária para tanto. Contudo, segundo Lopes (2016, p. 41), a corrente que defendia a existência do EPD venceu com base no consenso de que novos temas trazidos pela convenção, como a capacidade legal, o sistema de interdição e o conceito de pessoa com deficiência, precisavam ser regulamentados.

Aqui, convém introduzir criticamente mais um ponto que teve considerável peso na decisão sobre a edição da lei de inclusão: considerando o usual desprestígio do direito internacional pelos operadores jurídicos nacionais, mesmo tendo um tratado internacional que versa sobre a matéria alcançado o mais alto nível na hierarquia das normas no Brasil, a probabilidade do cumprimento dos preceitos nele estabelecidos se torna muito superior pelo advento de uma lei ordinária, de status inferior, que os repita e regulamente, ou pretenda regulamentar, conforme se aprofundará no tópico 2.3.

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Fato é que foram envidados esforços para adequar o texto do projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional às disposições da Convenção, estabelecendo modificações no direito nacional na intenção de cumprir com os objetivos da normativa internacional e com status constitucional, e, sem ainda entrar no mérito de se o objetivo foi atingido, após quase dez anos de debate no parlamento, foi enfim publicado o EPD, que entrou em vigor seis meses depois, em 6 de janeiro de 2016.

2.2 CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA E BUSCA DA AUTONOMIA

Para consolidar os avanços conquistados pelo movimento político das pessoas com deficiência no Brasil e enfatizar temas que o tratado de direitos humanos da ONU levantou como importantes vetores, o EPD veio com a proposta de dar uma maior autonomia ao grupo, objetivando que a plena inclusão fosse buscada através do seu empoderamento, deixando de lado a antiga proteção de tais pessoas como vulneráveis, para reconhecê-las como capacitadas para gerir suas vidas, assim como os demais.

Flávio Tartuce (2017, p. 71) ensina que essa inovação representou uma verdadeira revolução na teoria das incapacidades e se deu pela superação da anteriormente adotada dignidade-vulnerabilidade, que defendia que a dignidade das pessoas com deficiência seria resguardada através da sua proteção como vulneráveis, concepção que teria sido substituída pela dignidade-liberdade, em atendimento ao propósito da Convenção de Nova York, definido no seu artigo 1:

O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

O primeiro parágrafo do dispositivo acima reproduz a ideia de que cada pessoa com deficiência tem o direito de exercer plena e igualitariamente todos os direitos e liberdades fundamentais, devendo os Estados-partes do tratado atuarem no sentido de compatibilizar a viabilidade desse exercício com a existência de suas limitações pessoais. Pela mais ampla consecução da dignidade da pessoa humana, que é fundamento da república desde 1988, passa-se a compreender a deficiência como atributo inerente à personalidade do indivíduo, semelhantemente ao gênero e cor da pele, e, assim como tais, exige respeito, no lugar das

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antigas discriminação e invisibilidade naturalizadas, ou do tratamento no sentido de suprir essa diferença pela via médica como algo de que se precise esconder ou sentir vergonha.

Isso, conforme já suscitado, fez parte da mudança no conceito de deficiência, antes pautado no modelo biomédico, que busca reabilitar a pessoa “anormal” a fim de que ela se adeque à sociedade, e agora baseado no modelo social de direitos humanos, cujo afã é redirecionar o problema para a necessidade de reabilitação da sociedade, no intuito de eliminar os muros, entraves e discriminações da exclusão comunitária, conforme bem analisa o professor Nelson Rosenvald (2015).

É nesse sentido que a própria convenção estabelece no segundo parágrafo do artigo 1 acima transcrito uma nova concepção de pessoa com deficiência, exigindo dois requisitos para caracterizá-la: a existência de limitação física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo e a interação com barreiras – as quais, previstas de forma genérica, podem advir da relação com o ambiente onde está inserida, mas também das atitudes sociais excludentes, consoante a alínea “e” do preâmbulo da CDPD6 – que, somadas, obstaculizam a sua participação plena na sociedade com as mesmas condições que os demais. Isso significa que, se é possível eliminar as referidas barreiras, viabilizando a integração igualitária no meio onde o indivíduo vive, ele não será considerado com deficiência.

Assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência vem para reforçar a necessidade de busca pela autonomia e independência desse segmento, como se pode perceber pela análise da menção a esses termos em diversos dos seus dispositivos7. O diploma normativo ordinário segue a linha social da conceituação de deficiência, repetindo, ipsis litteris, o segundo parágrafo do artigo 1 da CDPD em seu art. 2º, substituindo apenas o plural “pessoas com deficiência” pelo singular “pessoa com deficiência” e “diversas barreiras” por “uma ou mais barreiras”.

Nesse ponto, Nelson Rosenvald (2015), já no mês seguinte à publicação da lei de inclusão, verificou que “a deficiência como gênero engloba todas as pessoas que possuam uma menos valia na capacidade física, psíquica ou sensorial - independente de sua gradação -, sendo

6 e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre

pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas

7 O termo “autonomia” está presente por nove vezes no texto da lei, e pode-se encontrar “independência” e suas

variáveis em cinco oportunidades, em artigos que tratam de acessibilidade (art. 3º, I e art. 53, caput), tecnologia assistiva (art. 3º, III e art. 74, caput), moradia para vida independente (art. 3º, XI e art. 31, caput e § 1º), processo de habilitação e reabilitação (art. 14, parágrafo único), direito à saúde (art. 18, § 2º), direito à educação (art. 28, III e XII) e direito à assistência social (art. 39, caput).

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bastante uma especial dificuldade8 para satisfazer as necessidades normais”, afirmando ainda que a normativa nacional segue o sentido personalista do tratado de direitos humanos.

Essas modificações trazidas pelo Estatuto, entre inúmeras outras como a consolidação da possibilidade de autocuratela, da curatela compartilhada, cujo estudo não é objeto de enfoque pertinente a este trabalho, representaram uma evolução extremamente importante para o direito das pessoas com deficiência no Brasil, há muito esperadas. Contudo, toda inovação repentina merece um olhar mais crítico, na busca de aparar as arestas e corrigir os eventuais erros que possam ter sido cometidos na ânsia pelo progresso consubstanciado no disciplinamento das garantias de um grupo tão desprezado e negligenciado ao longo da história. E com esse pensamento, parte-se para o subcapítulo seguinte.

2.3 (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ESTATUTO: COMPATIBILIDADE COM A CONVENÇÃO DE NOVA YORK

Assim como Rosenvald, outros doutrinadores do direito civil e juristas interessados na matéria sustentam que o EPD caminha na mesma toada da Convenção de Nova York, e alguns deles acreditam, inclusive, que a normativa ordinária veio para concretizar o que preceitua o tratado9, que, repita-se, tem caráter constitucional, por força do art. 5º, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Antes de mais nada, é preciso salientar que determinados dispositivos do EPD não precisavam sequer existir, em razão de terem exatamente o mesmo texto de outros da CDPD. Ora, se existe uma norma com a mais alta hierarquia do direito nacional disciplinando certa matéria, não há motivo para que a lei ordinária – de nível inferior – que a regulamenta repita a mesma norma em seu corpo. Contudo, muitas pessoas ainda resistem a reconhecer a importância do direito internacional público e sua aplicação na órbita interna, mesmo tendo o Brasil assinado, ratificado e internalizado o tratado pelo quórum que lhe confere status constitucional.

É fundamental, desse modo, fazer uma digressão para demonstrar a reivindicação dos internacionalistas pela credibilidade que o direito internacional sempre deveria ter tido. Dentro

8 Afere-se que essa “especial dificuldade” deve resultar das barreiras de interação com o ambiente que circunda a

pessoa e dos obstáculos excludentes e discriminatórios impostos pela sociedade, que impedem ou atrapalham o exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais, tendo em vista o viés social do conceito de

deficiência.

9 A título de exemplo, Vinicius Hsu Cleto (2016), Luiz Alberto David Araujo e Waldir Macieira da Costa Filho

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desse grupo de juristas, pode-se dizer que tomaram relevo quatro correntes quanto ao lugar que os tratados de direitos humanos ocupam no ordenamento brasileiro: a hierarquia supraconstitucional de tais tratados, a hierarquia constitucional, a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal e a paridade hierárquica com lei federal (PIOVESAN, 2008).

Por muitos anos, imperou na jurisprudência nacional o entendimento de que todos os tratados internacionais, inclusive os de direitos humanos, tinham status de lei ordinária federal. Mesmo após o advento da Constituição Cidadã, no julgamento do HC 72.131-RJ (22/11/1995), o Supremo Tribunal Federal (STF) continuou compreendendo que, apesar do que dispõe o art. 5º, § 2º da CRFB10, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, popularmente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, deveria ter mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas, o que foi muito criticado por renomados internacionalistas, como Flávia Piovesan (2008).

Ela, Valério de Oliveira Mazzuoli e Antônio Augusto Cançado Trindade, que integrou a Corte Interamericana de Direitos Humanos entre 1995 e 2006 e é juiz da Corte Internacional de Justiça11 desde 200912, são alguns dos que, com base no referido § 2º do art. 5º da Constituição, encabeçam a corrente defensora do caráter materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada prevista no § 3º13 que foi incluído no art. 5º pela Emenda Constitucional 45/04, conforme Mazzuoli (2009).

Contudo, no meio termo entre essas duas teses, ganhou força a da hierarquia supralegal dos instrumentos globais de direitos humanos, que foi consagrada pelo STF em novo julgamento quanto à possibilidade de prisão civil do depositário infiel, prevista no art. 5º, LXVII, CRFB, mas vedada pelo artigo 7.7 do Pacto de San José, como bem explana Maués (2013). Foi na análise do RE nº 466.343 (03/12/2008) que unanimemente foi reconhecida posição privilegiada às normas internacionais de proteção aos direitos humanos, prevalecendo, por cinco votos, o nível supralegal dos referidos tratados não aprovados pelo quórum do § 3º, contra quatro no sentido de que eles deveriam compor o “bloco de constitucionalidade”, independentemente do rito formal pelo qual tenham sido internalizados (MAZZUOLI, 2009).

10 § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

11 O principal órgão judiciário das Nações Unidas, conforme dispõe o artigo 92 da Carta da ONU.

12 Disponível em:

http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/17817-reeleicao-do-professor-antonio-augusto-cancado-trindade-a-corte-internacional-de-justica. Acesso em: 8 nov. 2019.

13 § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

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Desse modo, firmou-se que os tratados internacionais de direitos humanos terão caráter constitucional apenas quando forem aprovados em cada casa do CN, em dois turnos, pela maioria de 3/5 introduzida na CRFB pela EC 45/04, caso contrário, terão status supralegal, situados entre a Constituição e as leis ordinárias. Essa tese predomina até a atualidade na jurisprudência do STF, e apesar de ter representado grande avanço na valorização do direito internacional público, ainda é passível de muitas críticas dos internacionalistas defensores do caráter materialmente constitucional de todos os instrumentos globais atinentes aos direitos humanos.

Contudo, o que não é fruto de controvérsia alguma na doutrina nem na jurisprudência é que as convenções de direitos humanos que forem aprovadas pelo rito do art. 5º, § 3º, da CRFB/1988 serão, indiscutivelmente, equivalentes a emendas constitucionais, dada a clareza do dispositivo constitucional. Nessa toada, pode-se dizer que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo foram as primeiras normativas internacionais a serem consagradas constitucionais, pela aprovação no Congresso em conformidade com as regras do referido dispositivo, como já exposto.

Exaltando a alta hierarquia da normativa, afirmam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017a, p. 910-911):

Incorporada ao direito brasileiro com a estatura equivalente às Emendas Cons- titucionais (por conta da norma de expansão de direitos humanos, ínsita no §3º do art. 5º do Texto Magno), naturalmente, a Convenção de Nova Iorque se sobrepôs à normatividade infraconstitucional. Por conseguinte, cabia, realmente, aos poderes constituídos conceber medidas legislativas e administrativas necessárias à implementação dos direitos nela reconhecidos, o que implica, por extensão, na adoção de medidas que modifiquem ou revoguem leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituem discriminação contra pessoas com deficiência, capazes ou incapazes. Essa consequência já se impunha.

Ocorre que, entre a indubitável atribuição de status constitucional à CDPD em 2008 e a aprovação do Estatuto da Pessoa com Deficiência em 2015, por sete anos em que o assunto já era disciplinado em norma da mais alta hierarquia nacional e internacional, pouco se falou acerca da convenção, ganhando destaque o tema apenas quando uma lei ordinária federal veio para repetir algumas e regulamentar outras (nem sempre da forma mais adequada) disposições que deveriam ser cumpridas de imediato desde que passaram a gerar efeitos equiparados a uma emenda constitucional.

Nesse sentido, levando-se em conta a hierarquia entre as duas normativas, a única conclusão possível é que o EPD não tem o condão de “concretizar” os direitos da pessoa com deficiência dispostos na CDPD, pois as normas constitucionais do tratado de direitos humanos já estão concretizadas com o maior peso possível dentro da hierarquia do ordenamento pátrio

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desde 2008, quando ele foi incorporado pelo rito do art. 5º, § 3º, CRFB, ou pelo menos desde 2009, quando seu processo de internalização foi encerrado pelo Decreto Presidencial 6.949/09. Essas errôneas percepções advêm da interpretação equivocada do parágrafo único do art. 1º do EPD, segundo o qual “Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional [...]”, atrelada ao fato de que os juristas brasileiros conferem muito mais crédito a leis nacionais, mesmo infraconstitucionais, do que a tratados internacionais com força constitucional, de modo que presumem que a lei tem como base a convenção pelo simples fato de ela dizer isso, não chegando sequer a conferir a compatibilidade entre as normas.

A correta leitura do dispositivo em comento, tendo em mente todo o já exposto, resulta na compreensão de que a função do EPD se restringe a regulamentar o tratado, no que ele não for específico e no sentido que ele se propõe a seguir, como ocorreria no caso da regulamentação de qualquer norma da Constituição. Desse modo, cabe avaliar alguns pontos que foram objeto de ambos, verificando se o EPD vem cumprindo o seu papel, e consequentemente, se está em conformidade com os dispositivos de caráter constitucional.

Apesar de muito importante, a constitucionalidade da lei em comento só foi objeto de debate dentro do STF no que tange às suas normas que obrigam as escolas privadas a promoverem a inserção de pessoas com deficiência no ensino regular e prover as medidas de adaptação necessárias sem que o ônus financeiro seja repassado às mensalidades, anuidades e matrículas, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357, que foi julgada improcedente no dia 09 de junho de 201614, com apenas um voto contrário15.

Vale dizer que, nos seus demais ângulos, o Estatuto da Pessoa com Deficiência só teve sua constitucionalidade questionada em sede de controle difuso, incidental, sem maiores repercussões, o que demonstra que sequer foi posta em dúvida pela maior parte dos juristas brasileiros. Aqui, propõe-se enfrentar algumas dessas questões, iniciando pela análise comparativa mais superficial entre alguns elementos dos dois diplomas normativos.

O primeiro ponto que aqui se põe em perspectiva é a aparente tentativa de reprodução do segundo parágrafo do artigo 23 da CDPD no art. 6º, VI do EPD. A referida norma ordinária

14 Informação disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318570.

Acesso em: 7 nov. 2019.

15 Interessante observar que no teor de todos os votos só é possível encontrar o respaldo na Convenção de Nova

York para a avaliação da constitucionalidade dos dispositivos no voto do relator, tendo a sua compatibilidade com a Constituição sido analisada pelos demais ministros estritamente com base no que dispõe a Carta de 1988, de modo que excluíram completamente do bloco de constitucionalidade uma normativa que, além de ter status de emenda constitucional, trata especificamente da matéria sobre pessoas com deficiência e inclusive foi fonte de inspiração para o EPD.

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disciplina que a pessoa com deficiência tem plena capacidade civil, inclusive para “exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”, como se, independentemente do grau de deficiência que a pessoa tenha, ela pudesse ser curadora ou tutora de outrem.

A situação se mostra ainda mais grava quando se vislumbra a possibilidade dada por este inciso de que alguém já em situação de curatela possa exercer o papel de curador de outra pessoa com deficiência, ao estatuir que a capacidade para exercer o direito à curatela é plena, sem fazer qualquer restrição à pessoa que já está sob curatela. Ora, é minimamente questionável que quem já é considerado incapaz, mesmo relativamente a certos atos (já que, no atual sistema, a incapacidade absoluta cessou de existir), e por isso sujeito à curatela, possa ser curador de outro indivíduo, de modo a ser responsável por gerir seus bens e negócios, quando nem os próprios tem condições de administrar.

O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 – que, anote-se, veio posteriormente à atribuição de status constitucional ao tratado internacional – se preocupou com a referida situação, disciplinando-a de forma diversa, conforme ensina Flávio Tartuce (2017, p. 937):

Eventualmente, havendo, ao tempo da interdição, pessoa incapaz sob a guarda e a responsabilidade do interdito, o juiz atribuirá a curatela a quem melhor puder atender aos interesses do interdito e do incapaz, ao mesmo tempo (art. 755, § 2.o, do CPC/2015). Na verdade, essa regra já era retirada, pelo menos parcialmente, do art. 1.778 do CC/2002, segundo o qual a autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens dos filhos do curatelado, observados os casos de emancipação.

O dispositivo foi repetido e ampliado pelo Novo CPC, consoante o seu art. 757, que não constava na lei processual anterior, in verbis: “A autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz”. Constata-se, dessa forma, uma unicidade da curatela nessas situações e como premissa geral, assim como ocorre com a tutela, por dicção do art. 1.733 do Código Civil. De qualquer modo, nota-se pelos comandos transcritos que essa regra pode ser quebrada para atender aos interesses do incapaz. (grifos acrescidos).

De qualquer forma, como foi decisão do legislador, ainda que provavelmente tivesse pouca aplicação na prática, a norma do EPD deveria prevalecer, desde que fosse a que melhor cumprisse com as disposições constitucionais. Desse modo, cumpre examinar necessariamente o parágrafo 2 do artigo 23 da Convenção de Nova York, cuja primeira parte estabelece a responsabilidade dos Estados-partes de assegurar “os direitos e responsabilidades das pessoas com deficiência, relativos à guarda, custódia, curatela e adoção de crianças ou instituições semelhantes, caso esses conceitos constem na legislação nacional”.

Apesar de mencionar o termo “curatela” na versão traduzida para o português e internalizada pelo Decreto Presidencial 6.949/09, o texto original do parágrafo em comento se

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refere aos direitos e responsabilidades das pessoas com deficiência relacionados à “guardianship, wardship, trusteeship, adoption of children or similar institutions” (UN, 2006, p. 16), que são todos termos remetentes à guarda ou custódia de crianças. Note-se que o dispositivo internacional pretendeu resguardar a oportunidade de os indivíduos com deficiência exercerem a função de cuidado com seus filhos ou crianças que eventualmente viessem a estar sob sua proteção, e não a de serem curadores de outros adultos com limitações funcionais.

Para comprovar essa ideia, vem o resto do teor do dispositivo de status constitucional: “Em todos os casos, prevalecerá o superior interesse da criança. Os Estados Partes prestarão a devida assistência às pessoas com deficiência para que essas pessoas possam exercer suas responsabilidades na criação dos filhos”. Essa segunda parte do parágrafo ilustra que o seu objetivo é tratar do poder familiar, tutela, guarda ou afins exercidos pela pessoa com deficiência em relação a crianças, filhos de tais indivíduos, e não efetivamente da curatela, que, no dizer de Farias e Rosenvald (2017a, p. 911), destina-se a maiores de 18 (dezoito) anos sem a plena capacidade.

Tendo em vista o exposto, e sabendo que, além da semelhança entre as normas, o artigo 23, parágrafo 2 da CDPD é o único que faz menção ao termo “curatela”, pode-se dizer que o art. 6º, VI do EPD pretendeu reproduzi-lo, mas não o fez da forma adequada. Assim, demonstra-se como o Estatuto pode dar conotação completamente diversa ao regulamentar um dispositivo de caráter constitucional, o que valida a importância do trabalho de contrastar os diplomas e identificar os pontos a serem otimizados tanto para a proteção da pessoa com deficiência quanto para o adequado cumprimento da ordem constitucional brasileira.

Os aspectos já expostos e muitos outros do direito da pessoa com deficiência pátrio que foram modificados pelo Estatuto foram severos, mas dois deles tiveram maior destaque na percepção da comunidade jurídica, sendo vistos em parte como representativos de progresso para o grupo devido à evidenciação da sua autonomia, e em parte como motivo de preocupação pelo menor protecionismo que passou a ser direcionado a ele.

Esses dois elementos mais polêmicos implicam diretamente um no outro, e se tratam da modificação da teoria das incapacidades e do novo modelo de curatela. Eles foram pensados, também, a partir da interpretação de partes da Convenção de Nova York, entre eles os artigos 3, 12 e 26, que serão abordados ao longo do presente trabalho, na análise sobre se tais mudanças promovidas pelo EPD foram acertadas ou equivocadas para o melhor regramento do direito das pessoas com deficiência no Direito pátrio.

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2.4 MUDANÇAS NA TEORIA DAS INCAPACIDADES E NA ANTIGA INTERDIÇÃO

Antes do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, como já mencionado, os diversos aspectos do direito da pessoa com deficiência eram tutelados por diferentes leis, de modo que era no Código Civil brasileiro que se encontrava o disciplinamento dos tipos de incapacidade relacionados à deficiência e suas possíveis consequências jurídicas, que eram limitadas à curatela, até então denominada interdição.

Inicialmente, é válido rememorar em apertada síntese o conceito de capacidade civil. No dizer de Carlos Roberto Gonçalves (2015, p. 95-96), capacidade é a medida da personalidade, dividindo-se em capacidade de direito, de gozo ou de aquisição de direitos, e capacidade de fato, também denominada de exercício ou de ação. A primeira é reconhecida a todo ser humano, sem qualquer distinção – e por isso, para Farias e Rosenvald (2017a), chega a se confundir com a própria noção de personalidade, significando a possibilidade de ser sujeito de direitos –, enquanto a segunda se trata da aptidão para exercer, por si só, os atos da vida civil, e não é atributo de qualquer pessoa.

Sendo assim, apesar de qualquer pessoa ter a condição de adquirir direitos, nem todas ostentam a de exercê-los pessoal e diretamente. Por estar presente sempre que há personalidade, a capacidade de direito não pode sofrer gradações, ao contrário da de fato, que é a que condicionará a teoria das incapacidades, com as hipóteses e consequências de plena capacidade, incapacidade relativa e incapacidade absoluta.

O absolutamente incapaz é totalmente privado de exercer sozinho os seus direitos, só valendo o ato que lhe disser respeito se praticado pelo seu representante legal, e na ausência de representação, mesmo com a manifestação de vontade do titular do direito, o ato praticado será nulo, por força do art. 166, I, CC/02 (GONÇALVES, 2015, p. 111). De modo diverso, ao relativamente incapaz é permitido praticar atos da vida civil, desde que acompanhado da assistência da pessoa responsável, com algumas exceções16, sob pena de anulabilidade do negócio, como preceitua o art. 171, I, CC/02 (GONÇALVES, 2015, p. 120).

Com efeito, os casos de cada tipo de falta de capacidade são disciplinados pelo Código Civil de 2002, mais precisamente, em seus artigos 3º e 4º, cuja redação anterior ao EPD cabe transcrever:

16 A doutrina de Carlos Roberto Gonçalves (2015, p. 120-121) faz o adendo de que “Certos atos, porém, [o

relativamente incapaz] pode praticar sem a assistência de seu representante legal, como ser testemunha (art. 228, I), aceitar mandato (art. 666), fazer testamento (art. 1.860, parágrafo único), exercer empregos públicos para os quais não for exigida a maioridade (art. 5º, parágrafo único, III), casar (art. 1.517), ser eleitor, celebrar contrato de trabalho etc.”.

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Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial. Vale dizer que o CC/02 já representou avanço na tratativa dos componentes do rol de incapazes, em relação ao diploma civil de 1916. Este previa como absolutamente incapazes: os menores de dezesseis anos, que foram mantidos em 2002; os loucos de todos os gêneros, que, por sua vez, receberam nova roupagem no inciso II do art. 3º, sendo a expressão forte e vexatória “loucos” trocada pelos que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o discernimento preciso, de modo a conferir a tais pessoas olhar mais humanizado; os surdos-mudos, que não pudessem exprimir sua vontade, tendo o CC/02 suprimido “surdos-mudos” para passar a englobar qualquer pessoa que não possa exprimir vontade; e os ausentes, que deixaram de ser hipótese de qualquer falta de capacidade.

Já os relativamente incapazes previstos no CC/1916 eram resumidos aos maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos, os pródigos e os silvícolas17. Na reforma do código no começo do novo milênio, reduziu-se a menoridade de vinte e um para dezoito anos, mantendo os menores de idade, mas maiores de dezesseis anos, no inciso I do art. 4º, assim como os pródigos no inciso IV do mesmo artigo, e acrescentando as duas hipóteses de incapacidade relativa referentes aos incisos II e III, como se vê dos artigos acima transcritos. Os indígenas passaram a ser objeto do parágrafo único do dispositivo, não sendo mais causa de incapacidade. Contudo, o regramento já sofreu modificação novamente em 2015, pelo art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que, sob o fundamento de implementar o que determina a Convenção de Nova York, revogou todos os incisos do art. 3º do Código Civil, mantendo apenas os menores de dezesseis anos como absolutamente incapazes, e deslocando a hipótese de impossibilidade de exprimir a vontade por causa transitória ou permanente, que antes era de incapacidade total, para o art. 4º, III, passando a ser relativa.

E por fim, consistindo na mudança mais significativa nesse sentir, o EPD expurgou de ambos os róis de incapazes aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuírem

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discernimento, ou o tiverem reduzido, para a prática de atos da vida civil, bem como os excepcionais do antigo art. 4º, III, CC/02. Dessa forma, a redação dos referidos artigos atualmente é a seguinte:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

I - (Revogado); II - (Revogado); III - (Revogado).

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

IV - os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.

Fazendo um link com o subcapítulo anterior, essa mudança tomou claramente por base alguns dispositivos da CDPD, de caráter constitucional, sobremaneira o artigo 12, parágrafo 2, que trata do reconhecimento igual perante a lei, e estabelece a obrigação dos Estados-partes de reconhecer que “as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”.

Esse trecho da convenção, aliado aos princípios gerais do respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e independência (artigo 3, “a”, CDPD), da não-discriminação (artigo 3, “b”, CDPD) e do respeito pela diferença e pela aceitação dessas pessoas como parte da diversidade humana (artigo 3, “d”, CDPD), provavelmente foi o que deu a equivocada noção ao legislador brasileiro de que nenhum maior de dezesseis anos, tenha ele deficiência ou não, poderia ser considerado incapaz. O Comentário Geral nº 1 ao artigo 12 da convenção, elaborado pelo Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas na sessão realizada entre 31 de março e 11 de abril de 201418, faz a diferenciação entre capacidade jurídica ou legal – que é mais ampla que a capacidade civil em geral do direito brasileiro, conforme Paulo Lôbo (2015) – e capacidade mental.

Esclarece que a primeira se trata da aptidão de deter direitos e deveres (legal standing) e também de exercê-los (legal agency), constituindo chave para ter acesso à participação significativa na sociedade. Já a segunda diz respeito às habilidades de tomada de decisão, que variam de pessoa para pessoa, dependendo de múltiplos fatores, e o comitê explana que os

18 Disponível em:

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aparentes ou reais déficits afetos a essa capacidade mental não podem ser usados como justificativa para negar a capacidade jurídica a tais pessoas (UN, 2014, p. 3).

Isso quer dizer que a deficiência não pode ser a única causa da limitação da capacidade legal, de modo que a pessoa não deve ser vista como incapaz pelo simples fato de ter uma deficiência. Pelo contrário, deve-se partir do pressuposto de que ela tem plena capacidade legal, assim como as demais pessoas, devendo ser reconhecida como pessoa e como sujeito de direitos fundamentais perante a lei, pelo comando do artigo 12, parágrafo 2 da CDPD.

Ocorre que, com o intuito de proporcionar essa igualdade perante a lei, o Estatuto da Pessoa com Deficiência optou por retirar não só o termo “pessoas com deficiência” do rol de incapazes absolutos e relativos, como também qualquer hipótese em que a pessoa não tenha o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil, além de manter como única causa de incapacidade absoluta o critério etário de ser menor de 16 anos.

Entende-se que essa alteração seguiu ao pé da letra a linha do Comentário Geral nº 1 do Comitê da ONU (UN, 2014, p. 2), quando menciona que, conforme o artigo 12 do tratado com status constitucional, a pessoa com deficiência tem total capacidade jurídica e que o direito à igualdade perante a lei implica que essa capacidade é atributo universal a todas as pessoas, em virtude de sua humanidade. Porém, é preciso fazer uma leitura da convenção como um todo, considerando a parte em que, ao tratar da relação do dispositivo comentado com o artigo 5 da mesma CDPD, relativo à igualdade, o referido órgão esclarece:

the right to equal recognition before the law and freedom from discrimination requires that when the State denies legal capacity, it must be on the same basis for all persons. Denial of legal capacity must not be based on a personal trait such as gender, race, or disability, or have the purpose or effect of treating the person differently.19

(tradução livre e grifos acrescidos) (UN, 2014, p. 8).

Com isso, vê-se que o real objetivo da convenção quanto à teoria das incapacidades é que ela se paute em critérios globais, válidos para qualquer pessoa, condenando aqueles discriminatórios, como os que têm como causa direta a deficiência – a exemplo do art. 5º, II, do antigo CC/1916, que taxava os “loucos de todos os gêneros” como incapazes –, da mesma forma como é inconcebível que tomem como base o gênero, a opção sexual, a raça, a condição social ou financeira, e afins. Isso é uma decorrência da compreensão atual da deficiência como atributo da personalidade inerente à individualidade de cada pessoa.

19 O direito à igualdade de reconhecimento perante a lei e a libertação de discriminação exige que, quando o

Estado nega capacidade jurídica, deve basear-se no mesmo fundamento para todas as pessoas. A negação da capacidade legal não deve se basear em características pessoais, como sexo, raça ou deficiência, nem ter o propósito ou efeito de tratar a pessoa de maneira diferente. (tradução livre)

Referências

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