• Nenhum resultado encontrado

Contraposição entre a capacidade para exercer direitos sexuais e a persistência do crime

4. UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RESTRIÇÃO DA INCAPACIDADE RELATIVA E

4.2 CONSEQUÊNCIAS DA NOVA CURATELA PARA AS PESSOAS COM GRAU DE

4.2.3 Contraposição entre a capacidade para exercer direitos sexuais e a persistência do crime

O art. 85, § 1º do EPD impede ainda a intervenção do curador em assuntos relacionados à sexualidade do curatelado. Entende-se que essa vedação decorre da compreensão de que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, de acordo com o art. 6º, II, III e IV, da mesma lei, para exercer seus direitos sexuais, reprodutivos, de decidir sobre o número de filhos, de ter acesso a informações adequadas sobre planejamento familiar e de conservar sua fertilidade.

Constata-se que todos os incisos desse último dispositivo tratam de direitos assegurados à pessoa com deficiência pelo tratado com força constitucional, porém, neste, não há disposição taxativa no sentido de que a função do curador não possa abranger tais âmbitos, como faz o art. 85, § 1º da normativa pátria. Dessa maneira, não se deve interpretar o art. 6º do EPD no sentido de que toda pessoa com deficiência é capaz para os atos nele discriminados, mas sim no de que ninguém poderá ter sua capacidade limitada em razão do simples fato de ter uma deficiência.

Ocorre que, diante da mudança dos arts. 3º e 4º do CC/02 pelo EPD, os indivíduos com deficiência somente vão ter sua capacidade tida como reduzida nos casos em que não tiverem condição alguma de manifestar sua vontade, que aqui não é enxergada como aquela

Pessoa com Deficiência de primordial proteção do deficiente, diante da sua vulnerabilidade. Sentença mantida. Recurso não provido.

(TJSP; Apelação Cível 4007229-76.2013.8.26.0554; Relator (a): J.B. Paula Lima; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo André - 4ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 25/09/2018; Data de Registro: 25/09/2018). (grifos acrescidos).

derivada do discernimento, conforme explicado no tópico 4.1, mas como qualquer expressão de comunicação que a pessoa consiga fazer. E ainda que o juiz repute a falta de discernimento como justificativa para a incapacidade (o que não é permitido pelo ordenamento atual, mas, como demonstrado no subcapítulo 3.3, ainda ocorre bastante), a curatela a ser aplicada não pode atingir a esfera sexual, dentre tantas outras constantes do art. 85, § 1º, EPD.

Isso acarreta a ideia de que, mesmo sendo considerada relativamente incapaz, a pessoa com deficiência será capaz para exercer direitos sexuais e reprodutivos, sem a interferência do curador, de modo diverso do que se extrai da interpretação do art. 6º, do EPD, feita sob a luz da Convenção de Nova York. Mais uma vez, vislumbra-se que, nesse ponto, o legislador pensou majoritariamente nas pessoas que, pelo novo conceito de deficiência, sequer podem ser consideradas com deficiência, em razão da inexistência de dificuldades ou barreiras por elas encontradas, ou naquelas com deficiência leve, que, tendo condições de se expressar de modo consciente, não se sujeitarão à curatela.

O legislador não levou em consideração que, para serem curateladas, as pessoas devem ter capacidade reduzida (consoante o art. 1.767, CC/02, cujos incisos são semelhantes aos da incapacidade relativa do art. 4º, do mesmo diploma normativo), o que, a depender das necessidades particulares, pode ensejar a proteção por parte do curador também para os atos sexuais, como meio mais adequado para prevenir os abusos combatidos pelo tratado internacional.

Partindo do pressuposto de que as pessoas com deficiência que não tiverem discernimento suficiente para a prática do ato sexual merecem proteção mais ampla que as demais, o art. 217-A, § 1º, do Código Penal (CP), prevê que elas serão consideradas vulneráveis para fins do crime de estupro. Interessante perceber que a figura penal segue a mesma linha do finado inciso II do art. 3º do CC/02, sendo válida a transcrição dos dispositivos para fins comparativos:

Art. 217-A, CP/1940: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (grifos acrescidos).

Art. 3º, CC/02: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: [...]

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

Note-se que, em ambos os casos, tanto a vulnerabilidade quanto a incapacidade são pautadas na enfermidade ou deficiência mental que acarrete a falta do discernimento necessário para a prática dos atos. Não pressupõem esse fato pela mera existência de deficiência, mas apenas quando ela leva a limitações que exigem uma maior proteção do Estado. Ocorre que o art. 217-A, § 1º, do CP/1940 permanece em pleno vigor, enquanto o art. 3º, II, do CC/02 foi revogado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

A vulnerabilidade no campo sexual foi conferida pelo diploma penal às pessoas menores de 14 anos, aos enfermos e deficientes mentais que não tiverem o necessário discernimento para a prática do ato e àqueles que, por qualquer causa não possam oferecer resistência ao ato, de modo que, independentemente de se falar em violência, grave ameaça ou suposto consentimento, a relação sexual mantida com tais vítimas é proibida por lei, pois presume-se justamente a sua falta de capacidade para compreender a relação sexual, sendo essa a linha do entendimento que prevalece tanto no Superior Tribunal de Justiça quanto no STF (NUCCI, 2016, p. 1.154-1.157).

O penalista Guilherme de Souza Nucci (2016, p. 1.162) faz a ressalva, entretanto, de que é preciso analisar o grau da deficiência e, consequentemente, da vulnerabilidade, para concluir se a pessoa efetivamente não tem o discernimento para a prática de atos sexuais. Afirma que não se pode esquecer que doentes mentais têm direito, quando possível, à vida sexual saudável, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, muitas vezes tendo capacidade para manter relacionamentos estáveis e satisfazer conscientemente seus desejos e necessidades. Com isso, entende-se esses casos como os que a pessoa com deficiência não deve ser considerada nem incapaz, nem vulnerável, não podendo ser vítima de estupro de vulnerável. Apesar de Nucci relacionar a vulnerabilidade com a suposição da falta de capacidade da pessoa para compreender a gravidade da relação sexual, para Farias e Rosenvald (2017b, p. 332-333), os institutos da vulnerabilidade e da incapacidade não se confundem, tratando a primeira do estado inerente de risco que enfraquece um dos lados da relação jurídica, desequilibrando-a, enquanto a segunda consiste na falta de perfeita compreensão para a prática de atos jurídicos, de modo que ambos estão em posição de desvantagem, reclamando diferentes tipos de proteção, mas ao vulnerável não seria obstada a prática direta de qualquer ato.

Em face disso, questiona-se: e se o motivo que justifica a vulnerabilidade decorrer justamente da falta de perfeita compreensão para a prática daquele ato específico? Não seria caso de vulnerabilidade e incapacidade, juntas? Apesar do que ensinam os últimos dois autores citados, a falta de discernimento que não leve à impossibilidade de manifestar vontade não é mais causa de redução da capacidade plena do indivíduo, de modo que, pelo atual sistema,

quem se enquadrar nessa situação é paradoxalmente capaz para todos os atos da vida civil e vulnerável para fins de abuso sexual.

E pior, mesmo quando é reconhecida a incapacidade relativa do indivíduo, a lei continua reputando-o capaz para a prática de atos sexuais. Como uma pessoa que é apta a praticar atos sexuais (como passou a ser toda pessoa que estiver sob curatela) pode ser, ao mesmo tempo, vítima de estupro de vulnerável, cuja essência é considerar a vítima incapaz de consentir e compreender a dimensão da relação sexual? Essa é mais uma forte incoerência lógica que o EPD trouxe ao ordenamento brasileiro, tendo em vista que poderia ter revogado, em parte ou no todo, o § 1º do art. 217-A, CP/1940, como fez com o inciso II do art. 3º, CC/02. Mas aqui não se defende que essa teria sido a medida mais acertada, pois, sendo entendido da forma como interpreta corretamente Nucci, o estupro de vulnerável das vítimas previstas no referido parágrafo é uma forma de garantia para a pessoa com deficiência mais grave, que chega a macular seu discernimento. Para solucionar a contradição normativa, o melhor seria retomar a previsão de incapacidade pautada na ausência de discernimento, como já defendido anteriormente, e retirar a vedação da atuação do curador no campo sexual da vida do curatelado, tendo em vista que o legislador não tem como saber se essa sempre será a medida mais adequada, deixando para o juiz a chance de aplicar, excepcionalmente, a curatela para esse fim, caso verifique que o caso concreto apresenta essa necessidade.

Para ilustrar um caso em que a proteção conferida pela existência do crime de estupro de vulnerável e a possibilidade de a curatela interferir no âmbito sexual são diferenciais positivos para a pessoa com deficiência, imagine-se a situação de uma mulher que, por sequela neurológica de um acidente, adquiriu deficiência mental, cognitiva e progressiva desde jovem. Essa deficiência se manifesta por meio do desvio de comportamento peculiar, especificamente no quesito sexual, motivado pela sua grande dificuldade de julgamento da realidade e do que seria social e moralmente aceitável.

A mulher já adulta, assim, reside em uma cidade pequena onde é de conhecimento geral que costuma tirar a roupa em lugares públicos e provocar sexualmente homens em bares locais. Sabendo da sua condição psíquica, com a consciência que ela não possui o discernimento necessário para compreender e realmente praticar um ato sexual, naturalmente, ninguém havia se relacionado no sentido sexual com ela, até que, após ter saído de casa numa noite em que teve um surto psicótico, voltou para casa na manhã seguinte, despida e desorientada. Depois de um tempo, descobre-se que ela está grávida, em decorrência de relações sexuais que teve naquela noite e, quando seu filho vem a nascer, ela fica completamente traumatizada, não querendo olhar ou tocar nele, permanecendo com esse trauma pelo resto da vida.

No caso explanado, há de se concordar que considerar que a mulher com deficiência mencionada foi vítima de estupro de vulnerável é a medida mais adequada para efetivamente ampará-la, tendo em vista que, se deixar de ser enquadrada como vulnerável, a consequência lógica é que só possa ter sofrido, nessa situação, o crime de estupro simples, que necessita da comprovação de que ela ofereceu resistência e/ou não consentiu à prática do ato sexual.

Acontece que, diante de sua inclinação a ter comportamento extremamente sexualizado, é de se prever que a produção de tais provas seria extremamente difícil, quando não impossível, não somente por ser incomum que essa vítima, que normalmente já tem uma falsa visão da realidade, lembre de todos os detalhes do que de fato aconteceu, como também por não ser improvável que ela tenha consentido com o ato sexual. Já o estupro de vulnerável exige como prova apenas a ocorrência do fato criminoso e a percepção pelo agente de que a vítima não tinha o discernimento para a prática do ato, o que, nesse caso, é bem mais fácil de demonstrar, sendo muito mais benéfico ao interesse da pessoa com deficiência envolvida.

Do mesmo modo, ela necessita das garantias apropriadas no âmbito da capacidade civil. Para a lei corrente, já que tem condição física de externar sua vontade, por mais que não compreenda verdadeiramente a realidade que a circunda, nem as questões que envolvem essa vontade, ela é plenamente capaz para todos os atos da vida civil, já que não está contemplada em nenhuma das hipóteses dos artigos 3º e 4º, CC/02. E mesmo que lhe seja aplicada a curatela (o que não se mostra legalmente plausível), esta deve se restringir aos atos patrimoniais e negociais, não podendo atingir o escopo sexual.

Perante as circunstâncias do caso exposto, por mais que a esterilização compulsória deva ser evitada ao máximo por ser medida extremamente invasiva na esfera existencial da pessoa, as consequências da aplicação dela antes do infeliz fato teriam sido benéficas para o próprio desenvolvimento da pessoa com deficiência em apreço, pois haveria sido evitada a gravidez, que indubitavelmente acentuou exponencialmente o trauma decorrente o abuso sexual sofrido. Repise-se que este trabalho se inclina à impossibilidade de esterilização compulsória na maior parte dos casos, mas não se pode prever ou pressupor que em todos eles essa rígida proibição será a melhor opção.

Dito isso, o que se sugere aqui é, além da retomada do critério pautado no discernimento para aferição da incapacidade já defendida repetidamente, a retirada da taxatividade de atuação do curador para atos patrimoniais e negociais, pois, por óbvio, o campo existencial é o mais necessitado de ajuda, e caso o juiz verifique a necessidade de abrangência da curatela pra algum efeito extrapatrimonial, seja no campo sexual, seja para o casamento, seja para a saúde, entre outros, sustenta-se que a ele seja facultado estendê-la, de forma

extraordinária e fundamentada na melhor adequação proporcional às peculiaridades e necessidades da pessoa, nos termos da CDPD.