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Alteridade e Diálogo: o saber de experiência no “Tecelendo”

O exercício de produzir conhecimento a partir da relação “eu, Outro e mundo” em que “estamos sendo”, é exercício que nos exige uma intensa entrega no abismo que nos separa de nós, do Outro e do mundo em que estamos sendo. Vivemos uma grande crise individual e coletiva. As angústias que dela resultam podem contribuir nesse processo.

Estamos, como bem ressaltou o educador Marcos, diante da “necessidade de se pensar a relação com o Outro, os problemas vivenciados com o Outro e discutir isso com o Outro trazendo isso para a dimensão do diálogo. Porque a gente vive muitas vezes em nossa vida escondendo muitas vezes o jogo e se alguém te faz alguma coisa, você esconde para depois você tirar o tapete da pessoa... Estamos diante da necessidade de reconhecer que a vida, por mais individual que seja, é também uma experiência coletiva, e, portanto, precisamos caminhar juntos.

Para Lévinas, o ser humano existe de tal maneira que está entregue à sua preocupação com sua própria existência. Isso significa dizer que o ser humano, ao ser humano, revela o ser e sua existência (de ser humano), permitindo compreender o ser. Um exemplo, nesse sentido, encontra-se, segundo Edson Carvalho Guedes (2007), no estado de angústia. “Tal situação não é apenas um estado psicológico, mas um modo de o Ser se revelar, possibilitando, assim, a sua compreensão. O Ser não é uma realidade fixa no tempo, trata-se de um verbo no gerúndio, sempre vindo a ser. O ser é sendo.

Perceber a Extensão Popular como caminho para um processo de educação de educadores é percebê-la enquanto uma forma propositiva de tempos, espaços, experiências que contribuam com olhares e ações para superação de nossos limites como seres humanos. Mais do que isso, que contribua com o processo de ruptura de estruturas hegemônicas que priorizam o individualismo, o egocentrismo. Conforme afirmou, por exemplo, a educadora Eduarda: [...] somos seres egocêntricos, egoístas, nós queremos que sempre a nossa opinião prevaleça, não queremos ouvir a opinião dos outros. E lá [no Tecelendo] é muito forte escutar as outras pessoas, respeitar a opinião dos outros, dar a nossa, mas também respeitar a dos outros.

A radicalidade da Extensão Popular está justo em possibilitar o encontro com o Outro. Quanto mais nos relacionamos com o coletivo, mais aprendemos o coletivo, e vai se

construindo cada vez mais quando a pessoa se junta ao grupo, já estou dizendo tudo! (Lailton). O tudo de Lailton se encontra com Eduarda: [...] quebrando essa ideia de que um é melhor do que o Outro, sempre coletivo, sempre trabalhando coletivo. A ideia do trabalho coletivo é muito forte e é uma coisa que a gente vai levar para a vida toda quando sair do “Tecelendo”.

E é por meio da práxis revolucionária que o ser humano transforma a si e ao mundo, defende Marx. O ser humano altera o mundo por meio de sua ação. Essa alteração, seja das circunstâncias, por meio da atividade humana, seja de si próprio, segundo Marx, deve ser apreendida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária.

Almejar a proposição de um mundo em que a educação contribua na transformação dessa relação para um modelo em que seja superada a exploração implica necessariamente um confronto de interesses que envolva a ordem econômica, política e espiritual. Implica um confronto educativo, um confronto em que possamos nos transformar em comunhão com o Outro, como nos ensinará Paulo Freire.

É um diálogo de sujeitos em suas múltiplas dimensões. As transformações sociais não passam apenas por uma transformação da ordem econômica, política ou espiritual, elas envolvem essas e tantas mais que possamos reconhecer enquanto pertencentes ao movimento das relações entre os seres viventes. Esse debate não ultrapassa o diálogo entre seres humanos, aqui a alteridade precisa necessariamente alcançar todos os seres viventes, caso contrário não é alteridade.

A educação de educadores acontece nas relações estabelecidas com o Outro e com o contexto. O educador e o educando educam-se juntos na práxis revolucionária por intermédio do mundo que transformam.

É por isso que reafirmo que uma vez imersos na nessa grande crise social, o “eu quero”, o “eu posso, o “eu vou”, o “eu mereço” está de frente com o Outro... que também deseja, também pode, também vai, também merece. Com isso, todos nós estamos diante do convite ao diálogo e à alteridade. Mais do que nunca, precisamos nos compreender por meio do encontro e de nossas tão contraditórias e difíceis relações de interesses, tantas vezes antagônicas e, mais do que nunca, urgentes de amor e de humanização.

Convite às pausas, ao olhar, ao sentir, ao ouvir, ao falar, ao amar, ao sorrir, ao encanto, ao reencanto, ao criar e recriar a relação com o Outro e com o mundo. Esse encontro com o Outro, e não com o mesmo e a redução do Outro ao Mesmo, é um dos grandes desafios postos à educação.

Emmanuel Lévinas defende a relação com o Outro como um fenômeno eminentemente ético. Além disso, coloca o conhecimento como elemento determinante e fundante da relação humana.

Nessa perspectiva, a educação precisa assumir o compromisso com o Outro. Lévinas questiona a filosofia clássica, “põe em dúvida o primado e o poder da filosofia do Ser, ou seja, da Ontologia. Para ele, o Outro se manifesta anterior a qualquer discurso ou conhecimento e, desse modo, será o evento ético o elemento fundamental”. (Guedes, E. C., 2007, p. 32). O sentido do Outro aqui difere da percepção do Outro como representação “que redunda o Outro, e que nada mais é que o mesmo, e também do Outro tomado enquanto tal, por si mesmo. O Outro aqui é independe da afirmação minha ou de qualquer um. O Outro não provém de mim, do Eu. Ele vem a mim, sem que eu o tenha chamado ou afirmado, é “o Outro modo que ser”. (Guedes, E. C., 2007, p. 81).

A Educação é o convite ao encontro, a Extensão Popular é um caminho para o tempo, o espaço para os sujeitos experienciarem o processo de reencantamento a partir da alteridade e do diálogo. Precisamos pensar juntos e propor juntos novas formas de viver vivendo.

Nessa perspectiva, a educação de educadores é também a expressão de uma concepção de mundo e, quando a almejamos transformadora, ela caminha propositivamente dialógica com sujeitos em constante movimento de ir além de si mesmos e com a promoção das responsabilidades singulares e coletivas.

É nessa perspectiva que percebi a Extensão Popular no “Tecelendo”. Um espaço e tempo de rupturas que busca privilegiar “o sujeito em seu movimento de ir além de si mesmo, em favor do Outro, dando, portanto ênfase às habilidades sociais e atitudinais, priorizando a dimensão intersubjetiva [...] Trata-se de outro movimento educacional, que privilegia o cuidado, a acolhida e o compromisso com o Outro”. (Guedes, E. C., 2007, p. 81).

Os sujeitos que nesse movimento se educam em comunhão com o Outro caminharão por experiências que os colocam em um movimento de “sair do ser em direção ao além do ser”, é uma trajetória para além da essência, “não para o não ser, nem para o ser de outro modo, pois, em todos esses casos, continuaria o regime do ser”, para Lévinas, “um acontecer, de outro modo que ser”. (Guedes, E. C., 2007, p. 82).

Que processos educam um educador para que ele seja capaz de se olhar, olhar o Outro e perceber a ambos como seres humanos inacabados e “demasiadamente humanos”? Um educador em processo de aprendizado do diálogo, no sentido mais profundo do termo, não no blá-blá-blá, não no “[...] dizer-se descomprometidamente dialógico”, e sim no “vivenciar o diálogo” que se constrói no exercício do “Ser dialógico”.

Aprender o diálogo “é não invadir, é não manipular, é não sloganizar”. Aprender a “Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade”. (FREIRE, 1983, p.28). E isso passa também por enfrentar o autoritarismo que há em nós, o egocentrismo, as vaidades ingênuas que alimentamos para nos sustentar tão fundamentais neste mundo.

Nesse sentido, o sujeito dialógico caminha na direção do outro. “Uma abertura à significação do Outro. Não é o Mesmo que encontra significado no Outro, mas é a significação do Outro que se apresenta ao Mesmo.” (Guedes, E. C., 2007, p. 91).

As características do grupo de educadores do “Tecelendo” são marcantes. O experienciar intensamente as situações é uma delas. Como Helena bem sintetizou, no “Tecelendo” a gente se permite trocar experiências... A gente se permiti viver coisas que muitas vezes são dolorosas... mas que a gente está ali o tempo todo vivendo e está aprendendo com essas experiências...

O que atravessou os sujeitos coletivos e que contribuiu com o movimento de educação dos educadores? Essa questão me impulsionou a caminhar pela história do “Tecelendo”, registrada em seus documentos, nas entrevistas, na memória.

Desse movimento, existem elementos interessantes de ser destacados. Por exemplo, a concretização do trabalho parte de movimentos de ruptura. Os principais deles giraram em torno da construção metodológica. As rupturas, por sua vez, ecoaram nas experiências individuais e do coletivo. Essas rupturas tinham como parâmetro o comprometimento com o Outro, e por esse motivo os educadores se desafiaram apesar do medo em relação à perda de “controle” e em relação ao “imprevisível”, ao “novo”. Diante disso, os educadores em processo de educação necessariamente precisaram se desafiar a propor rupturas a partir de rupturas e enfrentar as consequências desse movimento.

Optei por dialogar com experiências que foram coletivas. Não posso ter certeza de suas contribuições no processo individual de cada um, porém são experiências que atravessaram o grupo e tensionam cada sujeito, a seu tempo e modo, a se mover em conhecimentos de modo a seguir nas atividades enquanto educadores.

E em relação à metodologia do “Tecelendo”, no que tange à alfabetização e ao letramento tendo a tecelagem como eixo, o que é possível dizer dessa construção? É possível dizer que é uma metodologia construída a partir de uma busca de comprometimento com o Outro.

Há, ao longo dos anos, desafios postos ao “Tecelendo”, e a busca da construção da metodologia tenta abarcar os interesses dos sujeitos envolvidos no trabalho. Percebo que as rupturas com o instituído acontecem já nos primeiros anos do trabalho. Houve, segundo

pudemos observar, um movimento de garantir dois educadores em cada turma. A tentativa era de não isolar um educador, bem como a compreensão de que o trabalho não poderia parar caso um educador, por intercorrências da vida, não pudesse participar da atividade.

Esse movimento repercutirá, por exemplo, em 2012, quando o grupo viveu grande crise devido aos desentendimentos dos bolsistas. Alguns começaram a sair do Projeto. O trabalho “não podia parar” (dizem Helena e Beatriz); com isso, os educadores que ficaram começaram a assumir a responsabilidade, mas isso aconteceu porque já havia sido construída a interação entre os educadores. Maria Clara traz isso na entrevista quando conta que a coordenadora pedagógica a colocava para trabalhar justo com a educadora com quem ela menos tinha afinidade.

Outro elemento importante diz respeito ao contato desde o início com as comunidades. Esse movimento vai contribuir para que o trabalho ganhe força justamente em sua maior complexidade: o aprender a ouvir o Outro e enfrentar o desafio de transformar isso em propostas das turmas e oficinas. Com isso, percebo um movimento de aprender a ouvir e uma busca da construção criativa de processos que contribuam com os sujeitos envolvidos nas atividades. Nas turmas, inicialmente as atividades giravam em torno de músicas, poesias e trabalhos com letras móveis. É possível perceber o conflito entre os diversos conceitos de alfabetização que existiam, porque cada educador trazia um modelo escolar construído a partir da época em que era estudante, e eles se confrontavam com uma proposta e um processo de educação que dizia da necessidade de avançar nas proposições. Com isso, alguns educadores passaram a questionar o projeto porque não possuía um “currículo” e “um como fazer” em um documento normativo.

A ruptura com o formato de turmas foi um grande passo dado pelo grupo, em relação à sua metodologia. Além disso, o convite às pessoas para um processo educativo associado ao trabalho é de grande importância. O grupo deparou, na transição do formato de turmas para o de oficinas, com alguns dos significados de ser “professor” ou de ser “aluno”. Os que socialmente são reconhecidos como os que “detêm o conhecimento” de frente com esse Outro, os que socialmente “não sabem”.

Esse movimento é, até o presente, um elemento importante na constituição da metodologia construída pelo grupo. As reações diante essa relação e o enfrentamento dessa situação trouxeram marcas distintas ao “Tecelendo”. A alegria, a coragem, a espontaneidade, o dinamismo, são características de um grupo que aprendeu ao longo dos anos que as certezas não são tão certas e que o educador precisa efetivamente se assumir em processo de educação.

Então, foi possível perceber que uma das estratégias desenvolvidas no grupo é o estar junto. Há uma necessidade da maioria do grupo em estar junto, seja no “Tecelendo” seja fora dele. Ao longo dos anos, o grupo passou a utilizar o espaço do “Tecelendo” como local de encontro. Educadores passam só para dar “oi”, alguns chegam apenas para tomar o café ou almoçar e depois ir para a aula no CFP. Há os que vão só para entrar na internet, ou para assistir filmes e comer pipoca. Estão juntos mesmo fora das suas atividades.

Nesse movimento, os educandos são inseridos, é no combinar e no fazer o almoço, nas combinações de quem vai lavar a louça, limpar o banheiro. Na confusão para não deixar as plantas morrerem de sede, nas inúmeras tentativas da horta (fracassadas, na maioria, porque ainda não se deram conta de que é necessário a manutenção e deixam apenas com um ou outro). Brincam, cantam, dançam, tecem e resolvem os problemas do dia-a-dia, fazem as atividades demandadas nas oficinas juntos, enfim, experienciam intensamente a relação do estar junto com o Outro.

Aprendem da vida, do Outro, compartilham as suas, aprendem a falar, ouvir, mediar conflitos... ensinam. Os espaços e tempos são ampliados. Não se restringem aos compromissos nas reuniões de planejamento ou nas aulas (turmas ou oficinas). Nessa perspectiva, as proposições das oficinas vão buscando um eixo: dialogam com quem está, não são fixas. Elas dependem tanto do educador e suas disponibilidades, que variam de acordo com as diversas atividades na Universidade, quanto do educando e suas interações ao longo do trabalho.

Ao longo dos anos algumas oficinas passaram a se consolidar, e o “Tecelendo” começa a perceber algo de seu caminhar junto às pessoas. A Tecelagem é uma das oficinas consolidadas. Apesar da dificuldade de geração de renda, muitas pessoas vão ao “Tecelendo” para aprender a tecer e conviver, estar junto, fazer amizades, sorrir, brincar, chorar.

Esse movimento foi também discutido no trabalho de Suelândia Franco (2013), conforme já apresentei. Além dela, Thaís Costa (2014) também traz essa dimensão. Essas movimentações fizeram que a tecelagem ganhasse duas perspectivas: a de arte e a de trabalho. As pessoas que desejam gerar renda se associam ao grupo de trabalho e lá desenvolvem ações nesse intuito. Quem não deseja gerar renda, apenas tece ‒ e muitas vezes contribui com o grupo de trabalho, mas não faz questão de nenhum retorno financeiro.

As atividades na oficina de tecelagem são, em alguns casos, vinculadas à oficina de leitura e escrita. Há a necessidade de construir os projetos dos trabalhos a ser tecidos, a reflexão acerca da estética, gastos com materiais, cálculo de preços de vendagem. Mas essas ações também variam de acordo os sujeitos envolvidos na oficina de leitura e escrita.

Essa oficina é responsável pela parte técnica da aquisição da língua. Envolve também as discussões políticas a partir do trabalho de leitura de mundo. É uma oficina que em alguns momentos do “Tecelendo” ganhou força, em outros perdeu. Há muitos conflitos entre os educadores em relação ao conceito de alfabetização. Com isso, os educadores em muitos casos não se sentem alfabetizadores. Além disso, vivenciam em grande parte as ansiedades, tanto suas quanto dos educandos, em relação aos resultados técnicos dessa apropriação.

Outra oficina que vem apontando elementos relevantes para a construção metodológica do “Tecelendo” é a de meditação. Surgiu em 2011 a partir da observação do grande índice de depressão entre as mulheres. Com isso, surgiu a demanda de um trabalho que pudesse trazer os sujeitos para esse diálogo com suas dimensões internas e pensar outras formas de enfretamento. As contribuições dessa oficina estão apresentadas no trabalho de pesquisa de Elisabete Delfino (2014). O aprender a respirar e o movimento de socialização das experiências vivenciadas a cada encontro contribuem com a concentração dos sujeitos nas atividades de leitura e escrita. Além disso, as pessoas passam a relatar as diversas experiências levadas para casa, onde também passaram a meditar.

Outro elemento importante na metodologia de alfabetização e letramento do “Tecelendo” diz respeito ao aprender a se expor. Esse movimento tem acontecido principalmente a partir das técnicas do teatro associado a um trabalho com música. A oficina trabalha com técnicas do Teatro do Oprimido e músicas ouvidas pelos educandos. As pessoas dançam cantam, leem as letras e encenam pequenas cenas.

Em relação ao letramento, ele está vinculado, ainda, muito mais ao GEPE, e há também uma construção metodológica. O grupo que começou com o desafio de não ser cursinho vem, ao longo dos anos, na busca de realizar um trabalho que dialogue com Amargosa e seus principais problemas. Os movimentos de leitura e escrita também sofrem a influência da meditação, do teatro e de uma reflexão da interdisciplinaridade.

No próximo momento, alguns olhares e sobrevoos sobre as reflexões acerca da Extensão Popular como caminho para a educação de educadores.

Adormece o teu corpo com a música da vida. Encanta-te. Esquece-te Tem por volúpia a dispersão. Não queiras ser tu. Quere ser a alma infinita de tudo. Troca o teu curto sonho humano Pelo sonho imortal. O único. Vence a miséria de ter medo. Troca-te pelo Desconhecido. Não vês, então, que ele é maior? Não vês que ele não tem fim? Não vês que ele é tu mesmo? Tu que esqueceste de ti? (Cecília Meireles)

CAP. 5 ALGUNS OLHARES E SOBREVOOS

Deparei ao longo da caminhada com muitos bichos e muitos gritos... Os meus e de meus companheiros de caminhada e os de tantos outros e outras que de algum modo me atravessaram. Deparei outro dia com um bicho que considerei interessante compartilhar aqui, e que de algum modo ajuda na reflexão acerca da educação de educadores. O bicho, de Lia Frota.

Um dia acordei com um desconforto na garganta. Ardia, coçava, doía. Foi dando-me uma agonia, que eu não conseguia nem dormir mais um pouco, nem muito menos aprontar-me para ir à faculdade. Era o bicho.

Ele disse-me que precisava gritar. Estava lá entupindo a minha garganta e precisava gritar. Essa é boa... Porém, percebendo-me em desvantagem, resolvi não contrariá-lo. Tentei somente uma negociação: “poxa bicho, não pode ser depois da aula?”. “Não.” “Ah, segura esse grito só mais um pouco, toma um café comigo...” “Não.”

Então, cedendo-o, deixei-o à vontade. E de minha garganta saiu um bolo de papel amassado e meio molhado, com um texto. Um desabafo. Uma confissão. Um pedido de mudança: o grito do bicho.

E assim, mais aliviada e com a garganta desobstruída, comecei a reparar naquele bichinho danado. Dei-me conta de que ele já era meu inquilino há tempos, conhecia todo o meu histórico de estudante de medicina e vivera comigo cada experiência.

Fui então me lembrando de suas peripécias por dentro do meu corpo. No dia que tinha que assistir a vinte aulas mal dadas e passar a noite decorando coisas (para nunca chegar a ser um computador de bolso), sentia-o rodopiar na boca do estômago. Ao deparar-me de frete com a prática médica hospitalar, no terceiro ano, ele fez tanto, que era uma náusea constante que me dava.

Cheguei mesmo a pensar que não estava no lugar certo. A anamnese médica e o exame físico não davam conta! É essa a melhor compreensão que podemos ter do ser humano? “Ah, Lia, vai ver você devesse fazer algo mais ligado à arte. Medicina é isto que está aqui.” Quase cheguei acreditar. Mas meu bichinho não deixou. Disse que medicina podia ser muito diferente daquilo ali, e eu acreditei nele.

E pode mesmo! Já senti o gostinho de fazer uma medicina cheia de sentido, e, nossa, nessa hora meu bicho deu voltas olímpicas pelo meu corpo inteiro,

do dedão do pé ao fio de cabelo. A energia de seu movimento encheu minha pele de sangue e senti-me mais viva e abençoada, como que apaixonada. (Vasconcelos, 2006, p. 11-13).

Vivemos em um mundo de contradições. Apesar disso, há um movimento insistente de nos fazer acreditar que somos uma “sociedade como um corpo constituído” e que basta cada um fazer a sua parte e todo o corpo funcionará bem!

Para Marx, a sociedade é constituída de níveis ou instâncias articuladas por uma