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4.3 Os primeiros passos: o ano de 2009

4.3.1 O trabalho com a alfabetização e tecelagem

O trabalho de alfabetização no “Tecelendo” partiu da formação clássica: o convite, o interesse do sujeito, matrículas por disponibilidade de tempo e o desenvolvimento das atividades. Três turmas foram formadas. Esses grupos receberão “nomes” a partir das atividades e discussões com os grupos específicos. Cada grupo pôde, em discussões, indicar um nome para a turma. Essa movimentação, segundo registros, fez parte das primeiras tentativas de constituir o coletivo no “Tecelendo”.

A turma que acontecia no período da manhã foi denominada Família Feliz. Era composta de 25 pessoas entre 20 e 70 anos. Essa turma foi inicialmente organizada por meio de parceria estabelecida com o CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) de Amargosa.

O segundo grupo formado aconteceu no período vespertino. Optaram pelo nome A União Faz a Força. Foi composto de 12 senhoras, donas de casa na faixa etária dos 30 aos 65 anos. Esse grupo apresentou um perfil diferente do primeiro. Segundo os relatórios, era marcado por um grande índice de depressão enfrentado pelas mulheres.

Esse elemento contribuirá para a proposição da oficina de Meditação em 2011, conforme apresentarei em momento oportuno. Além disso, questões de gênero foram marcantes. A grande maioria das mulheres não encontrava apoio de seus maridos para frequentar as atividades do Projeto. “O que nos marcou também foi que mesmo sem o apoio

as mulheres se desafiaram e passaram a frequentar as atividades, percebendo no projeto uma possibilidade de emancipação”. (Relatório “Tecelendo”, 2009, p. 24).

O terceiro grupo do Projeto “Tecelendo” em 2009 foi o Três Lagoas, composto de 13 pessoas, trabalhadores rurais na faixa etária de 16 a 50 anos. Inicialmente, as atividades desse grupo aconteceram na própria comunidade rural e, segundo os registros, foram matriculadas 31 pessoas que não sabiam ler e escrever. “Algumas conheciam as letras, mas em sua maioria o grupo se encontrava no nível das garatujas.” (Relatório “Tecelendo”, 2009, p. 24). Esse grupo era profundamente marcado pela discriminação social. Eram rotulados como os baderneiros da cidade.

As atividades nos três grupos são relatadas em documentos produzidos pelos educadores e também nos relatórios do “Tecelendo”. De um modo geral, o que pude perceber é que em todos havia a tentativa de realizar o movimento de alfabetização e dialogar com os conflitos que emergiam no processo. Destes, alguns marcantes diziam respeito às ansiedades do educando de aprender rapidamente, o medo de não aprender, a vergonha da exposição pelo não saber. Além disso, há registro dos conflitos dos educadores por querer ensinar rapidamente, o medo de não conseguir atingir os objetivos, o desejo de estar preparado para tal atividade etc.

Se por um lado havia a tentativa de construir o coletivo, por outro a separação em turmas apresentou também aspectos negativos, tais como a rivalidade entre os educandos e educadores dos diversos grupos, a falta de circulação de ideias e pessoas nos espaços e a diversidade de atividades. Esses elementos, dentre outros, culminarão na discussão e mudança de metodologia em 2011, que terá como alvo central o fortalecimento do coletivo e a quebra dos movimentos individualistas que as turmas estavam reforçando.

A quebra de preconceitos por meio da realização das atividades talvez seja o primeiro passo para o aprendizado da alteridade dentro do “Tecelendo”. É fundamental em um movimento de educação no qual as pessoas se aproximem e se reconheçam como humanas por mais distintas que sejam. Nos primeiros anos do “Tecelendo”, as turmas vinham carregadas de rótulos e impregnadas de uma visão de mundo preconceituosa e assistencialista por parte dos educadores. Até o presente, observo que muitos que chegam ainda vêm com muitos preconceitos. Hoje, porém, diferente dos tempos iniciais, há um grupo, há educadores com uma longa caminhada, então as ideias preconceituosas são combatidas em todos os espaços. Dialogam no “Tecelendo”, por exemplo, pessoas de diferentes crenças religiosas: evangélicos, católicos, espíritas, candomblecistas, e ainda aqueles que nem sabem no que

acreditam! Esse movimento foi construído também com a construção da metodologia do trabalho.

A turma Família Feliz, que trazia consigo o estigma dos “loucos”, foi fundamental para colocar em xeque os educadores que acreditavam que “iam ajudar um pouquinho”. Provaram que podiam aprender a ler, escrever e tecer com a alegria e a diversidade de seus movimentos. Não há registros no “Tecelendo” de qualquer surto ou violência que pudesse justificar a exclusão dos sujeitos daquele grupo nas atividades do projeto. Muito pelo contrário, eles foram, segundo registros, propulsores das mudanças metodológicas da alfabetização no ano de 2011.

Havia o desejo da equipe de ofertar um maior número de atividades no “Tecelendo” para que esse grupo não ficasse restrito a apenas duas manhãs por semana. Com isso, segundo os registros, a mudança poderia contribuir na autonomia desses educandos, visto que seguiriam tecendo e escolheriam outras atividades ao longo do dia. É importante o entendimento de que, apesar de todas as contradições, qualquer transformação só acontecerá se existir o que ser transformado. Nesse sentido, concordo com Freire: “para criar alguma coisa é preciso começar a criar. Não podemos esperar para criar amanhã, temos que começar criando” (FREIRE; HORTON, 2003, p. 78).

Em relação à tecelagem, ela precisou ser vivida por todos para que cada um pudesse dizer como ela faria parte de seu trabalho enquanto educador. Um tecido feito a diversas mãos é distinto de um com apenas um tecelão. Interessante ressaltar que ao mesmo tempo que o “Tecelendo” era construído a várias mãos, as atividades da tecelagem também. Havia um tear, um saco de retalhos de malhas, alguns poucos rolos de fios de algodão e muita burocracia a enfrentar.

As dificuldades para a aquisição dos materiais do “Tecelendo” eram as mesmas de quase todos os processos de compras na UFRB naquela época, que ficavam presos ora a uma rede de leis de compra no setor público, ora ao não saber técnico instalado ou ao reduzido número de servidores para execução desses serviços, além ainda da boa ou má vontade de alguns poucos que dominavam os processos etc. Contudo, os relatórios das atividades indicam que apesar dessa dificuldade o trabalho seguiu.

Quando o “Tecelendo” lançou os primeiros fios em seu urdume e começou as primeiras tramas, nelas também vieram texturas que marcaram, do início aos dias atuais, a experiência do “Tecelendo”: os conflitos e o movimento de lançar o grupo em constantes provisoriedades... O ano de 2009 foi de fato o primeiro movimento. Os educadores que iniciaram o trabalho e fazem parte desta pesquisa relembram com carinho essa época.

Depois eu comecei a trabalhar em todas as coisas do “Tecelendo”. Então aquilo me empolgou demais. De estar na divulgação, de estar em reuniões, de sair pelas comunidades, de estar junto ao sindicato, de estar ali junto com você. A gente andou por muitos lugares, de fazer a movimentação de divulgação do “Tecelendo”, de colocar o tear na rua. Aquilo pra mim foi muito empolgante... Foi um período muito massa. E é legal a gente lembrar isso porque a gente não tinha muita coisa! Tinha suas coisas que era o seu tear, os seus materiais. Porque as coisas do “Tecelendo” mesmo ainda não tinham chegado, mas mesmo assim a gente não desistiu de trabalhar. Isso eu acho legal... vão construindo algumas coisas dentro de você... não quer tudo muito pronto para começar a trabalhar sabe? Eu acho que aquele início do “Tecelendo” foi perfeito. (Educadora Beatriz).

Segundo esses educadores, havia um clima de construção e de luta. Apesar da pouca maturidade dos educadores em relação aos processos de ensino e aprendizagem, havia sinceridade, brilho nos olhos, sonhos.