• Nenhum resultado encontrado

4 DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS E O CONTINUUM COLONIAL

4.1 ALTERIDADE: OU SOBRE O OUTRO NO CONTINUUM COLONIAL

O capitalismo não inventou o “outro”, mas por certo fez uso dele e o promoveu sob formas dotadas de um alto grau de estruturação (HARVEY, 2010, p. 101).

Uma hipótese é que os processos de deslocamentos compulsórios atuais são, em grande medida, continuidade do modus operandi colonial, que tem como base a classificação e hierarquização da população em grupos subalternizados, que estariam à disposição do uso, de si e de seus recursos materiais e simbólicos pela elite herdeira colonial. Embora com perspectivas e abordagens distintas, Almeida (1996), Foucault (1999) e Elias e Scotson (2000), Harvey (2010, 2011, 2012a, 2012b) apontam para aquilo que Quijano (2005, p. 229) chama de

“novas maneiras de legitimar as já antigas idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados”.

Para Quijano (2005, p. 228-29), a base de dominação do poder colonial foi, e ainda é, o racismo.

A formação de relações sociais fundadas nessa idéia [de raça], produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. [...] raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população.

Nessa mesma direção, Parron (2008, p. 24), ao analisar as “Cartas a favor da escravidão”, de José de Alencar, o mestiço que busca justificar a escravidão negra no Brasil, “à maneira da maioria dos estadistas brasileiros do XIX”, afirma que

O próprio vocábulo raça, que reincide no texto, se refere imprecisamente a agrupamentos de humanos, definidos ora conforme a nacionalidade e a geografia, ora conforme a cultura, a cor de pele e as convicções morais. É esse conceito clássico de raça que permite conceber a escravidão como instituição aplicável a todos os povos

(a não só aos negros) e, nos tempos modernos, como estágio social propedêutico, em que o povo dominado se preparava para o exercício competente da liberdade futura.

Seria dessa compreensão de raça e de escravidão que o prestigioso escritor brasileiro cunhou a sentença “a África civiliza a América” (p. 25), na perspectiva de que o africano escravizado salvaria a sociedade colonial indígena indolente e autofágica.

Essa classificação racial hierarquizada da população tem justificado a ação do Estado nos tratamentos distintos dados à diversidade étnica desde a colonização. Foucault (1999, p. 307) afirma que “o racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio colonizador”.

Foucault (1999, p. 306) ainda enfatiza que:

A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. [...] A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. [...] a importância vital - do racismo no exercício de um poder assim: é a condição para que se possa exercer o direito de matar. [...] É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.

Podemos inferir que “os procedimentos administrativos naturalizados pelo poder das concepções colonialistas [...] que não se constituíram em monopólio tão somente de conhecimentos produzidos em instituições militares [...], representam produtos de formas econômicas” (ALMEIDA, 1996, p. 33), e que para justificar as ações de deslocamentos compulsórios que geram “a erosão de culturas minoritárias, o estabelecimento de sistemas econômicos baseados no trabalho servil, migratório e em salários deprimidos”, são ações que se efetivam a partir da “função assassina do Estado”.

A classificação e hierarquização de indivíduos, grupos e comunidades para fins de exploração e expropriação tem, ao longo de séculos de colonização, consolidado uma certa geografia da exclusão, como afirma Jean-Pierre Leroy, no prefácio da obra: “Racismo Ambiental: I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental”: “pobres atraem empreendimentos sujos e perigosos, que atraem mais empreendimentos do mesmo tipo, que atraem mais pobres. Se vêem assim formadas verdadeiras ‘Zonas de Sacrifício’” (LEROY, 2006, p. 8).

Leroy (2006, p. 8), mostra como a formação dessas Zonas de Sacrifício constitui-se um processo histórico que remonta aos tempos da colônia formal portuguesa91 no Brasil, o que

91

Considerando que a historiografia mais recente tende a referir-se a esse período como América portuguesa. Quando nos referimos ao período formal histórico da colônia portuguesa que mais tarde será o Brasil Império, utilizando a nomenclatura “Brasil Colônia”, o fazemos para ampliar e facilitar o entendimento para os diversos leitores (a exemplo da opção de Alencastro, 2000). Até porque, “Brasil, Terra de Santa Cruz, Terra dos Papagaios,

nos auxilia uma vez mais em nossas formulações da noção de continuum colonial, via gestão das populações pelo par Capital-Estado.

Aí está a “célula tronco” formadora do lado sombrio da sociedade brasileira e que vai se reproduzindo até hoje: uma profunda desigualdade que nasce no tratamento dado aos povos indígenas e aos negros nos tempos do Brasil Colônia, que continua com a mundialização do mercado, uma desigualdade com tintas de racismo.

Para Herculano e Pacheco (2006, p. 21) o mesmo racismo que classifica e inferioriza, é uma espécie de:

“pré-conceito”, isto é, um juízo antecipado, pronto, fixo e negativo a respeito de alguém e que se antecipa ao encontro efetivo com essa pessoa e à tomada de contato com o que ela faz, pensa e é. Trata-se de uma pré-classificação que desqualifica e desumaniza. O racismo impede o encontro, a solidariedade, a fraternidade, a união. Segundo estas autoras (HERCULANO; PACHECO, 2006), as compreensões mais adiantadas sobre racismo prescindem do conceito de raça, inclusive, elas lembram que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) declarou que “não existem [raças]”. Os alvos do racismo podem ser indivíduos, que quase sempre são de um grupo étnico comum, ou de um território comum, que são inferiorizados, seja pela sua constituição, religião, atividade, status, origem. Para elas, “uma etnia é um grupo de nascimento. Etnias não se resumem a um tom de pele ou a tipos físicos, mas a uma forma de vida, sobretudo” (p. 21). E, por conseguinte, o racismo ambiental são “as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas” (p. 25).

Para estas autoras, a compreensão de racismo ambiental só se completa se a ela acrescentar-se a definição de “injustiça ambiental”, que a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA, 2001, p. 1) define como sendo

o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis (RBJA, 2001, p. 1). E, ao contrário, por Justiça Ambiental, a RBJA (2001, p. 1) entende

o conjunto de princípios de práticas que: a) asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial, ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões políticas, e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; b) asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país; c) asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito; d) favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem

América portuguesa, ou qualquer que fosse o nome escolhido, designava uma ambivalência, mas também uma certeza: esse local nascera desempenhando o papel de um ‘outro’, fosse na sua natureza ou nos seus naturais” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 33). Enfim, esse imbróglio fica para os historiadores, nossa intenção circunscreve-se em buscar elementos que ajudem a demonstrar os nexos temporais do continuum colonial.

protagonistas na construção de modelos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade de seu uso. A despeito do manifesto da RBJA ainda insistir que é possível, com controle social, domar o dragão do desenvolvimento e do progresso, posto em marcha pelo Capital-Estado, no

continuum colonial, sua compreensão de Justiça Ambiental constitui-se uma potente chave de análise e um importante argumento nas trincheiras das lutas cotidianas dos escravos da república.

Segundo Herculano e Pacheco (2006, p. 26), o movimento por justiça ambiental teve suas primeiras expressões nas comunidades negras dos guetos dos Estados Unidos, nos anos 1980, que passaram a denunciar o quanto eram seletivamente atingidas por detritos de depósitos de lixos, por gases e outros efluentes tóxicos de indústrias localizadas em seus bairros ou nas proximidades. “[...] a disseminação da denúncia e dos debates culminou com a descoberta de que três quartos dos aterros de resíduos tóxicos da região sudeste dos Estados Unidos estavam localizados em bairros habitados por negros”. As autoras expõem uma longa lista de exemplos de situações de injustiças ambientais que ocorrem no Brasil, no México, na França. E afirmam ser:

[...] uma ilusão restringir ao sul dos Estados Unidos, aos índios da América Latina, à África devorada pela fome e pela AIDS ou aos nossos estados mais pobres a injustiça e o racismo ambientais. A atmosfera de explosão que desde meados de 2005 vem se acirrando na França e nos banlieues (periferia) de Paris, principalmente, revela da mesma forma a existência de franceses de segunda classe, descartáveis, sem direitos. Porque isso tudo envolve bem mais que a mera cor da pele, a religião, as tradições ou os valores culturais (HERCULANO; PACHECO, 2006, p. 27).

Em todos esses casos o Estado ou participa diretamente realizando as obras de infraestrutura, ou emitindo as licenças ambientais ou se omite em benefício do empreendedor capitalista que se instala nos territórios das comunidades expropriando suas terras ou inviabilizando sua permanência, como ocorre em Piquiá de Baixo, em Açailândia/MA, onde as toneladas de poluentes das siderúrgicas tornaram insuportável a permanência da comunidade no seu território (ver capítulo 5). Em nosso estudo esse é o caso que se encaixa exemplarmente em termos de racismo e injustiça ambientais pela situação de morte vivida pelos moradores, que respiram por décadas as fuligens das cinco gusarias que cercam a comunidade. Disso inferimos que os grupos sociais locais subalternizados pelo par Capital- Estado, em regra, para a elite, são demais, são sobras de um modo ou de outro, seja para o ambiente, para o mercado, para o Estado, para a sociedade.

Como afirma Bauman (2005, p. 47) “sempre há um número demasiado deles. ‘Eles’ são os sujeitos dos quais devia haver menos – ou, melhor ainda, nenhum. E nunca há um número suficiente de nós. ‘Nós’ são as pessoas das quais devia haver mais”.

Para Bauman (2005, p. 54-55), esse outro – “eles” - é gerado pelos processos produtivos e políticos, embora nem o Estado, nem o Capital admitam suas responsabilidades em produzi-los. Esse outro sobrante, o chamado “refugo humano”, são as sobras, o refugo das economias de mercado, aqueles indivíduos que não têm mais qualquer utilidade, portanto não comportam mais nenhum sistema de produção. Por isso mesmo podem ser deslocados, assentados, asilados tantas vezes quantas forem necessárias para que se encaixem nalgum sistema produtivo, ou sejam dispensados, descartados de vez dos processos sociais, econômicos, políticos. Para ele (Bauman) “o progresso econômico... [vai] esmagando em seu caminho todas as formas de vida remanescentes que se apresentem como alternativas à sociedade de consumo” (p. 77).

Para que o Estado, em par com as corporações, justifique sua ação de morte, de assassínio dos grupos postos em deslocamento, ou em absoluta incompatibilidade com o entorno tóxico, insalubre, carece justificar, na mesma medida, a partir de uma classificação e hierarquização da população em “superiores/inferiores”, “dominantes/dominados”, “estabelecidos/outsiders”. Então, qual o elemento distintivo que atualmente o Estado utiliza para continuar a “matar”, ou “deixar morrer” certos modos de vida, certos grupos, certos indivíduos? Seria, ainda, o racismo? Qual seria o pecado original destes grupos postos ao deslocamento compulsório? Seria sua indolência em não estar diretamente ligados à lógica econômica da erosão dos sistemas ecológicos, da venda subalternizada das suas forças de trabalho?

Sobre a distinção dos grupos em relação de poder, Elias e Scotson (2000), no clássico “Os estabelecidos e os outsiders”, problematizam quais seriam os elementos que objetivam as diferenças, que justificam as posições de poder, de inferioridade e superioridade e, consequentemente, os estigmas e desmandos infringidos sobre os grupos inferiores pelos superiores, naquela relação.

Elias e Scotson (2000, p. 32), procuram pistas para entender o que justifica, o que objetiva as distinções feitas entre grupos, que, em tese, não teriam distinções raciais significativas, para hierarquizar em ralações de poder onde um deles é subalternizado.

A aversão, desprezo ou ódio que os membros de um grupo estabelecido sentem pelos de um grupo outsider, assim como o medo de um contato mais estreito com estes últimos possa contaminá-los, não diferem nos casos em que os dois grupos são claramente distintos em sua aparência física e naqueles em que são fisicamente indistinguíveis, a ponto de os párias menos dotados de poder serem obrigados a usar uma insígnia que mostre sua identidade.

Apesar de Elias e Scotson (2000, p. 33) não compreenderem como única, ou como determinante, admitem que aspectos materiais e econômicos constituem uma fração importante na manutenção da superioridade de grupos estabelecidos.

A superioridade de poder confere vantagens aos grupos que a possuem. Algumas são materiais ou econômicas. [...] a supremacia dos aspectos econômicos tem acentuação máxima quando o equilíbrio de poder entre os contendores é mais desigual - quando pende mais acentuadamente a favor do grupo estabelecido. Esse aspecto parece fazer todo sentido no caso dos grupos postos ao deslocamento compulsório ou artificialmente fixados por aqueles que controlam o poder político e econômico. Então, a distinção seria o quantum de reservas materiais e econômicas e capital político que cada grupo possui?

Entretanto, Elias e Scotson (2000, p. 35-36) ainda nos põem a pensar mais além ao indicarem que, “a referência à cor diferente da pele e a outras características inatas ou biológicas dos grupos que são ou foram tratados como inferiores por grupos estabelecidos tem a mesma função objetivadora, nessa relação, que a referência ao estigma azul imaginário buracumin92”.

Será possível haver grupos, na relação estabelecidos/outsiders, que realmente são “fisicamente indistinguíveis”? As marcas das condições de classe não ficam como rasuras indeléveis nos corpos físicos?

Enfim, provisoriamente, impõem-se a questão: o que faz um grupo ser posto ao deslocamento compulsório, ou impedido de deslocar-se, em favor do atual modelo de desenvolvimento econômico conduzido pelos grupos de maior poder político e econômico, a elite herdeira colonial?

4.2 DESLOCAMENTOS EM FACE DE CONFLITOS AMBIENTAIS E O AVANÇO DA