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2 COLONIALIDADE (= MODERNIDADE): O CONTINUUM COLONIAL

2.3 A GLOBALIZAÇÃO (DO CAPITAL) COMO SOMBRA DO CONTINUUM COLONIAL

Mas se é verdade que a modernidade também se projeta como o resultado de ruptura com o antigo sistema feudal, que emergiu das revoluções burguesas que fizeram surgir na cena pública social uma novíssima forma de exploração do homem pelo homem, os donos dos meios de produção versus os que vendem sua força de trabalho, dito de outro modo, burgueses versus proletários, então a modernidade passa a ser o tempo do que se convencionou chamar, largamente no conhecimento douto, de sistema capitalista de produção (IANNI, 1989, 1992; MARX, 1985, 1996; MARX; ENGELS, 2006), e as demais formas de produção material passam à peche de obsoletas, atrasadas, portanto pouco ou nada se pode falar de modernidade sem, de alguma forma, trilhar pelo modo de produção capitalista, este herdeiro das relações diretas de colonização, partícipe do continuum colonial.

O aperfeiçoamento desse sistema levou ao controle cada vez maior do Capital sobre o Estado, que por sua vez faz a gestão da população, do espaço e dos produtos em favor das empresas/corporações que o controlam.

No mesmo passo em que o progresso da moderna indústria desenvolvia, ampliava e intensificava o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi assumindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravização social, de uma máquina do despotismo de classe. Após toda revolução que marca uma fase progressiva na luta de classes, o caráter puramente repressivo do poder do Estado revela-se com uma nitidez cada vez maior (MARX, 1999, p. 85).

É o centro, como elite herdeira colonial (colonizadora e colonizada), que controla esse sistema, seja pela renda da terra, pela produção industrial da agropecuária, da construção, de infraestrutura, de transporte, de telecomunicações, seja da indústria cultural e de entretenimento, ou pela invenção e controle do capital fictício e das instituições financeiras, como das estruturas de estado (executivo, legislativo e judiciário). Que fique muito bem dito, isso tudo não sem reações, sem conflitos, sem crises e sem algum ganho, ainda que excepcional, do grande tecido social constituído pela não elite ou seus séquitos mantidos com cargos públicos ou algum benefício concedido via Estado ou Capital (MARX, 1999).

Nisso, para ajudar a montar o tabuleiro ora proposto carecemos compreender outra noção, cara para as ciências humanas, em geral, e para a sociologia, em particular, qual seja, a globalização.

É quase que impossível analisar aspectos da colonialidade (= modernidade) sem compreender o fenômeno da globalização, que em uma perspectiva de compreensão acadêmica

a colonialidade (= modernidade) já nasce globalizada. Ianni (1992, 2000), Santos (2001), Harvey (2010), Dussel (2005), Quijano (2005) embora com abordagens e objetivos distintos, consideram que a globalização ou mundialização é um processo longo, múltiplo, tenso que se inicia com o avanço do capitalismo pelas grandes navegações europeias no século 15. Anteriormente a isso, o que se verificava eram alguns reinos ou impérios que se auto proclamavam “mundo”. A ideia de mundo geográfico, político, econômico se dá a partir dessas navegações rumo à colonização de outras terras e povos, outras possibilidades de comércios e trocas de toda sorte (social – material e simbólica –, política, cultural, bélica, ética, moral, estética, genética).

A compreensão da globalização de Quijano (2005, p. 227) inclui como componente principal seu caráter colonial, para ele

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial.

Além disso, Quijano (2005) apresenta a globalização como também a expansão do capitalismo no mundo colonial (= moderno), em acordo com Ianni (1992, p. 54), para quem na história da globalização ou mundialização, “desde as grandes navegações iniciadas no século 15, até o presente, em fins do século 20, o capitalismo provoca constantes e periódicos surtos de expansão, de tal maneira que se revela simultaneamente nacional e internacional, ou propriamente global”. Sendo assim, “a história do capitalismo pode ser lida como a história da mundialização, da globalização do mundo” (p. 64). É nesse contexto que ele afirma que “a necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em cada parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte” (p. 60). Desse processo, “desenraizam-se gentes, culturas, religiões, línguas, modos de ser, replantados perto e longe, além dos mares e oceanos, em outros continentes” (p. 62).

A europeização ou ocidentalização do mundo “originária da Europa, e revigorada nos Estados Unidos, ela se expande pelos países e continentes, em surtos sucessivos, frequentemente contraditórios” (IANNI, 1992, p. 69). Esta europeização ou ocidentalização do mundo é compreendida e traduzida como o avanço e globalização do capitalismo, em que “se dá a destruição de formas sociais de vida e de trabalho, modos de ser, coletividades, povos e culturas” (p. 62). Disso resulta que, para este autor, “a gloriosa trajetória do capitalismo,

europeização ou ocidentalização do mundo, pode ser vista, também, como uma espécie de holocausto” (p. 62).

Para Ianni (1992), esse processo de globalização, ou ocidentalização do mundo, é complexo, desigual, contraditório e não se lança de modo uniforme a cada caso e experiência. “Tribos, nações e nacionalidades, com suas culturas, histórias e tradições, reagem de forma diferenciada, segundo as suas condições, capacidades de mobilização, acomodações, reações” (p. 81), desenvolvendo-se diversas formas de ocidentalidade. Como uma espécie de alteridade, as “possibilidades de autoconsciência compreendem o contraponto entre o eu e o

outro, branco e negro, ocidental e oriental, homem e mulher, burguês e operário, servo e senhor” (p. 83); é nesse sentido que o autor afirma que “a sociedade global repõe a dialética servo e senhor. O modo de ser levado, oferecido, emprestado ou imposto ao outro sempre carrega consigo elementos que lhe permitem a negação” (p. 83).

Entretanto, com tudo isso,

A despeito da ocidentalização contínua e reiterada, ainda que contraditória e desigual, não há dúvida de que o mundo não parou ainda de ser ocidentalizado. A ocidentalização é um processo que não perdeu ainda o seu ímpeto. A despeito dos obstáculos, recuos, distorções, prossegue nos quatro cantos do mundo e em todos os recantos da vida das coletividades e indivíduos. [...]. Cabe ressaltar que algumas das sociedades alcançadas pela ocidentalização, por sua vez tornam-se focos de irradiação de padrões e valores de ocidentalidade, original, recriada, paródica, fetichizada (IANNI, 1992, p. 79).

E Ianni (1992, p. 84), citando Claude Lévi-Strauss, ainda afirma que:

“[...] não se pode negar que o pensamento do ocidente, os esquemas os mecanismos políticos e econômicos que lhe são próprios foram universalizados em grande medida pela violência da colonização. Isso é para mim, o Ocidente: uma pequena porção do mundo, cujo estranho e violento destino tem sido o de impor pela força ao resto do mundo suas maneiras de pensar, de ver, de crer e de viver. É certo que o mundo se tem rebelado contra o Ocidente, que tem conseguido fazê-lo perder a sua posição de supremacia, mas não esqueçamos que quase todos os meios de que se tem utilizado para opor-se ao seu jugo no mundo e reduzir a sua influência, têm sido forjados no próprio Ocidente” (ausente de grifos no original).

Essa proposição, de que boa parte das resistências às violências, expropriações, explorações do longo e contínuo processo de ocidentalização do mundo emergem da própria ocidentalização, é tácita e unanimemente aceita por quase toda massa pensante nas ciências sociais, seria porque elas mesmas são filhas da ocidentalização? Seja como for, a maioria absoluta das formulações acadêmicas, intelectuais, práticas sobre reações aos reveses da ocidentalização tem como base os métodos, os ensaios, as epistemologias, o pathos na própria experiência de ocidentalização do mundo. Será então, por isso mesmo, que pouco ou nada se consegue em termos de volume contra o contínuo avanço das colonizações, imperialismos com suas expropriações e explorações?

O que se pode visualizar é que, seja como for, o capitalismo presente, com seus sucessivos processos de mundialização e ocidentalização da vida, mesmo na sua fase mais adiantada chamada de pós-industrial, pós-moderna ou flexível, guarda características permanentes que o faz ainda ser o modo de produção de exploração capitalista. Segundo Harvey (2010), algumas permanências caracterizam a manutenção do sistema, o que nos desautorizam afirmar que se vive uma experiência pós-capitalista, apesar de todas as mudanças ocorridas e em curso. Para ele, a partir da leitura de Marx, há continuidades da modernidade que, mesmo em tempos de inegáveis mudanças que muitos chamam de pós- modernidade, impedem-nos de afirmar a superação do capitalismo como sistema de produção hegemônico, como também da suposta superação da modernidade pela pós-modernidade.

Harvey (2010, p. 164), confrontando a organização de produção de base fordista keynesiana à acumulação flexível de capital, recorre ao que ele chama de os “‘elementos e relações invariantes’ de um modo capitalista de produção”, e segue afirmando que “como a acumulação flexível ainda é uma forma de capitalismo, podemos esperar que algumas proposições básicas se mantenham”. Das continuidades descritas por ele, destacam-se

1 O capitalismo é orientado para o crescimento. Uma taxa equilibrada de crescimento é essencial para a saúde de um sistema econômico capitalista, visto que só através do crescimento os lucros podem ser garantidos e a acumulação do capital, sustentada. [...]. Na medida em que a virtude vem da necessidade, um dos pilares básicos da ideologia capitalista é que o crescimento é tanto inevitável como bom. A crise é definida, em consequência, como a falta de crescimento.

2 O crescimento em valores reais se apoia na exploração do trabalho vivo na produção. [...]. O capitalismo está fundado, em suma, numa relação de classe entre capital e trabalho.

3 O capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico. [...], a inovação organizacional e tecnológica no sistema regulatório (como o aparelho de Estado, os sistemas políticos de incorporação e representação etc.) se torna crucial para a perpetuação do capitalismo. Deriva em parte dessa necessidade a ideologia de que o “progresso” é tanto inevitável como bom (HARVEY, 2010, p. 166-169).

Sendo assim, é possível afirmar que existe uma relação de interdependência entre o sistema social de produção material da modernidade e da pós-modernidade (o capitalismo) e a própria modernidade e pós-modernidade, qual seja, a ênfase no crescimento, no progresso e no controle da força de trabalho.

Mas talvez as continuidades, que nos fazem identificar o sistema de produção da sociedade moderna, propostas por Marx e atualizadas por Harvey, possam ainda comportar uma quarta, que seria a relação colonial, o continuum colonial. Senão vejamos, se a proposição de que a colonialidade (= modernidade) emerge com o florescer das navegações do antigo mundo rumo ao novo mundo e da consequente instalação das relações assimétricas de colonialidade estiver correta, a crescente acumulação capitalista, no contínuo e permanente processo de

mundialização/ocidentalização, bem como suas “fazes periódicas de superacumulação” (HARVEY, 2010, p. 170), só são possíveis pela espoliação constante dos territórios, da economia, da produção, dos saberes, da cultura e do tempo dos povos e comunidades tradicionais, aos moldes da empresa colonial.

Ao aceitarmos os argumentos de continuidade da modernidade e do capitalismo ofertados por Harvey (2010), podemos, por derivação, sustentar nosso conceito de continuum

colonial, já que partimos da hipótese de que a colonialidade (= modernidade) emerge das grandes navegações (DUSSEL, 2005; QUIJANO, 2005), que puseram em marcha o motor da empresa colonial, agente privilegiado da acumulação primitiva de capital. Ora, senão vejamos, se a modernidade e capitalismo tomaram forma a partir do mesmo evento histórico: as grandes navegações hispânicas e portuguesas que criaram as condições de emergência de um mercado global de bens, mercadorias e gente, e se a colonização das terras invadidas e saqueadas foi o que possibilitou mover o motor modernidade-capitalismo, então para mantê-los funcionando ainda não inventaram um outro combustível senão a colonialidade, portanto, o que temos em curso ainda é a colonialidade (= modernidade), ou seja, temos um continuum colonial.

A apropriação dos territórios tradicionais por grandes corporações e a consequente migração forçada da população serviu para suprir o experimento fordista keynesiano, mesmo assim, como demonstra Harvey (2010, p. 123), as dificuldades foram muitas

Ford usara quase exclusivamente a mão-de-obra imigrante no seu sistema de produção [...] O taylorismo também enfrentou fortes resistências nos anos 20 [...] a oposição dos trabalhadores infligiu uma grande derrota à implantação dessas técnicas na maioria das indústrias, apesar do domínio capitalista dos mercados de trabalho, do fluxo contínuo de mão-de-obra imigrante e da capacidade de mobilizar exércitos de reserva da América rural (e, por vezes, negra).

Vejamos, a derrota inicial do fordismo taylorismo foi pouco a pouco sendo superada e as técnicas de trabalho manual, rotinizado com longas jornadas de trabalho remuneradas por horas trabalhadas, logo foram sendo assimiladas pelos trabalhadores expropriados dos seus territórios, das suas técnicas e dos seus saberes. Com o contínuo aumento da expropriação das populações tradicionais, estas passaram a se familiarizar com as técnicas e os ritmos do trabalho nas fábricas.

Outro indício do continuum colonial é a necessidade das indústrias buscarem novos mercados com maior oferta de insumos e força de trabalho mais barata. As grandes empresas/corporações internacionais procuram lugares para instalar suas plantas industriais que, conforme suas avaliações, impõem menor ou nenhuma resistência e dispõem de maior quantidade de força de trabalho o que garante menores preços dos salários.

Muitos dos sistemas padronizados de produção construídos sob o fordismo foram, por essa razão, transferidos para a periferia, criando um “fordismo periférico”. Mesmo os novos sistemas de produção tenderam a se transferir, uma vez padronizados, dos seus centros inovadores para localidades terceiro-mundistas (a transferência da Atari, em 1984, do Vale do Silício para o sudoeste Asiático, com sua força de trabalho de baixa remuneração, é um caso exemplar) (HARVEY, 2010, p. 174).

Atende à lógica colonial, a mobilidade para outros territórios onde utilizarão pela força (das armas ou dos discursos) o território, os recursos naturais e os braços disponíveis, logo após tornar a população local sem saída e dependente. Embora em uma relação de farsa entre Estados independentes, os governos das elites locais fazem as vezes dos chefes coloniais, editam leis, normas, decretos com o propósito de receber o empreendimento “inovador” em desfavor dos grupos locais que são silenciados, despejados, postos a viver em atmosfera insalubre. Os contestadores são levados pela polícia aos tribunais como agitadores que atentam contra a ordem social e o progresso da nação35.

As relações mantidas entre os países capitalistas avançados, desenvolvidos, civilizados, ou seja lá o nome que se queira dar, com aqueles por eles denominados dependentes, subdesenvolvidos, atrasados, pobres é, no mínimo, de inspiração colonial.

Os lucros, a mais-valia, os capitais liberados da relação contínua de expropriação e exploração são reinvestidos, agora na sociedade globalizada, onde as corporações e empresas privadas decidem, desde que os governos lhes deem garantia de lucro líquido e certo. As reações contrárias da sociedade, ou o apelo pelo controle social das operações e ações de risco econômico, social, cultural, ambiental e dos lucros injustos, ilegais e imorais são negociados pelo próprio Estado, que os reprimem fortemente a favor do investidor.

No Brasil e no mundo, são incontáveis os exemplos dessas operações de coligação Empresa-Estado (ou Capital-Estado) contra as sociedades, comunidades, grupos que se levantam para contestar a forma como seus territórios são expropriados, saqueados, destruídos e a população subjugada.

Importantes trabalhos acadêmicos e engajados são elaborados para mapear, classificar, divulgar e denunciar, cada qual ao seu modo, as formas de avanço da exploração e expropriação de territórios, recursos, saberes, modos de vida. A exemplo da denúncia das ações imperialistas da Petrobrás em vários países sul americanos - Equador, Argentina, Colômbia, Peru, Bolívia - realizada na obra “Petrobras: ¿integración o explotación?, organizado por Jean Pierre Leroy e Juliana Malerba (2005); das “Diferentes formas de dizer não: experiências internacionais de resistências, restrição e proibição ao extrativismo mineral”, trabalho organizado por Juliana

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Malerba (2014), que busca inventariar as experiências de resistências frente à mineração em territórios tradicionais na Argentina, Peru, Costa Rica, Estados Unidos Filipinas, Equador e Nigéria, do mapeamento das experiências internacionais, com fins, dentre outros, de pensar o caso brasileiro que passa pela revisão do código de mineração e põe em questão os direitos territoriais de inúmeros grupos, comunidades tradicionais e povos originários.

2.4 COLÔNIA, IMPÉRIO E REPÚBLICA: OU SOBRE O CONTINUUM COLONIAL