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ais temas estão presentes no filme de Roulien, ao tratar de as- sassinatos, homossexualidade e alucinações. o roteiro do filme, estava prevista uma cena do palacete de Bolinha, onde Nazinha fuma maconha pela primeira vez. Na “fortaleza do vício”, todos bebem e fumam maco- nha tranquilamente, completando a iniciação da jovem, que se presta a conceder todos os prazeres no momento em que os entorpecentes co- meçam a fazer efeito, sejam eles de Bolinha ou de seus amigos. Roulien pensou em ilustrar a embriaguez de Nazinha realizando o que chamou de sequência surrealista, procurando insinuar as alucinações com dis- torções fotográficas e musicais segundo o ponto de vista psico-médico . Por muito tempo, médicos e especialistas tentaram provar que o con- sumo de maconha provocava alucinações, ou como pretendeu Raoul Mourgue, “pseudoalucinações”:

É aqui que a pseudoalucinação se fixa antes de tudo, isto é, do ca- ráter as vezes estranho ao seu eu e despótico de suas visões. Aqui esta a particularidade que ele coloca em primeiro momento, tra- duzem ainda um sentimento íntimo de automatismo e dominação. Mas as visões ... ficam interiores e não exteriorizadas no espaço. (MORGUE apud LUCENA, 1958, p. 80-81)

D ain sper realizou filmes como Narcotic (1933), Maniac (1934) e Marihuana (1936), além de adquirir os direitos de exibição de Reefer madness (1936).

Indo pela trilha aberta por Mourgue, José Lucena, diretor do Ma- nicômio Judiciário de Pernambuco, importou o conceito, legitimando-o na literatura nacional e aprofundando a questão nos seguintes traba- lhos: Alguns novos dados sobre fumadores de maconha (1935), Maco-

nhismo e alucinações (1939) e Maconhismo crônico e psicoses (1949).

o filme, a compreensão de que a maconha era o agente causador de alucinações estava presente na literatura médica da época. Talvez, sejam nesses textos que Roulien buscou informações para conceber sua história segundo o ponto de vista “psico-médico”, sendo no momento José Lucena o pesquisador brasileiro de maior expressão no assunto. Se por um lado, a maconha é mostrada como a causadora de alucina- ções e degradação moral, por outro, a planta é retratada como fonte de violência no subúrbio. Em seu roteiro, Roulien planejou uma cena em que Perna-de-pau agride a amante de Peitão, por se negar a informá-lo o paradeiro do amante – contratado por Doutor para dar cabo de Perna- -de-pau.

Peitão espreita a casa de Perna-de-pau e descobre que este se encontra no interior. Sorrateiramente e de arma em punho, Peitão se aproxima pelo corredor. Ao ouvir o ranger do assoalho, engatilha-a, pronto para realizar o serviço. O clima de tensão se dissipa quando uma criança aparece engatinhando com um caminhão de madeira atado a mão, deslizando sob o assoalho. Ao perceber que sua vítima não está em casa, o assassino “crioulo que mata a preço módico” se retira, mas ao descer pela escada, uma perna de pau se põe no caminho, propiciando sua queda e culminando em uma luta com Perna-de-pau. Desarmado, Peitão confessa que foi pago para matá-lo: “sua voz afoga-se num dego- lamento invisível”.

As cenas de assassinatos e violência disseminariam, caso o fil- me fosse exibido, as mesmas ideias defendidas por Harry J. Anslinger, diretor do Bureau de Narcóticos dos EUA. Em seu pronunciamento no congresso estadunidense, que aprovou o Marijuana Tax Act 1937, Ans- linger questionaria os congressistas: “[...] quantos assassinatos, suicí- dios, roubos, assaltos criminosos e atos de insanidade que a maconha provoca a cada ano, especialmente entre os jovens, podem ser conjectu- radas?” (KAPLAN, 1971, p. 92)

Para a comissão, Anslinger anexou ao relatório detalhes sobre di- versos casos em que os criminosos estavam dominados pelos efeitos da maconha. Em um desses casos, o diretor atesta que, no estado de Ohio, um homem de 35 anos foi sentenciado à cadeira elétrica por roubar e matar um recepcionista de hotel. Ele disse não ser culpado, alegando

insanidade temporária provocada pelo consumo de maconha. A litera- tura médica brasileira não precisava das histórias de Anslinger, sendo que aqui no Brasil, elas eram fartas, como a história do marinheiro Oseas, um pacífico trabalhador e marinheiro que matara subitamente na cidade de Prado (Bahia) a um preto de quem não só ele como todos os embarcadiços gostavam muito”, presente no trabalho Diambismo ou

maconhismo, vício assassino, publicado originalmente em 1947, do mé-

dico Eleyson Cardoso:

Em um dos portos de escala embarcou um passageiro que trazia diamba consigo e costumava fuma-la. Depois da camaradagem es- tabelecida a bordo, fez Oséas fumar. Este, sob o efeito das fumara- das da diamba, tornou-se alucinado dando gritos e fazendo amea- ça a um preto hipotético que a sua imaginação, por efeito do tóxico, fazia ver. Quando os companheiros se dirigiam a ele, a alucinação como que desaparecia para reaparecer depois. […] chegando no Prado, cerca de uma hora antes de zarpar, Oséas, com um de seus companheiros, foi apanhar cana em um canavial próximo do porto. No canavial encontraram o preto real que era amigo dos embarca- diços. Oséas ao vê-lo teve novo acesso e sacando uma faca, sem qualquer discussão prévia ou outro motivo, o matou. (CARDOSO, 1958, p. 184)

A defesa do réu sensibilizou o magistrado ao afirmar que o crime fora motivado pela embriaguez de maconha, o que lhe proporcionou a redução de pena de 24 para 6 anos de prisão, fato que despertava mais um motivo para que fossem tomadas todas as providências para reti- rar a planta assassina de circulação. Estava claro para médicos e para Roulien que a maconha, além de provocar alucinações, despertava no fumador uma agressividade assassina que o impulsionava a cometer assassinatos sem motivo real – tais exemplos bastavam para que John Kaplan (1971, p. 96) se convencesse de que “[…] a maconha é de fato a causa de tais crimes”.

HOMOSSEXUALIDADE

o filme de Roulien, associar a maconha a crimes, alucinações, e degenerações de ordem psíquica, como procuramos demonstrar, en- contra correspondência no discurso médico brasileiro do período, assim como outra tese: a maconha desperta desejos homossexuais. Ao usar a maconha para embriagar e se aproveitar de meninas como Nazinha, jovem inocente do interior, Bolinha encarna algumas ideias correntes

sobre a capacidade da planta transformar a sexualidade de seus con- sumidores. Dos poucos fotogramas que restaram, Bolinha aparece em trajes masculinizados, com cabelo preso e face mal encarada, para re- presentar a “degenerada” que usava a maconha para “des-recalcar” as taras de suas protegidas.

Figura 14 – A chefe do crime caminha tranquilamente pela cidade

Fonte: Cinemateca Brasileira.

o roteiro do filme, o diretor aborda o tema na cena em que oli- nha, entorpecida de maconha, interessa-se de pronto pelo corpo jovem de Nazinha. Enquanto explica a natureza do serviço, Bolinha observa a jovem, encarregando seu marido de levá-la à modista. Na sequência, ao se retirar para seus aposentos, a jovem é seguida por Bolinha. A crimi- nosa acende um cigarro de maconha e oferece a jovem que, embriagada pelos vapores alucinógenos, cede aos pedidos de Bolinha e se despe, permitindo que a toque. Com o desenvolvimento da relação ao longo do filme, azinha, á elegante e adaptada à vida no Palacete, desperta o ciúme de Bolinha ao conversar lascivamente com outra senhora que a deseja. Após discussões e bofetadas, Nazinha e Bolinha se beijam ar- dorosamente.

Esta cena insinua que a maconha tem, entre suas funções, “des- personalizar” uma jovem inocente do interior, condenando-a a servir aos caprichos da chefe do crime. Mais uma vez, o tema de Roulien encontra correspondência nas ideias de Para Vicente Serer Vicens. Segundo esse autor, na esfera sexual, o intoxicado experimenta violentas excitações que o levam ao ato imoral.

Este erotismo exaltado no físico e no psíquico se torna muito pe- rigoso e os impele a atentados contínuos contra seu próprio pu- dor, sua dignidade e a vida do próximo. Homossexualismo em uma grande porcentagem de maconheiros. (VICENS, 1967, p. 15)

Para Guilherme Cano Puerta (1967, p. 107-108),

[...] o homossexual por si só é um individuo depravado e sem escrú- pulos, que frequentemente usa de todos os truques e artimanhas para satisfazer seus instintos sexuais anormais. [...] Mediante a influência da maconha, homossexuais cometem os mais atrozes atentados contra o indivíduo e a integridade de seu sexo, sem que existam barreiras de idade, hora ou lugar.

A despreocupação com os relacionamentos afetivos entre idades distintas e sexos idênticos é para Puerta sinônimo de degeneração, e a maconha acaba sendo compreendida como um instrumento usado por homossexuais para atingir seus objetivos. Para Puerta (1967), os homossexuais incitam os adolescentes a fumar maconha e, uma vez viciados na erva, transformam-nos em seus concubinos.

Este adolescente maconheiro e incitado ao homossexualismo co- meça a vestir-se chamativamente e a usar acessórios impróprios ao seu sexo, ficando cada vez mais extravagante, terminando como homossexual e corruptor de menores. (PUERTA, 1967, p. 107)

Seguindo essas ideias, a relação homossexual de Nazinha e Bo- linha exemplifica isso, uma mulher mais velha que entorpece a ovem inocente do interior, levando-a a satisfazer seus desejos. Bolinha pode- ria continuar se dedicando aos prazeres da erva maravilhosa, sabendo que Sincero até o momento não possuía qualquer indício concreto que a ligasse aos crimes e “perversões” que se imaginava ocorrer em torno do comércio de drogas. Mas um depoimento colocaria a perder a paz da chefe do crime: Maria Boca Cheia, antiga prostituta e amasia de Amazonense, havia sido arrolada como testemunha. Agora amasiada com um comerciante português e fora das ruas, fica indignada com a convocação. Antes de depor, solicita telefonar ao seu companheiro de onde está, para que não suspeite que outra vez ela estava a andar com João Mecânico – o que lhe valeria outra surra. Roulien pensou a cena em tom de comédia, que no fim das contas faz a alegria de Sincero. oca Cheia se revela uma verdadeira boca aberta e revela que Amazonense distribuía maconha a serviço de Bolinha, cuja casa é um antro de orgias e prostituição, tráfico sexual, drogadição etc.