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Segundos vários autores, e de acordo com declarações por nós adquiridas entre toxicomaníacos, o primeiro contato com a maconha dá ao neófito uma sensação não muito agradável. Os doutores Pernambuco Filho e Adauto Botelho dizem em um livro sobre entorpecentes:

Os efeitos da diamba são os seguintes: tomadas as primeiras ba- foradas, o indivíduo apresenta os olhos vermelhos, os músculos da face contraídos, dando ao rosto uma expressão estranha. A embriaguez vem logo com delírio a princípio saudável, dando um bem estar, mas vai aumentando depois, até uma grande agitação que toma formas diversas conforme o temperamento do indivíduo. Uns ficam em completa prostração, outros cantam, gritam, correm, tornam-se agressivos e perigosos.

Um viciado, interrogado na polícia, assim se manifestou sobre a sua primeira experiência com maconha: “As primeiras baforadas senti

que a cabeça latejava horrivelmente e que meus membros eram tomados por uma lassidão inexplicável, incapacitando-me para qualquer movimen- to. Senti depois que ao redor tudo começava a girar, sobrevindo, então, qualquer coisa que não eu não sei explicar. Depois, perdi os sentidos”. A

mesma coisa sentiu, a princípio, um dos maiores maconheiros de Ala- goas, de quem vimos acompanhando suas atividades no incrível vício durante vários anos. Começou a fumar quando jornaleiro de Maceió, com mais ou menos 15 anos de idade. Era um rapaz forte e disposto, campeão de passo (frevo) em Alagoas. Não gostou, a princípio, do cigarro

de maconha. Mas a insistência dos companheiros, que prometiam um futuro melhor, um futuro de coisas bonitas, fez com que ele experimen- tasse outra vez. Fumou mais uma vez e mais outra, e tornou-se um incorrigível viciado. Em seis anos de vício, ele transformou-se comple- tamente. Do rapaz forte que era, passou a ser um cadáver ambulante. Hoje só tem um pulmão, os bacilos continuam a correr-lhe as entra- nhas, seus olhos estão injetados, o rosto de um amarelo esverdeado. Mas não deixa a maconha. Não pode deixar a maconha. Agora fuma somente para dormir, dormir muito, já não lhe interessam os sonhos eróticos e a planta do diabo já não lhe dá mais o tônico sexual de anti- gamente. Quer dormir, dormir muito.

Como o moleque que foi uma vez campeão de passo, acabam todos os viciados. O caminho é o mesmo, trágico, medonho.

Como o moleque de Maceió e como tantos outros viciados que se arrastam pelos campos e cidades do orte e do ordeste, ficarão os o- vens e as mulheres de Copacabana e todos os fumadores de maconha de todo o Brasil. O vício aprofunda suas raízes e tende a se ampliar. É bom não esquecer jamais: somente no Rio de Janeiro, mais de mil pes- soas comercializam com a maconha.

Um povo se entrega ao vício, uma raça promete entrar em desin- tegração. Essa é uma verdade que precisa ser dita. O Brasil, um país cheio de problemas, tem no vício da maconha um inimigo perigoso. Esse é o nosso brado de alarme.

REFERÊNCIA

Legenda - página 166

NAS AREIAS macias das praias nordestinas, o viciado em maconha encontra um leito sempre às ordens, onde êle pode se deixar ficar imóvel, num mundo fantástico de sonhos trágicos, os sonhos trágicos que a maconha oferece.

APRESENTAÇÃO

Na segunda metade dos anos 1940, o país sofria com a ampliação da repressão ao cultivo e comércio da Cannabis. Até então comprada em farmácias, a planta deixou de compor o rol dos medicamentos prescritos para se tornar o flagelo da humanidade . Raul Roulien viu no curso dessa política sanitária a possibilidade de captar recursos para um novo filme: assim nasceu a ficção Maconha, erva maldita (1949).

De Maconha, restaram fotografias, cenas panorâmicas do Rio de Janeiro, imagens de uma apreensão de “cigarros de feitura ordinária”, telefonistas em seu ofício, médicos em laboratórios, quatro policiais re- alizando a investigação de um crime, um homem que espera uma carga tarde da noite na Baía de Guanabara, operações policiais, negros sendo abordados etc.; fragmentos descontínuos significados aqui a partir da comparação ao roteiro original.

Procurando compreender o projeto inacabado de Roulien, aproxi- maremos o conteúdo do filme ao processo histórico de modernização da saúde e da segurança pública no Brasil, diagnosticando em que medi- da Maconha expressa a ideologia reinante nesses setores da sociedade. Roulien representa o consumo de maconha como agente causador de crimes, assassinatos, prostituição, homossexualidade etc., transfor- mando seu filme em uma apologia ao discurso médico e policial do final dos anos 1940.

1 Agradecimentos: esse estudo não seria possível sem a colaboração de Adilson Men- des, Gabriela Queiroz, Rodrigo Archangelo, Olga Futemma, Pedro Lapera, Rubens Machado Júnior, Henrique Carneiro, Felipe de Moraes, Máximo Barro e Elisaldo Araújo Carlini, a quem agradeço a generosidade.

Figura 1 – A luta contra o vício

Fonte: Cinemateca Brasileira.

No período, a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecen- tes, em parceria com as comissões estaduais, estabeleceria, em reunião de 12 de junho de 1947, normas que autorizavam a destruição dos cultivos de maconha encontrados pelas forças policiais, assim como o estabelecimento da padronização dos estudos sobre maconha visando propiciar seu combate, atentando à classe médica responsável pela re- pressão, os malefícios da maconha, além da criação dos Departamentos de Segurança Pública, tanto federal quanto estadual, especializado na repressão às toxicomanias. (PERNAMBUCO FILHO, 1958)

É nesse contexto que Roulien escreve o roteiro de Maconha, erva

maldita (1949), parecendo ter em vista o mecenato dos poderes públi-

cos tal qual seu filme Aves sem ninho, apoiado pela esposa de Getúlio argas. ssa hipótese pode explicar a concepção do roteiro afinado ao discurso médico brasileiro e o elogio às forças policiais, que no momento apelavam às instituições para o fortalecimento do combate à maconha, disseminando em suas publicações ou através da mídia. Esses grupos, interessados na higienização da sociedade, pautados ideologicamente na eugenia, disseminavam o que Cohen chamou de pânico moral, na imprensa e no discurso médico do período, visando ampliar sua impor- tância política na consolidação de projetos que visavam modernizar o Brasil. Ou seja, extirpar os hábitos de raças consideradas então subde- senvolvidas, como o hábito do negro de fumar maconha:

Sociedades parecem estar sujeitas, de vez em quando, a períodos de pânico moral. Uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pes-

soas emerge a tornar-se definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa; as barricadas mo- rais são tripuladas por editores, bispos, políticos e outras pessoas bem pensantes; socialmente acreditados, peritos pronunciam seus diagnósticos e soluções; formas de enfrentamento são evoluídas [...]; a condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e tor- na-se mais visível. Às vezes o objeto do pânico é bastante novo e em outros momentos é algo que tem existido por muito tempo, mas de repente aparece no centro das atenções. Às vezes, o pânico passa por cima e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; em outros momentos ele tem repercussões mais graves e de longa duração, e pode produzir tais mudanças como aquelas em política jurídica e social ou mesmo na forma como a sociedade concebe a si mesmo. (COHEN, 2011, p. 1)

Segundo Stanley Cohen (2011, p. XX), “quando tais apelos vêm de vozes de autoridade (como uízes, especialistas, profissionais, inquéri- tos governamentais) o pânico moral é mais fácil de manter, mesmo que apenas por pura repetição”. Segundo o autor, apesar da necessidade do depoimento de peritos (como os trabalhos médicos que analisaremos aqui) para explicar os perigos ocultos por trás do superficialmente ino- fensivo, como fumar maconha, eles também são problemas passíveis de serem identificados pelo senso comum. Deste modo, ... drama, estado de emergência e de crise; exagero; valores estimados ameaçados; objeto de preocupação, ansiedade e hostilidade; forças do mal ou pessoas para serem identificadas e interrompidas, etc. (COH , , p. ) pela ação das autoridades competentes.

o filme de Roulien, a integridade moral estaria sob a ameaça de Bolinha, comerciante de drogas, cafetina e homossexual, envolvida em uma extensa rede de crimes que se estendia em distintas esferas da sociedade. Nesse sentido, Roulien se aproveita do pânico moral as- sociado ao consumo de drogas psicoativas para viabilizar seu projeto.

Maconha foi elaborado para captar recursos, planejado segundo o curso

dos acontecimentos por um diretor arruinado, que viu na política proi- bicionista consolidada após e amplificada após um filão a ser explorado. Mas antes devemos responder a seguinte questão: quem foi Raul Roulien?

O trabalho de Máximo Barro (2013) recompõe a trajetória artísti- ca de Roulien a partir da década de 1930, quando deixou o Brasil para tentar carreira em Hollywood. Trabalhando para a Fox, o ator brasileiro residiu nos EUA entre 1931 e 1935, respirando a atmosfera dos últimos anos da Lei Seca. Em seu livro A verdadeira Hollywood, Roulien (1933)

nos fornece um retrato das festas da gente de cinema, regada a álcool, cigarros e cantorias. Sendo o bom cantor de teatro que era, encarrega- va-se de divertir os convidados com sua bela voz.

Em seu relato, atentamos-nos para o fato de que as festas regadas a álcool que frequentava eram realizadas ainda na época da Lei Seca. Roulien (1933, p. 28) “era hóspede de honra, nessa noite, de Hubert Wilkins, o herói polar”. Após narrar as canções que interpretou, como

Na casa branca da serra e Luar no sertão, Roulien (1933, p. 31-32) su-

tilmente faz menção ao álcool ao relatar que “[...] um garçom atordoado deixava cair um copo de champ... [psssiu! Olha a lei Volstead!] um copo cheio de ‘água’... da que muitos americanos tomam em xícaras porque ‘água’ em xícara é café ou leite”. Provavelmente, Roulien se valeria des- sas vivências para imaginar as festas na “fortaleza do vício”, que procu- rou representar no roteiro de Maconha.

Após a morte de sua esposa (Diva Tosca), atropelada pelo rotei- rista John Houston, que dirigia alcoolizado, Roulien move um processo judicial que lhe rende 200.000 dólares de indenização. Segundo Máximo Barro (2013, p. 22),

... muitos interpretaram o fim desastroso da carreira de Roulien quando pretendeu exigir a prisão do jovem bêbado pelo crime. Ex- plicavam alguns parentes e amigos do brasileiro, que a influencia do pai do americano – o grande ator Walter Houston – além de amigos como William Wyler, impuseram a lei do silêncio contra o forasteiro abusado que obtivera destaque em uns poucos filmes.

Roulien retornou ao Brasil em 1936, pretendendo aqui viver de cinema, amparado pelo prestígio que alcançou no cenário nacional ao conquistar o estrangeiro. a capital do país, escreve para ornais, fil- ma O grito da mocidade (1936),2 Aves sem ninho (1939)3 e Asas do Brasil

(1941).4 Fez também teatro e produziu cinejornais, até que oito anos

após realizar seu último filme, Roulien se dedicou ao pro eto Jangada (1949), superprodução para os parâmetros do cinema nacional, com o

Roulien trabalha no filme enquanto escreve para os ornais A Manhã, Carioca e A Noi-

te. Filmado em tom realista, propõe-se ser um chamamento idealista junto à juven-

tude universitária brasileira (estudantes de medicina), engajando-a espontaneamente em causas sociais. (RAMOS; MIRANDA, 2000)

Com o mecenato de Darcy argas, esposa de etúlio argas, Roulien filma o drama social da orfandade feminina, comprometendo-se pelo tom excessivamente oficialesco e pela encenação irregular. (BARRO, 2013)

Máximo arro ( ) afirma que Roulien iniciou o filme Asas do Brasil sobre as fi- nalidades do Correio acional. Um incêndio, desta vez na Sonofilmes, coprodutora, novamente interrompe a produção.

argumento de Raquel de Queiroz sobre os jangadeiros em luta contra a escravidão. Um acidente no laboratório consumiu quase que a totalida- de do nitrato, o suficiente para sepultar o pro eto e impor perdas finan- ceiras irreparáveis ao realizador. (BARRO, 2013, p. 23)

esse contexto, Roulien ( ) apostou suas últimas fichas em um filme policial concebido a partir de fatos verídicos5 colhidos no

Departamento Federal de Segurança Pública, transportados para a tela “em caráter exclusivo”.

Figura 2 – Equipe de Maconha, erva maldita

Fonte: Cinemateca Brasileira.